“Desmonte da educação e saúde enfraquece o Bolsa Família”
Especialista em políticas públicas e gestão Letícia Bartholo afirma que governo Bolsonaro "mutilou" estruturas do Estado que acompanham cumprimento das condições para receber programa
Ao longo de quase duas décadas o programa Bolsa Família, criado em 2003 no início do governo do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, tornou-se um dos mais exitosos programas de transferência de renda do mundo por sua elevada eficácia na redução da pobreza e da desigualdade e baixo custo fiscal. O Bolsa Família contribuiu, por exemplo, para reduzir taxas de mortalidade infantil e aumentar a frequência escolar de crianças em núcleos familiares vulneráveis.
O governo do presidente Jair Bolsonaro demonstrou verdadeira obsessão por mudar o nome do programa, para tirar a digital de Lula do benefício. Por meio de uma medida provisória (MP), o Executivo criou o chamado Auxílio Brasil. O texto inicial foi bastante criticado e modificado no Congresso.
Para a socióloga Letícia Bartholo, especialista em políticas públicas e gestão governamental e ex-secretária nacional adjunta de renda de cidadania (2012-2016), o governo atual criou uma grande confusão ao misturar no debate sobre a essência do programa de transferência de renda outras duas questões: a introdução de novos auxílios e a complementação temporária do benefício, apenas até o final de 2022, para que alcance R$ 400.
“Se as coisas estivessem separadas, a comunicação seria muito mais fácil. Como as pessoas já entendem o Bolsa Família, que está aí há 18 anos, não fazia sentido mudar o nome da transferência básica. É uma troca de nome que não se justifica. Se fosse uma discussão meramente técnica, não teríamos trocado o nome do Bolsa Família”, afirmou à DW Brasil a ex-secretária.
A socióloga acompanhou os debates políticos no Congresso e elogiou o empenho de parlamentares, da base governista e da oposição, para que vários aspectos da proposta original do Executivo fossem melhorados e modificados. O texto inicial desenhado pelo governo Bolsonaro, afirma, era “um total retrocesso”.
“A medida provisória veio do Executivo repleta de fragilidades. Não tinha nenhum parâmetro monetário, não fixava valores de benefícios nem valores de linha de pobreza. Criava novos auxílios, que eu chamo de penduricalhos, com desenhos bastante problemáticos e que competiam, do ponto de vista orçamentário, com o coração da transferência de renda, que é o que equivale ao Bolsa Família.”
A última modificação feita no Senado, no entanto, deixou a especialista abatida. A possibilidade de ainda existirem famílias na fila, aguardando o benefício, não foi extinta, como havia sido no texto que deixou a Câmara. Ainda assim, ela reconhece alguns avanços. Mas afirma: o êxito da transferência de renda aos mais pobres depende de um arranjo institucional muito azeitado, articulado, cujos atores se envolvam para que as condicionalidades sejam cumpridas. No momento atual, ela sustenta, assiste-se a um desmonte do Estado, sobretudo na educação, na saúde e na assistência social, o que pode comprometer a qualidade do Bolsa Família.
DW Brasil: O governo Bolsonaro decidiu modificar o Bolsa Família, reconhecido como o maior programa de transferência de renda do mundo, por medida provisória. Após muitas críticas técnicas e políticas, o texto da MP foi modificado no Congresso. Qual sua visão da proposta inicial formulada pelo Executivo e do que ficou agora?
Letícia Bartholo: A primeira coisa sobre a qual é preciso ter clareza: o que passou [inicialmente na Câmara, depois no Senado] não foi a medida provisória (MP) [editada pelo governo Jair Bolsonaro]. O que passou foi um projeto de lei de conversão (PLC) que é muito diferente da MP na medida em que transformou um monstrengo em algo decente. A medida provisória veio do Executivo repleta de fragilidades. Ela não tinha nenhum parâmetro monetário, não fixava valores de benefícios nem valores de linha de pobreza. Criava novos auxílios, que eu chamo de penduricalhos, com desenhos bastante problemáticos e que competiam, do ponto de vista orçamentário, com o coração da transferência de renda, que é o que equivale ao Bolsa Família. Basicamente, aquela medida provisória era um total retrocesso.
Estamos carentes de ver a boa política acontecer, mas isso aconteceu na votação da Câmara. Acho que o debate público foi essencial para fazer com que as críticas ao projeto chegassem à Câmara. O relator foi muito sábio e conseguiu atenuar as falhas e fazer avanços. Foi recomposta a linha de pobreza de 2018 pra cá, pela inflação. A MP limitava a no máximo 5 benefícios variáveis por família, e isso foi retirado. Foi retirada também a competição orçamentária entre os novos auxílios e o coração da transferência de renda, que é o Bolsa Família. E seria sem fila [no texto da Câmara].
No texto da Câmara foi fixado o coração da transferência de renda: os benefícios pagos a crianças, aos extremamente pobres e famílias com pessoas entre 0 e 21 anos. Ficou assim: um benefício para crianças de 0 a 3 anos (valor de R$ 130,00); um benefício acima de 3 a 21 anos; e tem o benefício de superação da extrema pobreza, que é o mesmo que já existia no Bolsa Família e completa a renda da família para que nenhuma pessoa fique abaixo da linha da pobreza.
