A Constituição de 1988 e a construção de uma nova realidade social
Por José Geraldo de Santana Oliveira*
“As histórias acabaram por transformar-se em lendas e as lendas em símbolos, mas a guerra dos oprimidos contra os opressores continuou. Era uma flama, que às vezes queimava com esplendor ofuscante e às vezes era pouco mais que uma brasa viva, mas que jamais se apagaria – e o nome Spartacus não foi esquecido” (Howard Fast, em Spartacus).
As belíssimas palavras da epígrafe referem-se à guerra dos escravos, liderada por Spartacus, contra a impiedosa tirania do Império Romano, no século VIII, antes da era cristã.
No entanto, por representar o sonho que embala os oprimidos há milênios, adquirem caráter universal e atemporal; bem se calham com a rica história do povo brasileiro, sobretudo aquela que se inicia com a renúncia de Jânio Quadros, em agosto de 1961, para se fazer um pequeno recorte na sua luta secular.
De 1961 a 1988, o povo brasileiro viveu sob um céu carregado e rajado – parafraseando o poeta Raul Seixas, em sua música O Trem das Sete –, mas, principalmente, de tirania e de chumbo.
Durante esse período, notadamente, após o maior símbolo da tirania dos militares, o Ato Institucional N. 5, o tristemente famoso AI-5, baixado aos 13 de dezembro 1968, a flama da liberdade queimou-se, com um esplendor ofuscante, levando o regime facínora ao seu estertor, que se deu em março de 1985.
A partir da queda do regime militar, que, por longos 21 anos infernizou o Brasil e o seu povo, iniciou-se a luta pela conquista de uma Constituição que, efetivamente, fosse digna do Brasil e do povo brasileiro – parafraseando Dom Pedro I, por ocasião da discussão sobre a Constituição de 1824, a primeira do Brasil, que, na verdade, se era digna do Imperador, jamais chegou a sê-lo do povo.
Em 1º de fevereiro de 1987, foi instalada a tão almejada, festejada e inesquecível Assembleia Nacional Constituinte. Dessa data até o dia 5 de outubro de 1988, o Brasil viveu os seus dias mais longos e agitados, porque neles se derramava um turbilhão de esperanças, de um lado, e pressões e ameaças, de outro, promovidas por aqueles que queriam manter a opressão que o povo já não mais suportava.
Durante esse período, o povo brasileiro manteve-se vigilante, empunhando a bandeira da liberdade e da cidadania.
Finalmente, o dia tão esperado chegou: foi o dia 5 de outubro de 1988, portanto, há exatos vinte e cinco anos, ou cinco lustros, como preferem os portugueses. Naquele dia, o timoneiro da Constituinte, um dos maiores estadistas da história do Brasil, o saudoso e inesquecível deputado Ulysses Guimarães, promulgou a Constituição da República Federativa do Brasil (CR), a Constituição Cidadã, nas suas felizes palavras.
Segundo o filósofo alemão, Karl Marx, “vinte anos, para a história, significam um dia ou talvez menos, mas, há dias que concentram em si vinte anos ou mais”.
Os dias de trabalho da Assembleia Nacional Constituinte, que culminaram com a promulgação da CR, com certeza concentraram, em si, mais de 20 anos de luta árdua e desigual, por meio da qual se jorraram lágrimas, suor, dor e muito sangue: tudo em prol da liberdade, como profetizada pela poetisa Cecília Meireles: “Liberdade, essa palavra que o sonho humano alimenta, que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda”.
O preâmbulo da CR, que condensa os seus objetivos, é um hino à liberdade e à cidadania plena, e, por conseguinte, à democracia. Por isso, vale a pena repeti-lo, aqui:
“Nós, os representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida com, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL”.
Como, nestas breves linhas, não cabe uma merecida análise circunstanciada da CR, destacam-se os fundamentos insertos em seu Art. 1º, sobre os quais se erige a República, de que fala o preâmbulo, quais sejam: a soberania; a cidadania; a dignidade da pessoa humana; os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; e o pluralismo político; bem assim, o que preconiza o 193: “ A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivos o bem-estar e a justiça sociais”.
Se é fato que a CR contém diversas contradições e amarras que a correlação de forças do período de 1987 e 1988 não conseguiu romper, também o é que ela implanta as bases para a construção de uma nova realidade social, fundada no bem-estar e na justiça sociais, como determina o seu Art. 193.
Pode-se dizer, sem receio algum, que a CR de 1988 erigiu as bases para a construção do templo novo, com que sonhou o poeta maior, o revolucionário Castro Alves, em seu magnífico poema O Século; se este templo ainda não se concretizou, o que é fato, isto é outra história, cuja análise não cabe neste estreito espaço. Mas ainda há tempo e bases para tanto, e isto acontecerá tão logo a flama da inquietude e da busca perene da liberdade, que, hoje, é pouco mais que uma brasa viva, volte a queimar com esplendor ofuscante, como acontecera até 5 de outubro de 1988.
Por tudo o quanto se disse, o dia 5 de outubro não pode ser apenas uma data importante para o Brasil, lembrada como se lembra um ente querido que se foi; urge que ele seja para o povo brasileiro o que dia 2 de julho é para os baianos: o dia da independência.
Isto porque, em que pesem os desmedidos esforços dos que querem fazer a roda da história girar para traz, o que resultou em nada menos que 74 emendas, sendo que mais de 60 para mutilá-la, a CR de 1988, pelo seu simbolismo e por seus objetivos e parâmetros, em tempo algum será apagada da história do Brasil e de seu povo, podendo fazer suas as palavras do lendário personagem da idade média, Fausto, retratado pelo poeta e romancista alemão, Goethe, em imperdível obra homônima: “os vestígios de meus dias, na terra passados, nem em milênios serão apagados”.
Vivas ao povo brasileiro! Vivas à CR de 1988, vida longa a ela.
*José Geraldo de Santana Oliveira
Consultor jurídico da Contee