A Cultura do Brasil está sendo asfixiada

Por Léa Maria Aarão Reis

Há cerca de dez dias, o cineasta e um dos mais experientes documentaristas brasileiros Silvio Tendler, autor de filmes memoráveis como os clássicos Jango, Os anos JK, Militares da democracia, Privatizações: a distopia do capital e O veneno está na mesa, lançou uma convocação, como ele diz, que são, simultaneamente, um alerta e um S.O.S. em prol da recriação do Ministério da Cultura deste país. Reformulado há 35 anos, quando sua autoridade foi desvinculada da pasta da Educação, o MinC foi extinto com presteza, logo no começo do atual governo, transformado em Secretaria e incorporado ao Ministério da Cidadania!Mas as suas atribuições, essenciais em qualquer país civilizado, foram mais uma vez transferidas, escandalosamente, dessa vez para o Ministério do Turismo (Medida Provisória 870) onde o ex-MinC se encontra alocado desde então, com o status de ”Secretaria Especial da Cultura”, numa sala obscura do … Turismo!

Teoricamente, suas atribuições continuam as mesmas de antes. A Secretaria, ou seja o ex-MinC, é responsável pelas Letras, Artes, Folclore e outras formas de expressão da cultura, e pelo patrimônio histórico, arqueológico, artístico e cultural do país.

Mas na realidade, como bem adverte a convocação de Tendler, a qual em apenas duas semanas viralizou e está repercutindo com vigor nos meios artísticos e culturais de todas as partes do Brasil, ” a extinção do Ministério da Cultura é a tentativa de destruir nossa superestrutura cultural e ideológica para fragilizar-nos como nação. A nação é o seu povo e o que caracteriza o povo é a sua cultura.”

A extinção do MinC é peça fundamental do projeto do atual governo neofascista em marcha cada vez mais acelerada.

O texto da importante convocação de Tendler a todos os trabalhadores da cultura nacional segue abaixo. Ele foi lido numa reunião realizada no fim de semana passado, durante a qual o diretor baiano Orlando Senna, ex-secretário nacional do áudio-visual do MinC e personagem emblemático do movimento da Tropicália, lançou a idéia de montar um Ministério da Cultura paralelo, uma alternativa à Secretaria atual. O nome de Gilberto Gil, uma possibilidade para Ministro dessa pasta.

Leia a convocação de Silvio Tendler:

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”Uma elite gananciosa que quer tudo e um povo que vive com quase nada, frequenta um SUS fragilizado há anos e escolas ineficientes, fruto do congelamento de investimento público. Arte, cultura e ciência assediadas pela censura econômica e política e por uma doutrina terraplanista.

Volta Galileu e vem educar esta gente!

A extinção do Ministério da Cultura é a tentativa de destruir nossa superestrutura cultural e ideológica para fragilizar-nos como nação. E o que caracteriza o povo é a sua cultura. Um país não se limita às suas fronteiras físicas e geográficas.

Somos milhões de trabalhadores da cultura paralisados, dispersos ou desempregados. O governo flerta com o totalitarismo e nos intimida com o poder miliciano.

Estamos vivendo uma das maiores crises sanitárias de todos os tempos. Pandemia trágica para milhares de famílias brasileiras, em especial para as mais humildes, completamente abandonadas pelo poder central.

Recolhidos em nossas casas, velhos e novos filmes, músicas e atividades artísticas nos fazem companhia nessa solidão imposta pela pandemia. Nesse momento, as pessoas percebem a importância da arte em suas vidas.

Queremos um mundo em que o Estado seja voltado para o bem-estar de seus cidadãos e cidadãs, ou que seja voltado para facilitar a acumulação de bens de uns poucos milionários? Qual será nossa relação com a natureza, convívio harmônico ou exploração predatória como tem sido até agora?

O futuro é nosso, cabe a nós decidir.

‘Estados Gerais da Cultura’ é um movimento coletivo, autônomo e independente, para atuar na construção desse futuro; somos os verdadeiros protagonistas da nossa História.

Que futuro queremos no mundo que emergirá da pós-pandemia? Um mundo solidário em que a centralidade seja o ser humano e a natureza ou continuaremos reféns do cassino financeiro? A reconstrução do Ministério da Cultura é apenas um primeiro passo necessário para o restabelecimento da nossa unidade como agentes culturais.

Hoje, assistimos ao desmantelamento da Cinemateca Brasileira, matriz da memória imagética do país; desmantelamento da Casa de Rui Barbosa, importante centro de documentação, pesquisas, reflexão e documentação; intervenção no IPHAN permitindo a degradação do nosso patrimônio arquitetônico a serviço da especulação imobiliária; o silenciamento da FUNARTE e das suas atividades ligadas às artes plásticas, dança, fotografia; e a Ancine, com o sequestro do FSA-Fundo Setorial do Audiovisual, deixando a atividade quase que totalmente paralisada.

Hoje, somos milhões de trabalhadores desempregados num setor que gera arte, cultura e entretenimento, além de dividendos para o país. O Ministério da Economia é incapaz de enxergar a indústria criativa como um setor altamente rentável, que gera recursos e prestígio internacional para o Brasil.

A reconstituição do Ministério da Cultura como Organismo de Estado, independente da ingerência de governos, é URGENTE e NECESSÁRIA. Muitos nos perguntam como isso será possível diante de um governo como o que temos. Qual a possibilidade concreta de sairmos vitoriosos neste embate?

Respondo: homenageando Therezinha Zerbini e dizendo que lutaremos com a mesma humildade e tenacidade que a levaram à luta pela Anistia no auge da ditadura, ou a lucidez que levou o jovem deputado Dante de Oliveira a lutar pelas Diretas Já.