O que aconteceu na votação do Senado? A grande crítica é que o texto final permite que haja fila de famílias à espera do benefício, como ocorre hoje?
O texto que veio da Câmara fazia uma distinção de status, em termos de despesas, em relação ao coração da transferência de renda, o que equivaleria aos benefícios do Bolsa Família, e aos demais novos auxílios. No texto da Câmara, a fila teria sido zerada porque o artigo 21 dizia que os benefícios seriam direitos das famílias extremamente pobres ou pobres, e que elas deveriam acessar a transferência tão logo se verificassem os requisitos. No entanto, justificando ou alegando uma emenda de redação, o Senado colocou esses benefícios do coração do programa no mesmo parágrafo em que, antes, estavam só os novos auxílios. É um parágrafo que diz que o número de beneficiários e valores de benefícios devem ser compatibilizados com a dotação orçamentária disponível. Esses benefícios, agora, não são mais despesas obrigatórias e que não podem ser diminuídas de um ano ao outro. A previsão de filas, então, volta. Ou seja, foi mantido um problema estrutural do Bolsa Família.
Em relação à extrema pobreza, o Ministério da Cidadania havia mudado a definição das faixas. Isso ocorreu antes da votação da MP no Congresso. O que significou, na prática, essa decisão do governo de reajustar a linha de pobreza? Qual impacto terá?
A MP que veio do governo não tinha nenhum valor, no sentido que não definia sequer a linha de pobreza. O regulamento saiu por decreto [nº 10.852] do Executivo. O que esse decreto diz: fixa a linha de pobreza em R$ 200 (renda per capita da família) e a de extrema pobreza em R$ 100. O que o relator [na Câmara] fez: subiu a de pobreza para R$ 210,00 e a de extrema pobreza R$ 105,00. Essa ampliação não deve ampliar o público do Bolsa Família de maneira significativa, mas tem um simbolismo importante.
O Executivo havia reajustado somente em 12% as linhas desde 2018. Isso foi importante porque o valor foi recomposto por toda a inflação do período, com reajuste de quase 21%. Não deve ampliar muito o número de famílias atendidas, mas foi um passo importante para que a gente não fique sempre trabalhando com valores muito defasados. É preciso definir isso, porque senão ficamos brincando de fragilizar a nossa transferência de renda mais efetiva para os mais pobres.
O que o relator não conseguiu, mas tentou, foi emplacar reajustes anuais pelo INPC. Tem um debate grande sobre indexação, e compreendemos esse debate. Mas a indexação poderia conferir mais segurança ao Bolsa Família. A cada ano eleitoral não teríamos esse “leilão de pobres”, de quem dá mais ou menos para o programa. E tenho a impressão de que para quem maneja o orçamento seria mais fácil lidar com pequenos reajustes a cada ano do que com reajustes injustificáveis, sem parâmetro, no susto. Mas isso o relator na Câmara não conseguiu.
Houve uma enorme discussão sobre esse volume exagerado de auxílios incluídos no texto da medida provisória, sem clareza, alterando a concepção do Bolsa Família. O que estava errado ali, na sua avaliação? E essas discrepâncias foram corrigidas pelo Congresso?
Isso foi profundamente atenuado ou corrigido. Na MP havia oito benefícios, e no projeto de lei de conversão também. Na verdade, apenas 3 deles são o coração do Bolsa Família, da transferência de renda em si. O restante é composto de novos auxílios. Na medida provisória, esse desenho veio eivado de problemas.
Vou dar um exemplo: o governo criou um benefício de R$ 200 para a família pobre que tiver alguém no mercado de trabalho formal. Como o benefício médio é de R$ 220, o que está se dizendo aqui é: a família pobre que tiver um integrante no mercado formal vai ganhar R$ 420. Qual é o problema disso: quem está no mercado formal já é menos vulnerável entre os vulneráveis, porque a formalidade já dá uma série de proteções, como o abono salarial e o salário família.
Então seria uma alocação espúria de recursos escassos do orçamento, privilegiando os menos vulneráveis entre os vulneráveis. Ou seja, um desenho [de transferência de renda] horroroso. O que o relator da Câmara fez: transformou isso numa espécie de poupança para quem tiver algum tipo de recolhimento previdenciário e for extremamente pobre, inspirado num projeto do senador Tasso Jereissati (PSDB-CE). O mais importante foi a definição, na Câmara, de que esses novos auxílios não competem, do ponto de vista orçamentário, com a transferência base [os três benefícios].
Mas como seria essa poupança para a concessão desses outros auxílios que o atual governo criou? Como isso vai funcionar na prática?
Na prática a gente só vai saber mesmo quando o governo regulamentar. Essa poupança está desenhada, mas foi jogado para regulamentação posterior. Nesse caso acho até que isso é bom, porque dá tempo aos técnicos do Executivo pensarem e construírem um desenho melhor. Como é algo inovador, essa abertura é importante.
