A contribuição assistencial e o direito de oposição na hermenêutica estruturante do Direito Coletivo do Trabalho
Em setembro de 2023, o STF reviu a jurisprudência sobre a contribuição assistencial, no julgamento do Tema n. 935, de Repercussão Geral. E o fez em sede de julgamento de embargos de declaração, diante das significativas alterações das premissas fáticas e jurídicas sobre as quais se assentava o voto inicial proferido no mesmo processo (ARE 1018459) há mais de seis anos, modificações essas promovidas pela dita Reforma Trabalhista (Lei 13.467/2017), quanto às fontes de custeio das atividades sindicais. Mais especificamente, diante da extinção do imposto sindical, da contribuição sindical compulsória que vigia há décadas. Por maioria (o próprio Relator, Ministro Gilmar Mendes, aderiu aos fundamentos do voto divergente do Ministro Luis Roberto Barroso), os Ministros fixaram o seguinte entendimento:
“É constitucional a instituição, por acordo ou convenção coletivos, de contribuições assistenciais para todos os empregados de uma categoria, ainda que não sejam sindicalizados, desde que assegurado o direito de oposição.”
Portanto, o STF admitiu a cobrança da contribuição assistencial prevista no art. 513, “e”, da Consolidação das Leis do Trabalho (“São prerrogativas dos sindicatos: impor contribuições a todos aqueles que participaram das econômicas ou profissionais”), inclusive aos não filiados ao sistema sindical, assegurando ao trabalhador o direito de oposição.
Quando da prolação da decisão embargada, o modelo de sindicalismo criado pela Constituição Federal de 1988 sustentava-se em um tripé formado pela unicidade sindical (art. 8o, II), representação estruturada por categoria (art. 8o, III) e a contribuição sindical compulsória (art. 8o, IV,).
O fim abrupto do imposto sindical afetou a principal fonte de receita das instituições sindicais, provocando uma desestabilização financeira, a ponto de colocar em risco a própria atividade sindical, a representação adequada de trabalhadores, e de comprometer as negociações coletivas de trabalho.
Como dito no julgamento em comento: “a possibilidade de criação da contribuição assistencial, destinada prioritariamente ao custeio de negociações coletivas, com a garantia do direito de oposição, assegura a existência do sistema sindicalista e a liberdade de associação.”
Para que uma pessoa, natural ou jurídica, conduza a sua vida com independência e autodeterminação, é necessário que tenha autossuficiência econômica. Qualquer planejamento pessoal, coletivo ou empresarial pressupõe a avaliação e disponibilização dos custos das ações para o alcance dos objetivos almejados.
A capacidade econômica é um elemento primordial para o exercício de qualquer liberdade, seja ela individual ou coletiva, especialmente quando se trata de associações formadas por setores socioeconômicos, em princípio, destituídos de riqueza e de poder, constituídas por pessoas físicas que vivem exclusivamente de sua força de trabalho, como é o caso das organizações sindicais profissionais.
Portanto, o financiamento sindical materializa a liberdade sindical. Sem fonte de custeio sindical não há liberdade sindical, torna-se inviável o exercício da atividade sindical, a defesa e a proteção coletiva da classe trabalhadora.
A contribuição assistencial, também conhecida por contribuição negocial, cota de participação negocial, cota social, taxa de fortalecimento ou revigoramento sindical, ou negocial em nada se confunde com a vetusta contribuição sindical compulsória. Constituem “fake News” as notícias disseminadas em órgãos de imprensa de que o STF ressuscitou o imposto sindical no julgamento do Tema n. 935.
Uma diferença gritante com a revogada contribuição sindical compulsória é que a contribuição assistencial não favorece, indistintamente, a todos os sindicatos – especialmente os sindicatos de mero carimbo e sem representatividade efetiva -, mas somente àquelas entidades que tiveram a organização, a potência, a estratégia e a representatividade de celebrar negociação coletiva de trabalho, em firmar um dos instrumentos normativos previstos no ordenamento jurídico pátrio: acordo coletivo ou convenção coletiva de trabalho.
Trata-se, a contribuição assistencial ou negocial de fonte de custeio bem mais democrática, equânime e justa, inclusive porque sua instituição é deliberada em assembleia pelos próprios trabalhadores – e não imposta por lei heterônoma – para ser inserida em normas coletivas autônomas, produzidas pelos próprios interessados.
Portanto, a contribuição assistencial ou negocial tem como substrato jurídico uma norma coletiva (acordo ou convenção coletiva), fundada na autonomia privada coletiva, e devidamente aprovada pela assembleia da categoria. Tem como finalidade o custeio da representação e das ações sindicais, principalmente daquelas que possibilitam a celebração de uma norma coletiva, com a aquisição de direitos e vantagens para todos os membros da categoria.