Somos artistas, sabemos fazer arte e nos comunicar com o público. Essa é nossa especialidade. Cada um da sua forma, com a técnica e a estética que tiver à mão, saberá falar da importância da nossa luta: fazendo teatro na rua ou na rede, filmes que viralizam nas mídias eletrônicas; grafitando, se apresentando nas comunidades ou onde for, combateremos a política de terra arrasada e começaremos a construir um mundo novo.

A reforma trabalhista, que nos prometia milhões de empregos e gerou milhões de desempregados, além do enfraquecimento dos sindicatos e da perda dos direitos dos trabalhadores resultou no enfraquecimento da previdência. Só cortaram direitos dos mais pobres, preservaram os privilégios dos mais ricos, o que nos leva a temer pelo nosso futuro.

Pensemos no ano de 2022, não pelo processo eleitoral que vai se estabelecer mas pela comemoração do bicentenário da Independência, pelo centenário da Exposição Universal e pelo centenário da Semana de Arte Moderna que projetaram o Brasil no século XX.

Nós, trabalhadores da Arte e da Cultura, juntos com historiadores, sociólogos, geógrafos, sindicalistas, militantes comunitários, de gênero, e de quem mais quiser tomar seus destinos nas próprias mãos será bem vindo.

Portanto, conclamamos a todos: com arte, ciência e paciência, mudemos o mundo.

A convocação do Estado Geral da Cultura tem como objetivo colocar na mesma sala, de forma espontânea, pessoas das mais diversas áreas de atuação do conhecimento interessadas no avanço rumo a um futuro de bem- estar social para todos, tendo como alavanca a ação artística e cultural. Convocamos todos a ser protagonistas da própria História, através de seus meios de expressão e ação. Tudo o que as ferramentas tecnológicas permitem utilizemos como instrumento de conscientização, luta e fortalecimento respeitando as nossas tradições e nosso patrimônio étnico-cultural.

Como disse o jornalista italiano Walter Veltrone, o passado é confortável, mas o único lugar que nos abrigará é o futuro. Assim, que o façamos justo e prazeroso para todos. Com arte, ciência e paciência construiremos um mundo melhor.”

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No seu protesto, Tendler chama a atenção para o desmonte e a desvirtualização da Funarte, da Ancine, da Fundação Casa de Rui Barbosa onde talentosos pesquisadores estão se aposentando ou vão sendo exonerados. É o caso da professora e crítica literária Flora Sussekind, historiadora com 39 anos de trabalho exemplar e uma das mais antigas na Fundação, da jornalista e doutora em Comunicação e Cultura Joëlle Rouchou, chefe do Centro de Pesquisa em História e de quatro funcionários com cargos de chefia na instituição, um dos mais importantes centros de pesquisa do Brasil e referência para pesquisadores de todo o mundo.

A Cinemateca Brasileira, em São Paulo, se encontra praticamente abandonada, funcionários do seu corpo técnico não recebem salários desde abril e é grande o risco que correm os preciosos acervos de filmes, fotografias, documentos e livros lá preservados em laboratório de restauro e em armazéns climatizados, ” equipados e construídos com recursos públicos,” como lembra o cineasta Eduardo Escorel.

Outra empresa atuante sob o guarda-chuva do ex-MinC, a Escola de Cinema Darcy Ribeiro – Instituto Brasileiro de Audiovisual, no Centro do Rio de Janeiro, está sob ameaça de despejo. E há poucos dias foi anunciada mais uma rasteira na cultura brasileira, que atinge o acesso da população a sessões cinematográficas. Sob pressão da rede de exibidores de filmes, tenta-se suprimir a meia-entrada nas salas de cinemas, destinada, por Lei Federal 12 933 de dezembro de 2013, aos estudantes, jovens de baixa renda, pessoas com deficiência e idosos.

Diante desse panorama de devastação cultural, e movido pela indignação e pela paralisia que, diz Tendler, ”nos assola neste momento de pandemia, fiquei muito preocupado com o fato de sermos todos nós pautados a cada semana por ações do monstruoso atual governo. Decidi inverter essa estratégia e como o inimigo é bélico e só entende os movimentos de guerra, resolvemos, no ‘Estados Gerais da Cultura’, criar a Escola Superior da Paz para começar a destruir o pensamento bolsonarista, desmontá-lo e começando por estudá-lo.”

A ação efetiva do movimento ”contra a catatonia e contra a estratégia do ódio” começou há menos de uma semana com o primeiro gesto, uma palestra em live com capacidade inicial para cem pessoas (a sala logo lotou), mas que será ampliada nas próximos encontros.

”O desmantelamento geral cultural que Bolsonaro promove,” ressalta Silvio, ” é inclusive covarde e criminoso porque milhões de pessoas vivem dessa cadeia econômica.”

Agora, aguardar e acompanhar os próximos passos, palestras e os próximos encontros do ‘Estados Gerais da Cultura’ que está sendo gestado em ambiente de resistência semelhante a outros, do passado, já vividos no país e filmados pelo próprio cineasta: Os anos JK ( lançado em plena ditadura e AI-5), Jango (um milhão de espectadores nas primeiras semanas de exibição), e os perfis inesquecíveis de Josué de Castro (e sua Geografia da Fome), Milton Santos (e a globalização) e Glauber Rocha, artista e libertário.

Todos eles, referências e nossos guias na jornada atual, nesse cenário de caos, e contra ”editais em razão do conteúdo dos filmes produzidos, contra o esvaziamento da Lei Rouanet e contra a nomeação de nomes ideológicos a postos-chave da burocracia estatal que cuida do incentivo às artes,” como salientaram em recente conversa no Diálogos do Sul os jornalistas Paulo Cannabrava Filho, João Pimentel Neto e Silvio Tendler.

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