Nota Técnica da Campanha se contrapõe a Medida Provisória do governo Bolsonaro
Em Nota Técnica, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação reforça sua posição contrária à Medida Provisória do governo Bolsonaro que institui a criação do “Auxílio Criança Cidadã”, que faz parte do programa do Novo Bolsa Família.
Seguindo posicionamento histórico entidade e sua rede de ativistas, a NT da Campanha aponta que a tentativa de privatização da educação promovida pelo Auxílio Criança Cidadã – determinando o pagamento direto de vouchers (vales) a creches credenciadas pelo governo e instituições privadas que garantam vagas para alunos de zero a quatro anos – é inconstitucional, ataca o princípio da qualidade da educação e favorece processos de exclusão e segregação de estudantes.
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“Para além das questões de cunho jurídico-constitucional, os objetivos econômicos que sustentam a proposta precisam ser desnudados, haja vista o enorme interesse do mercado da educação nos recursos de uma das maiores fatias do orçamento público em todos os entes federativos: a ideia posta de que quem deve ser financiado é o estudante e não a escola tergiversa sobre os verdadeiros interesses a serem financiados. Na verdade, é a abertura jurídica para a implementação da política de vouchers ou charter schools”, diz a Campanha na NT.
“Os fundamentos de uma boa educação serão encontrados na sala de aula, em casa, na comunidade e na cultura, e coaduna com sua afirmação de que os reformadores do nosso tempo continuam a procurar por atalhos e respostas rápidas. Vale lembrar que essa discussão já foi superada na tramitação do novo e permanente Fundeb (EC 108/2020). Todas essas evidências nos levam, mais uma vez, a defender que a educação não deveria estar submetida a negociações políticas entre pessoas que não possuem conhecimento sobre o ensino e a aprendizagem, ou seja, sobre o direito à educação.”
Leia a Nota Técnica na íntegra abaixo.
Nota Técnica [1]
Política de vouchers para creche no “Auxílio Criança Cidadã”, do Novo Bolsa Família, viola o direito à educação e não deve ser aprovado
Brasil, 17 de agosto de 2021.
Seguindo o posicionamento histórico da Campanha Nacional pelo Direito à Educação na defesa da educação pública, gratuita e de qualidade social para todas as pessoas, em todas as etapas e modalidades da educação, nos colocamos, novamente, contrárias/os à proposta de permissão de implementação de política de vouchers na creche, por meio do “Auxílio Criança Cidadã”, proposto na MP do Novo Bolsa Família.
Essa proposta é materialmente inconstitucional. A Constituição Federal de 1988 fez uma opção explícita pela transitoriedade das parcerias com a iniciativa privada na prestação do serviço público de ensino obrigatório, exclusivamente para atender os déficits de vaga nas escolas públicas no curso da implementação da expansão do segmento público. Ora, essa escolha política tem e mantém sua razão de ser: como objeto de interesse público de toda a população brasileira, a prestação do ensino obrigatório foi atribuída diretamente ao Estado porque, obviamente, o caráter universalizante, igualitário e inclusivo não constitui propósito típico da iniciativa privada que, a despeito disso, tem oportunidade de explorar sua atividade regulada (art. 209).
Ainda, a proposta ataca a vedação ao retrocesso e o princípio da qualidade da educação. A concessão do serviço público à iniciativa privada representa, concretamente, um retrocesso em termos de direitos fundamentais, conhecido que é o contexto de precarização do serviço prestado e das condições de trabalho dos educadores nas experiências de convênios para atendimento das demandas emergenciais, tolerados transitoriamente pelo art. 213 da Constituição Federal. Tal precarização ofende, por sua vez, o princípio do art. 206, inciso VII, que consagra a prestação do direito à educação com a garantia do padrão de qualidade.
Para além destas questões de cunho jurídico-constitucional, os objetivos econômicos que sustentam a proposta precisam ser desnudados, haja vista o enorme interesse do mercado da educação nos recursos de uma das maiores fatias do orçamento público em todos os entes federativos: a ideia posta de que quem deve ser financiado é o estudante e não a escola tergiversa sobre os verdadeiros interesses a serem financiados. Na verdade, é a abertura jurídica para a implementação da política de vouchers ou charter schools, escolhas que vêm sendo bastante criticadas por estudos realizados por pesquisadores em diferentes países, além dos levantamentos e relatórios de organismos internacionais, como a Unesco e a Relatoria Especial da ONU para o Direito à Educação.