Considerando-se que, no sistema de organização sindical brasileiro, a entidade sindical representa na negociação coletiva todos os trabalhadores pertencentes à categoria profissional, independentemente de filiação à entidade sindical, afigura-se legítima a previsão no instrumento normativo (acordo ou convenção coletiva) de que contribuição assistencial abrange filiados ou não da entidade sindical, ou seja, de que açambarca todos que se beneficiam das conquistas previstas nos instrumentos normativos. Nada mais justo, segundo a ideia de justiça representada por uma lógica bem singela: aqueles que se beneficiam da colheita devem ser chamados a repartir os custos da plantação.
Indubitavelmente, o entendimento esposado na novel decisão proferida pelo STF no Tema n. 935, é a que melhor atende aos princípios do Direito Coletivo do Trabalho. É compreensível a dificuldade do entendimento dessa decisão pelos mais arraigados contratualistas, em compreender como que a representação do sindicato, entidade privada, extrapola o âmbito de seus associados, abrangendo toda a categoria profissional ou econômica, por força do mandamento constitucional. O efeito erga omnes é uma peculiaridade dos acordos e convenções coletivas do trabalho. Atribui-se a Carnelutti a máxima de que as normas coletivas trabalhistas têm corpo de contrato e alma de lei.
O Direito Coletivo do Trabalho é desprestigiado pelos próprios operadores do Direito do Trabalho. A teoria jurídico-trabalhista predominante, o chamado senso comum teórico dos juristas, dá pouca importância ao Direito Sindical. É rarefeita a cadeira de Direito Coletivo do Trabalho em cursos de graduação em faculdades de Direito, quando muito, tratado como apêndice do Direito Individual do Trabalho. Nas obras jurídicas, o objeto, os princípios e os postulados do Direito do Trabalho são todos construídos e erigidos sobre a relação individual do trabalho.
Enquanto, as relações coletivas se distinguem radicalmente das relações individuais. Estas se instituem a partir da interação direta entre empregados e empregadores, são frutos dos contratos individuais de trabalho, com regras com incidência particulares, destinadas as situações concretas, individualmente constituídas. Já os interesses coletivos estão vinculados às relações abstratamente constituídas entre categorias profissionais e econômicas ou parte delas.
Uma negociação coletiva, qualquer que seja seu âmbito ou alcance, por empresa, categoria econômica, em nível municipal, estadual, nacional, transnacional, objetiva produzir norma abstrata para valer nesses respectivos âmbitos e ter vigência e eficácia nas relações individuais de trabalho.
Como é sabido, o Direito do Trabalho surgiu das lutas operárias, do confronto entre direitos ontologicamente distintos, dos empresários e trabalhadores (capitalismo versus proletariado). Portanto, o Direito Sindical apareceu antes do Direito Individual do Trabalho.
Se foi a luta operária quem desencadeou o surgimento do Direito do Trabalho, um dado histórico, tem- se que “o Processo Negocial de Formação da Norma Trabalhista ainda se constitui como a mais importante e revolucionária experiência jurídica de todos os tempos”, como asseverado pelo Professor Everaldo Gaspar de Andrade1.
A negociação coletiva de trabalho deve ser historicamente compreendida como o veículo de transição do Estado de Direito Liberal para o Estado de Direito Social. Com o advento do Direito do Trabalho, fruto da luta operária, o trabalhador passou de objeto do contrato de locação de serviços do Direito Civil, para sujeito de direito (pessoa humana e não uma mercadoria).
Nas relações coletivas de trabalho, a manifestação da vontade dos trabalhadores faz-se por meio da assembleia, no uso da denominada “autonomia da vontade privada coletiva”.
A contribuição assistencial ou negocial deverá ser aprovada em assembleia geral sindical de trabalhadores para ser inserida no instrumento coletivo, com conteúdo amplo e diversificado, dirigida às partes coletivas pactuantes, inclusive aos trabalhadores da respectiva categoria (convenção coletiva) ou empregados da respectiva empresa (acordo coletivo).
A assembleia é a instância máxima do sindicato. A assembleia geral é a instância superior e soberana do sindicato e suas decisões obrigam todos os filiados que se submetem à disciplinação estatutária. Porém, em se tratando de interesses da categoria profissional, como um todo, inerentes à negociação coletiva, as deliberações da assembleia obrigam todos os representados independentemente de filiação sindical, por força da prevalência da liberdade sindical coletiva.
A liberdade sindical, tal como concebida e preconizada nos convênios internacionais, é pluridimensional, compreende tanto o plano individual como coletivo. No plano individual, abrange a tão brandida liberdade da pessoa física de se filiar e se manter filiada a sindicato. No julgamento da ADI 579, o Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade da extinção da obrigatoriedade da contribuição sindical, do fim do imposto sindical, com base na liberdade sindical em seu aspecto negativo, de que não se pode admitir que tal contribuição seja legalmente imposta a trabalhadores e empregadores quando a Constituição preceitua que ninguém é obrigado a se filiar ou a se manter filiado a uma entidade sindical. Mas a liberdade sindical é muito mais do que isto.
Como expressão da cidadania, a liberdade sindical envolve o direito de participação e atuação sindical, sem sofrer qualquer discriminação, o direito de voz e voto nas assembleias, nos movimentos e ações desenvolvidas pelo sindicato de classe, o direito de votar e ser votado, de eleitor e elegibilidade para os cargos de administração e representação. Como também o direito coletivo de entabular negociação coletiva e o direito de greve.
