‘Só restam 2 dos quase 30 alunos do cursinho’: os obstáculos dos estudantes de baixa renda no Enem da pandemia
Vinícius de Andrade, que se dedica a ajudar jovens de baixa renda a se prepararem para exames pré-vestibulares e para o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), diz que muitos estudantes de escola pública costumam enfrentar não um, mas dois processos seletivos na tentativa de entrar em universidades
“Tem o processo seletivo em si e tem o fato de tudo ser muito abstrato e muito distante deles”, explica Andrade.
“O desafio começa na inscrição. Já vi alunos que tentaram se inscrever, tiveram dificuldades e desistiram. Já vi outros que simplesmente não viam sentido em se inscrever, pois não se achavam capazes e, no fundo, simplesmente não entendiam o que era o Enem. Há um muro entre eles e o ensino superior, especialmente em universidades públicas, e o Enem simboliza esse muro.”
Nesta edição do Enem, o muro parece ter ficado ainda mais alto.
A prova para os 5,7 milhões de inscritos, prevista inicialmente para novembro, foi remarcada para 17 e 24 de janeiro por causa da pandemia e tem sido alvo de pressões por novo adiamento. E, depois de um ano de escolas fechadas e de tantos problemas e desigualdades envolvendo as aulas remotas, muitos alunos em situação vulnerável se veem ainda mais distantes do sonho da ascensão social propiciado pela entrada na universidade.
Segundo cinco professores ou coordenadores de projetos comunitários e cursinhos populares entrevistados pela BBC News Brasil, jovens desistiram das aulas preparatórias em volume acima do de anos anteriores. Entre os que ficaram, uma parte está “mais pilhada”. Outra, no entanto, está com as expectativas abaladas.
“Começamos o ano com quase 30 alunos. Só duas alunas chegaram até o final e vão fazer o Enem, mas não sei se com o mesmo ânimo do começo”, conta Letícia Marcelino da Silva, coordenadora do pré-vestibular Construindo Caminhos, no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro.
“Nem chegamos nem a ter aula presencial, só uma inaugural para explicar o que é o Enem. Daí veio a pandemia. O número de alunos foi diminuindo: eles foram desistindo de estudar em casa e não conseguiam assistir às aulas”, acrescenta.
Na Vila Cruzeiro, também no Rio de Janeiro, “tivemos que deixar de ensinar conteúdo para cuidar da segurança alimentar dos nossos alunos, que perderam emprego e às vezes não tinham nem celular nem ambiente saudável para estudar em casa”, relata Marcelo Martins, coordenador do projeto Estudando para Vencer, de cursinho pré-vestibular gratuito.
Para Vinícius de Andrade, que comanda o Salvaguarda — projeto de apoio a jovens na busca pelo ensino superior e inserção profissional que começou em Ribeirão Preto (SP) e hoje atende adolescentes de todo o país —, “uma parte dos estudantes, infelizmente pequena, já era informada e motivada o bastante a ponto de ter conseguido manter o treinamento ao longo do ano. Já a maior parte foi impactada negativamente pela pandemia”.
“Ansiedade, medo, insegurança, falta de informação, falta de direcionamento e angústia foram alguns dos sentimentos mais presentes”, conta. “Muitos me disseram que mais de uma vez tentaram pegar o foco, mas o perderam rapidamente e isso fez os sentir ainda mais incapazes e distantes.”
Preocupação, nervosismo e dificuldade de concentração
Alguns números dão a dimensão das dificuldades dos adolescentes com o novo cotidiano imposto pela pandemia.
Em junho passado, uma pesquisa do Conselho Nacional da Juventude com 33,6 mil jovens apontou que a metade deles pretendia prestar o Enem. Desse grupo, 67% diziam não estar conseguindo estudar para o exame desde a suspensão das aulas presenciais. E 49% haviam pensado em desistir da prova.
Outra pesquisa, ConVid Adolescentes, realizada pela UFMG e pela Fiocruz entre junho e setembro de 2020, aponta que, durante a pandemia, 48,7% dos adolescentes do país sentiam preocupação, nervosismo ou mau humor, na maior parte do tempo ou sempre. Quase um quarto dos adolescentes entre 12 e 17 anos começaram a ter problemas no sono, e 59% sentiram dificuldades para se concentrar nas aulas à distância.
Os mais afetados, é claro, foram os jovens mais carentes de recursos, acesso e apoio.
“Neste ano, uma grande dificuldade é que os subgrupos de alunos dentro da escola pública ficaram mais divididos — entre os que continuaram motivados, os que conseguiram se manter e os que simplesmente desapareceram”, diz Andrade.
“Antes, eu conseguia chegar no ‘aluno do fundão da sala’ e explicar para ele o que é o Enem, levá-lo em passeios por campi universitários. Agora, eu não sei nem mais onde esse aluno está.”
Esses subgrupos de alunos são um exemplo de novas camadas de exclusão que surgiram na educação durante a pandemia, explica José Francisco Soares, ex-presidente do Inep (órgão do Ministério da Educação que gerencia o Enem) e especialista em mensuração da desigualdade de ensino.