No relatório “Responsabilização na educação: cumprir nossos compromissos”, que fez monitoramento global da educação -2017/8, a Unesco indica que as práticas de voucher e escolhas escolares devem ser vistas com cuidado, pois isoladamente não devem ser apontadas como a grande solução para os problemas educacionais, pois elas têm diferentes resultados em diferentes realidades. O relatório aponta que esses mecanismos têm favorecido os processos de exclusão e segregação, na medida em que “nos sistemas de escolha escolar, os pais baseiam sua escolha em fatores como composição demográfica, o que pode levar à diminuição da diversidade e reforçar as divisões socioeconômicas”.
Ainda, a proposta contraria os Princípios de Abidjan sobre as obrigações em direitos humanos dos Estados em prover educação pública de qualidade e em regular o envolvimento privado na educação. Os Princípios de Abidjan tiveram apoio em sua formulação de dezenas de especialistas do mundo todo, assim como de organizações da sociedade civil, sendo a Campanha Nacional pelo Direito à Educação a organização brasileira que participou deste processo. Após sua aprovação, em 2018, eles foram reconhecidos por uma série de organismos internacionais, notadamente, pela relatoria especial da ONU para o direito à educação em relatório de abril de 2019 (A/HRC/41/37) e pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU em Resolução (A/HRC/41/L.26) e, novamente, em 2021, também em Resolução (A/HRC/47/L.4/Rev.1).
No que tange aos vouchers, o relatório aponta que no Chile, que é geralmente usado como exemplo exitoso da voucherização “tem um sistema altamente estratificado, pois seu programa de vouchers escolares incentivou a admissão seletiva de estudantes de renda alta ou daqueles que apresentavam melhores resultados; e, em 2008, as reformas para melhorar o direcionamento do sistema pouco contribuíram para melhorar a equidade”. O relatório afirma ainda, que na Suécia, o programa de vouchers escolares universal foi associado ao crescimento da segregação.
O caso do Chile é, sem dúvida, um dos mais emblemáticos e significativos quando se trata do programa de vouchers, pois desde a década de 1980, o sistema escolar chileno foi organizado em torno da ideia de mercado educativo. Este fundamento orientou um conjunto de políticas com vistas à privatização da estrutura de financiamento do sistema escolar. Como exemplo dessas políticas pode-se destacar o programa de vouchers que, entre outros aspectos, apresenta 5 resultados, de acordo com o Relatório da National Education Policy Center:
- Para as famílias de classe média: “as famílias não escolhem as escolas; em vez disso, as escolas escolhem famílias e estudantes. Os pais podem escolher apenas onde enviar um pedido; se o candidato for aceito, as famílias de classe média recebem o “privilégio” de pagar mais por uma escola em alta demanda. As escolas basicamente “vendem” mais a seleção social do que a qualidade acadêmica ou instrucional. Os vouchers
criam, assim, incentivos para que as escolas maximizem o status social ou a posição de classe das famílias que podem atrair, dado seu nicho de mercado. Em uma dinâmica de competição e seleção universal, as famílias de classe média não têm escolha senão jogar o jogo, visando escolas de alto status e se contentar com as que concedem a aceitação. Nesta dinâmica competitiva, frequentar uma escola pública equivale a perder o jogo” (tradução nossa). - Para as famílias desfavorecidas: “em geral, a competição relegou os estudantes pobres a escolas de baixo desempenho e altamente segregadas. Mas mesmo nos bairros pobres, as escolas são finamente estratificadas e socialmente segregadas. Os pais desfavorecidos podem potencialmente escapar das escolas para os “mais pobres dos pobres” se trouxerem um pouco mais de capital econômico e cultural para a mesa. No entanto, as famílias mais pobres que não têm esses recursos não têm outra opção senão a escola pública local – o padrão para aqueles que não têm nada a oferecer além de seus vouchers” (tradução nossa).
- Para a profissionalização dos professores: “escolas privadas que calculam orçamentos com base nos vouchers dos estudantes não têm interesse em melhorar as habilidades e os salários dos professores, porque as famílias que se inscrevem para as matrículas pouco ou nada prestam atenção a esses critérios. Em vez disso, os pais de classe média geralmente fazem suas escolhas com base na rede social de colegas a que desejam se conectar, enquanto os pais de classe baixa geralmente escolhem com base na proximidade, segurança e clima da escola” (tradução nossa).