Para entender: vamos supor que eu seja um beneficiário do Bolsa Família e que na minha família tem uma pessoa empregada, com carteira assinada. Isso significa que ela vai receber uma poupança futura, mas ninguém ainda sabe como, e que a minha família não vai receber, na prática, todo mês um dinheiro a mais?
É mais do que isso. Não basta ter a carteira assinada: uma pessoa da família deve fazer contribuição previdenciária. Essa pessoa fará jus a uma poupança. Não é um benefício que será pago todo mês. Agora, como serão feitos os depósitos, como serão feitos os saques: ainda precisamos esperar a regulamentação.
Mas essa ideia é boa? A intenção do governo seria estimular a entrada das pessoas no mercado de trabalho.
Temos que esperar. É algo inovador. Como ideia me parece algo interessante estimular a contribuição previdenciária e dar uma garantia a esses trabalhadores mais fragilizados.
E os outros auxílios criados? Há várias coisas difusas introduzidas num programa de transferência de renda que era extremamente bem sucedido e bem desenhado. Que consequências isso pode ter, em termos de política pública?
Então, esse é um problema que se mantém. É muita coisa no nome de um programa só. Idealmente daria-se um nome às transferências básicas, e outro nome aos outros auxílios. Inclusive essa transferência básica idealmente deveria continuar se chamando Bolsa Família, porque dá mais clareza e a população entenderia muito melhor do que está se falando. Esse seria o mundo ideal. Mas infelizmente não foi o mundo possível.
Se as coisas estivessem separadas, a comunicação seria muito mais fácil. Como as pessoas já entendem o Bolsa Família, que está aí há 18 anos, não fazia sentido mudar o nome da transferência básica. É uma troca de nome que não se justifica. Mas isso são questões políticas, e não fomos capazes de contornar isso. Se fosse uma discussão meramente técnica, não teríamos trocado o nome do Bolsa Família. Tecnicamente não seria necessário nem correto com a população mais pobre.
Em meio a esse debate surgiu a dúvida se esse novo desenho da transferência de renda prevê um pagamento do benefício somente até o final de 2022, com fortes críticas. Como ficou isso?
A opinião pública acha que estamos falando de uma coisa só, mas nós estamos falando de duas coisas. O projeto de lei de conversão que foi votado no Congresso diz respeito a um auxílio, uma transferência de renda, permanente. Basicamente, é o Bolsa Família reajustado. A complementação desse valor médio do benefício, de R$ 220, para R$ 400, é uma outra discussão. Isso estava no Senado [PEC dos Precatórios] e tem a ver com a compatibilização do orçamento [teto de gastos]. É essa complementação que talvez termine em 2022. O benefício médio de R$ 220 é permanente e não termina no ano que vem.
E, mais uma vez: aqueles novos tipos de auxílio [previstos no texto do projeto de lei de conversão] não tem nada a ver com esses R$ 400. O governo depende de um orçamento novo para fazer essa complementação de R$ 400, e isso ainda está em discussão no Congresso.
Então, na verdade, são três discussões paralelas: uma é sobre o Bolsa Família que foi reajustado, outra é sobre esses novos benefícios criados, mas que ninguém sabe ainda como serão regulamentados e pagos – que você chamou de penduricalhos –, e outra é sobre essa complementação do Auxílio Brasil permanente que pode chegar a R$ 400 e essa duraria só até dezembro de 2022.
O programa Auxílio Brasil abrange o coração da transferência de renda, que é o Bolsa Família, e esses novos auxílios [não regulamentados]. É confuso. Por isso digo que o governo deveria ter botado dois nomes e separado isso. Imagine a confusão que isso vai causar para as famílias pobres. O auxílio temporário vai ser pago na estrutura do auxílio permanente, mas é apenas um complemento. Acho que não foi sábio o governo misturar. Na grande necessidade de trocar o nome do Bolsa Família e criar um nome social, eles emplacaram essa confusão.
Vejo muita confusão entre as pessoas que não estão acompanhando de perto o debate sobre o que será permanente, o que será temporário, como ficou de fato o Bolsa, como ficam os outros benefícios. Isso é uma irresponsabilidade com os mais pobres. O governo possivelmente vai ter que soltar uma medida provisória, se conseguir isso no orçamento, para complementar e chegar a esses R$ 400. Esses debates são conectados, mas não são a mesma coisa.
O Bolsa Família é reconhecido mundialmente pelas condicionalidades muito bem desenhadas, como a frequência na escola, calendário de vacinação e acompanhamento nas redes de saúde, ainda que obviamente não seja um programa perfeito. Isso foi mantido?
Normativamente está garantido. O que existe é uma fragilização institucional desse acompanhamento. O importante das condicionalidades não é bloquear os benefícios da criança que não está indo à escola. O importante é agir e saber por que a criança não está indo à escola. Para isso, você precisa mobilizar todos os atores envolvidos, da assistência, educação e saúde. As estruturas da burocracia que faziam essa mobilização e essa articulação foram mutiladas no governo Bolsonaro. Esses arranjos institucionais estão enfraquecidos e isso enfraquece a qualidade do acompanhamento. É um desmonte que vem da corrosão interna das estruturas do Estado, sobretudo de educação, saúde, assistência social, cidadania etc.