No plano coletivo, o conceito de liberdade sindical estimula o livre e efetivo exercício da atividade sindical, sem quaisquer restrições, assim como e o direito de negociação coletiva e o direito de greve.
O direito ao “reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho”, previsto no art. 7o, inciso XXVI, da Constituição Federal, é intrínseco à liberdade sindical.
O direito de oposição à contribuição assistencial ou negocial não consubstancia o exercício da liberdade sindical individual, de se manter ou não como filiado à entidade sindical, vez que a contribuição assistencial tem como objetivo possibilitar as conquistas laborais para a coletividade, na sua perspectiva erga omnes.
Como sobredito, a negociação coletiva objetiva a celebração de norma coletiva com outorga de direitos que integrarão o patrimônio jurídico-material do trabalhador pelo simples fato dele pertencer à categoria representada.
Nesse contexto hermenêutico-estruturante do Direito Coletivo do Trabalho o direito individual de oposição assegurado pelo STF deve ser manifestado na assembleia sindical que instituiu a contribuição assistencial ou negocial, como sublinhado no voto do Ministro Luis Roberto Barroso:
“Portanto, deve-se assegurar ao empregado o direito de se opor ao pagamento da contribuição assistencial. Convoca-se a assembleia com garantia de ampla informação a respeito da cobrança e, na ocasião, permite-se que o trabalhador se oponha àquele pagamento”.
Cabe às assembleias sindicais, de forma transparente e democrática propor, discutir e aprovar as contribuições para custeio das atividades sindicais. É assim que se procede nas assembleias das demais associações civis e em condomínios e o Estado e ninguém interfere ou se intromete sobre o que foi decidido. De igual modo, não se deve interferir no que que foi decidido na assembleia sindical, sob pena de violação do princípio constitucional e internacional da liberdade sindical, em seu âmbito coletivo.
Estender o direito de oposição para o período posterior ao da assembleia sindical que definiu o desconto coletivo da contribuição assistencial significa a autonomia da vontade individual em detrimento da autonomia coletiva privada dos trabalhadores, em afronta às regras, princípios e postulados do Direito do Direito Coletivo do Trabalho, notadamente do primaz Princípio da Prevalência das Relações Sindicais sobre as Relações Individuais.
Noutras palavras: pugnar pela projeção do direito de oposição no horizonte temporal significa exacerbar o individualismo em detrimento da união, organização coletiva dos trabalhadores, ou seja, caminhar na contramão dos princípios do Direito Coletivo do Trabalho, em sentido diametralmente oposto ao do fortalecimento das entidades sindicais, em menoscabo à negociação coletiva, ao princípio constitucional e internacional da liberdade sindical em sua vertente coletiva.
A negociação coletiva é um direito social fundamental exatamente por consistir num instrumento de democratização do poder e riqueza no seio da sociedade civil, num importante veículo institucionalizado para o progresso dos direitos sociais por meio da mobilização dos trabalhadores, na luta coletiva pela melhoria das condições de vida e de trabalho.
Comumente, a defesa da projeção no tempo do direito individual de oposição à contribuição assistencial é resultado de preconceito ilegítimo (e indisfarçável) com relação aos sindicatos, como bem advertem Ronaldo Lima dos Santos e Jefferson Luiz Maciel Rodrigues2 : “Sob a suposta tentativa de privilegiamento do trabalhador individual pode se ocultar, na realidade, uma antissindicalidade, com o consequente enfraquecimento da coletividade e, num círculo vicioso, também a intensificação da hipossuficiência econômica e jurídica do trabalhador individual. Porque se há um fato inquestionável e que a história demonstra é que os direitos sociais são frutos, essencialmente, da luta coletiva dos trabalhadores”
De fato, a organização dos trabalhadores em sindicato mostrou-se indispensável na luta pela melhoria das condições de vida e de trabalho, para àqueles que, isoladamente são pobres e fracos, tornam-se fortes quando agrupados nesse importante corpo intermediário da sociedade civil, em consonância com a própria origem etimológica da palavra sindicato, que provém do grego syn-dike, isto é, “justiça juntos”.
ROBERTO PARAHYBA DE ARRUDA PINTO
Especialista em Direito do Trabalho pela Universidade de Salamanca, Espanha. Presidente da Associação dos Advogados Trabalhistas de São Paulo (1996- 1998 e 2002-2004). Diretor da AASP (2005-2013), Presidente da ABRAT – Associação Brasileira de Advogados Trabalhistas 2016-2018). Professor da Escola da ABRAT
SANTOS, Ronaldo Lima dos; RODRIGUES, Jefferson Luiz Maciel. Tese de Repercussão Geral,
Tema n. 935 do STF Contribuição Assistencial Sindical: uma reparação histórica. Revista do
Tribunal do Trabalho da 2a Região, São Paulo, v. 15, n. 30, p. 250-271, jul./dez. 2023