- Para a cidadania e integração social: “a evidência disponível indica que um sistema que prospera na competição e exclusão pode consistentemente produzir uma variedade de calamidades. Estes incluem: estudantes com discriminação e exclusão generalizada; baixa confiança pública; um foco em habilidades acadêmicas por resultados e uma negligência que para com a educação cívica; e um profundo desconforto estudantil como um movimento social tenaz que clama por uma opção pública mais forte e inclusiva” (tradução nossa).
- Para a conquista da opinião pública, uma vez que a privatização e a seleção social se tornaram universais: “recapturar a opção pública depois de ter sido abandonada é extremamente difícil. Os interesses privados são poderosos e as famílias ficam presas na luta pela distinção e vantagem social. Mudar um sistema privatizado é uma luta política árdua, mas também se torna um desafio cultural quando a competição de status se torna difundida e a equidade se torna um valor aparentemente inacessível” (tradução nossa).
A partir desta experiência, pesquisadores do campo, como Stephen Ball, têm apresentado propostas alternativas a este sistema, como por exemplo, um retorno aos princípios básicos e que implique em pensar qual é o sentido e os objetivos da educação e envolver a comunidade escolar nos processos de planejamento e execução de políticas educacionais, pois as proposta advindas dos “experts” e dos representantes políticos e dos interesses econômicos se mostraram frágeis, conforme descrito acima.
Assim, os defensores do argumento de que crianças de famílias em situação de vulnerabilidade social teriam melhores vantagens e maior desempenho estudando, com bolsas, em escolas privadas, ignoram, por diferentes razões, o que Diane Ravitch aponta ao dizer que os fundamentos de uma boa educação serão encontrados na sala de aula, em casa, na comunidade e na cultura, e coaduna com sua afirmação de que os reformadores do nosso tempo continuam a procurar por atalhos e respostas rápidas. Vale lembrar que essa discussão já foi superada na tramitação do novo e permanente Fundeb (EC 108/2020). Todas essas evidências nos levam, mais uma vez, a defender que a educação não deveria estar submetida a negociações políticas entre pessoas que não possuem conhecimento sobre o ensino e a aprendizagem, ou seja, sobre o direito à educação.
[1] Elaborada por Andressa Pellanda, coordenadora geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, com base na nota ““NOVO FUNDEB: EM NOME DE UM CONSENSO QUE PROMOVA O DIREITO À EDUCAÇÃO”, que analisou a proposta de vouchers não aprovada no novo e permanente Fundeb – EC 108/2020, elaborada por Andréia Mello Lacé – Doutora em Educação (UnB) e Professora Adjunta da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília; Andressa Pellanda – Doutoranda em Relações Internacionais (USP) e Coordenadora Geral da Campanha Nacional Pelo Direito a Educação; Catarina de Almeida Santos – Doutora em Educação (USP) e Professora Adjunta da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília; Daniel Cara – Doutor em Educação (USP) e Prof. Dr. FE/USP; Fernanda Vick Sena – Mestra em Direito do Estado (USP); Salomão Ximenes
Doutor em Direito (USP) e Prof. de Direito e Políticas Públicas da UFABC. Disponível em: https://media.campanha.
Referências bibliográficas
BALL, Stephen (2013), Education, justice and democracy: The struggle over ignorance and opportunity, Inglaterra: Center for Labour and Social Studies. Disponível em: https://www.bl.uk/
ONU. Right to education: the implementation of the right to education and Sustainable Development Goal 4 in the context of the growth of private actors in education. Report of the Special Rapporteur on the right to education. 2019. Disponível em: https://undocs.org/A/HRC/
ONU. The right to education: follow-up to Human Rights Council resolution 8/4. 2019. Disponível em: https://undocs.org/A/HRC/
ONU. The right to education resolution. 2021. Disponível em: https://undocs.org/A/HRC/
RAVITCH, Diane. (2011) Vida e morte do grande sistema escolar americano: como os testes padronizados e o modelo de mercado ameaçam a educação. Porto Alegre: Sulina.
TREVIÑO, Ernesto, MINTROP, Rick, VILLALOBOS, Cristóbal, & ORDENES, Miguel (2018). What Might Happen If School Vouchers and Privatization of Schools Were to Become Universal in the U.S.: Learning from a National Test Case—Chile. Boulder, CO: National Education Policy Center. Disponível em http://nepc.colorado.edu/
UNESCO. (2017). Responsabilização na educação: cumprir nossos compromissos. Relatório de Monitoramento Global da Educação – Resumo. Unesco. Disponível em http://unesdoc.unesco.org/