“A vantagem dos (jovens) que estudam em escolas privadas e que têm na família um apoio maior vai se compondo de tal maneira que, quando chega a hora do Enem, é quase um jogo de carta marcada. Só que neste ano isso ficou pior (…) porque criamos uma nova desigualdade entre os mais pobres”, explica.
‘Temos um furacão na cabeça’
No Salvaguarda, encontros via Google Meet originalmente pensados como sessões de aconselhamento vocacional acabaram se transformando em um espaço para os jovens desabafarem sobre suas inseguranças e pressões do dia a dia, explica Hariff Barbosa, cofundadora do projeto.
Nas palavras de uma das participantes dos encontros, as reuniões serviam para pôr para fora “o furacão que está na nossa cabeça”.
“Durante os encontros, eles falaram muito da escola como um espaço onde havia pessoas que poderiam escutá-los. (Com a escola fechada), eles não tinham mais esse suporte psicológico”, diz Barbosa.
“Eles sentiam que os pais, como não estavam habituados à rotina de estudante, faziam cobranças que eles achavam despropositadas. E também falavam muito da sobrecarga de tarefas das aulas online e das dificuldades de comunicação (com pais e com professores no ambiente virtual). O cenário era de estudantes muito desesperados, que precisavam de espaço e acolhimento e que sentiam que não dariam conta — o que mexia com as suas perspectivas futuras. Alguns apostam todas as fichas no Enem para mudar de vida. Então era muito difícil não se sentir habilitado para o exame.”
No bairro de Vila Cruzeiro, no Rio, o cursinho Estudando Para Vencer já tinha como obstáculo preparar jovens que vivem em um cotidiano de violência, frequentam escolas públicas de estrutura precária e costumam conciliar os estudos com o trabalho ou mesmo com a maternidade.
“Uma parte importante do trabalho é recuperar a autoestima deles e fazer eles acreditarem que são capazes, que aquilo (educação superior) é para eles”, diz o coordenador Marcelo Martins.
Depois de um 2019 com um bom número de alunos aprovados em cursos universitários, Martins havia iniciado 2020 com ânimo e com um número recorde de inscritos no cursinho pré-vestibular, mantido com doações e com a ajuda de professores voluntários.
Passados mais de dez meses de pandemia, no entanto, “acho que esse esforço todo já se perdeu”, lamenta Martins.
Dos 55 alunos matriculados no curso, só 6 continuaram assistindo às aulas online.
“A gente ainda vai levar muito tempo para recuperar isso. Tem um abismo que separa esses alunos do conteúdo (do Enem). Por isso eu acho que a gente vai ter o Enem mais desigual de todos os tempos. A gente precisaria cancelá-lo. Nossos alunos estão sem ter o que comer dentro de casa. Como vou dar aula se ele tem fome e, além disso, não tem internet boa?”
Nos últimos dias, tem crescido a pressão pelo adiamento do Enem, por conta da alta de casos da covid-19 e da dificuldade dos estudantes em se preparar ao exame. Na sexta-feira (8/1), a Defensoria Pública da União entrou com uma ação na Justiça pedindo o adiamento do exame, afirmando que “não há maneira segura para a realização de um exame com quase seis milhões de estudantes neste momento, durante o novo pico de casos de covid-19”.
O Inep, órgão do Ministério da Educação responsável pelo Enem, explica que ampliou o número de salas para a prova (para garantir distanciamento entre os participantes), que o uso de máscara será obrigatório e que jovens que tenham sintomas de covid-19 poderão pedir a reaplicação das provas, que será em fevereiro.
Alexandre Lopes, presidente do Inep, afirmou em vídeo que “está tudo garantido, tudo tranquilo para a aplicação da prova” em 17 e 24 de janeiro. “Nos preparamos para fazer essa prova num ambiente de pandemia. Eu sei que é difícil, mas, (como) fruto desse planejamento, estamos seguros de que podemos aplicar a prova com tranquilidade.”
‘Os que passaram por tudo isso conquistaram autonomia’
No Cursinho da Poli, que atende alunos de baixa renda em São Paulo, 2020 “foi um ano exaustivo para professores e alunos. Muitos deles ficaram pelo caminho”, conta Eduardo Izidoro Costa, professor de matemática.
“Quem se manteve lá (estudando) está com a cabeça erguida e pilhado para o Enem”, comemora.
“Alguns aprenderam a estudar sozinhos, a se organizar, souberam aproveitar os plantões (de aulas). Os que passaram por tudo isso (da pandemia) estão muito mais autônomos. Tivemos muitas coisas negativas, mas também tem muitas pessoas que cresceram.”
Hariff Barbosa, do Salvaguarda, também assistiu ao amadurecimento de muitos dos alunos do projeto, diante de tantas dificuldades ao longo do ano letivo. “Alguns saíram mais confiantes (das rodas de conversa virtual), e muitos falaram de se sentir livres dessa pressão de ter de dar conta do Enem neste ano ou ter de escolher uma profissão neste ano”, conta.
“Também estavam mais empáticos com seus professores e compreenderam mais o sentido da escola e a importância da educação na vida deles.”