A democracia brasileira morreu?
Por José Geraldo de Santana Oliveira*
“A morte saiu à rua num dia assim
Naquele lugar sem nome pra qualquer fim
Uma gota rubra sobre a calçada cai
E um rio de sangue dum peito aberto sai
O vento que dá nas canas do canavial
E a foice duma ceifeira de Portugal
E o som da bigorna como um clarim do céu
Vão dizendo em toda a parte o pintor morreu
Teu sangue, Pintor, reclama outra morte igual
Só olho por olho e dente por dente vale
À lei assassina, à morte que te matou
Teu corpo pertence à terra que te abraçou
Aqui te afirmamos dente por dente assim
Que um dia rirá melhor quem rirá por fim
Na curva da estrada, há covas feitas no chão
E em todas florirão rosas duma nação”
O revolucionário poeta e cantor português Zeca Afonso (1928-1987), com esta belíssima canção de 1972, a um só tempo: retoma o seu incansável e nunca esmorecido brado contra o salazarismo (versão portuguesa do fascismo), que infelicitou e desonrou Portugal de 1933 a 1974; homenageia o pintor comunista, José Dias Coelho, assassinado pela polícia política do salazarismo (Pide), em 1961; e conclama a nação a jogar a derradeira pá de cal nesse insepulto cadáver – o que foi feito em 1974, com a Revolução dos Cravos, que teve como senha e hino a sua imortal canção “Grândola, Vila Morena” – e, a partir dela, construir uma nova realidade social.
No Brasil, desde o dia 3 de dezembro de 2015 – data em que o facínora político, Eduardo Cunha, recebeu o pedido de impeachment da presidente Dilma –, indiscutivelmente, a morte não só saiu à rua, bem como não saiu da rua; ainda não é a morte física, mas, sim, a da decência, da ética, da moralidade e do bem-estar social, sem os quais não há cidadania.
A partir dele, várias cenas de horror foram protagonizadas, com a admissibilidade do referido pedido, pela Câmara Federal, aos 17 de abril de 2016; a abertura do processo pelo Senado Federal, aos 11 de maio; a posse do conspirador Michel Temer, aos 12 de maio; as suas medidas políticas e econômicas, já concretizadas e as que se anunciam.
Como no caso português, em que o assassinato do citado pintor simbolizava mais um petardo contra a liberdade de ação, expressão e pensamento, vilipendiada desde 1933, no Brasil, por mais que o neguem os promotores do impeachment da presidente Dilma, a sua consecução tem por escopo a morte do Estado Democrático de Direito.
Com a posse interina de Michel Temer, decorrente da quase fatal punhalada do Senado, ao Estado Democrático de Direito, um rio de sangue de um peito sai; não do peito do pintor – como na música de Zeca Afonso –, mas do peito da nação, que sangra à exaustão.
E o que é mais surrealista – melhor seria dizer fantasmagórico – neste contexto é que o carrasco do Estado Democrático de Direito são aqueles a quem a Constituição de 1988 confiou a sua guarda: os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.
O último episódio, até agora, que teve lugar no Senado, protagonizado no último dia 10 de agosto corrente, quando o Senado aceitou a denúncia de impeachment e mandou-o a julgamento, prenuncia que, ao final deste – que se dará ainda este mês, ou, no mais tardar, ao início de setembro –, por toda parte em que se cultua o comentado Estado, será forçoso dizer: no Brasil, a democracia morreu. Quem a matou? O Congresso Nacional e a Presidência interina da República, com a prestimosa cumplicidade do Poder Judiciário.
A partir do escatológico e, ao que parece, inevitável dia em que o interino conspirador Temer for ungido pelas trevas do Senado como usurpador definitivo de um mandato que nunca foi nem será seu, os(as) brasileiros(as) terão como mensagem, para o presente e o futuro, as tenebrosas palavras que o poeta Dante Alighiere encontrou às portas do inferno (Canto 3):
“POR MIM SE VAI À CIDADE DOLENTE,
POR MIM SE VAI À ETERNA DOR,
POR MIM SE VAI À PERDIDA GENTE
…
DEIXAI TODA ESPERANÇA, VÓS QUE ENTRAIS”.
Hoje, resta claro como a luz solar que o programa do PMDB para o Brasil, tendo como timoneiros o conspirador Temer e o Congresso Nacional – na sua esmagadora maioria –, hipocritamente chamado de “Ponte para o futuro”, inevitavelmente, irá conduzi-lo ao inferno político, econômico e social.
Ninguém, em sã consciência, a não ser por má fé – como fazem a grande mídia, a maior parcela do Congresso Nacional e figuras expoentes do Poder Judiciário –, acredita que restará a República Democrática, implantada pela Constituição de 1988, após a aprovação e a implementação da PEC N. 241/2016, que congela, por 20 anos, todas as políticas sociais, em especial a educação, a saúde e a seguridade social; da PEC N. 31/2016, que eleva a Desvinculação das Receitas da União (DRU) de 20% para 30%; da reforma da Previdência Social, que representará o maior retrocesso social de todos os tempos; da terceirização sem limites e freios, que cria o dantesco contexto de empresa sem empregados, empregados sem empregos e sem direitos, e sindicatos sem categorias; e da prevalência do negociado sobre legislado, não o que é autorizado pelo Art. 7º, inciso XXVI, da Constituição Federal, mas o que reduz os direitos fundamentais sociais ao rés do chão.
O conspirador e usurpador Michel Temer somente espera a sua unção pelo Senado, no simulacro de impeachment, para fazer suas as palavras do barqueiro Caronte – que, na mitologia grega, transportava as almas pelo rio Aqueronte (rio do inferno), assim repetidas, eternamente:
“- Almas ruins, vim vos buscar para o castigo eterno! Abandonai toda a esperança de ver o céu outra vez, pois vou levar-vos às trevas eternas, ao fogo e ao gelo!”
Para Michel Temer, o Estado Democrático de Direito, a nação, a decência, a ética e a cidadania, corolário destes, são almas ruins que merecem as trevas eternas; para ele e os seus iguais, somente o capital, desprovido de sentimentos e cruel em sua essência, é digno do paraíso, ainda que, para chegar lá, tenha de destruir o Brasil.
Apesar de tudo, da momentânea derrota da cidadania, o Brasil, que não partilha a taça de veneno e das trevas de Michel Temer e de seus comparsas, deve fazer seu o brado da música que abre estas digressões:
“Aqui te afirmamos dente por dente assim
Que um dia rirá melhor quem rirá por fim
Na curva da estrada, há covas feitas no chão
E em todas florirão rosas duma nação”.
Como prenunciou o poeta maior do Brasil, Castro Alves, em seu magnífico poema “ O Livro e a América”:
“Bravo! a quem salva o futuro/ Fecundando a multidão/ Num poema amortalhado/ Nunca morre uma nação”.
Com o clamor popular – que nunca faltou e se multiplicará –, em breve Michel Temer, com tudo de indecente e tenebroso que representa, passará da condição de Caronte – barqueiro – para a de alma ruim, a caminho das trevas eternas pelo Rio Aqueronte.
Com certeza, assim será.
*José Geraldo de Santana Oliveira é consultor jurídico da Contee