A educação na fronteira da vida e da morte

Por Gilson Reis*

A crise humanitária que vemos passar diante de nossos olhos, neste início de século, é o resultado de um conjunto de fatores históricos, econômicos, políticos, culturais, ideológicos, religiosos etc. que haveremos de estudar com profundidade nos próximos anos e décadas para compreendê-los e decifrá-los.

Neste ponto da história, março de 2020, temos muito mais perguntas e dúvidas que respostas e muito menos certezas e convicções que afirmações. Vivemos dias de terraplanismo, de teoria da criação, de ideologia de gênero, de negação da ciência e da educação.

É neste tempo atual e real que a educação e as ciências passaram a ser vistas, por determinados setores da sociedade brasileira, como a maldição a ser combatida e destruída. O desmonte da educação pública e a ingerência indevida de militares, pastores e do “deus mercado” são marcas de um governo autocrático, com seus milicianos reais e virtuais. Envolta em tudo isso, uma sociedade anestesiada diante de tamanhas brutalidades e incertezas.

Para complicar ainda mais o cenário de guerra e desalento que tomou conta da sociedade global e nacional, surge um ser desprezível, com seu filetinho de RNA, para contaminar, adoecer, enfraquecer e matar parcelas significativas da sociedade global e local. A pandemia se articula e consolida como uma crise incalculável, levando pânico, insegurança e incertezas para milhões de pessoas. O Covid-19 — ou novo coronavírus —, descoberto pelos chineses em 2019, é frágil em sua estrutura molecular, mas com grande capacidade infecciosa pelo fato de se adaptar muito bem, obrigado!, aos tecidos e células e de se multiplicar no interior do corpo humano.

Por essas e outras, o novo coronavírus ganhou grande projeção internacional e trouxe consigo grandes preocupações. A disseminação e expansão territorial rápida do vírus levou países e governos a tomar medidas econômicas e sanitárias emergenciais jamais vistas na humanidade. A decretação de calamidade pública tem sido a rotina de governo e países. Desde de início de dezembro, quando foi constatado o primeiro caso de infecção e morte na China, passando pelos milhares de mortes na Itália e na Espanha e com projeções assustadoras para os Estados Unidos da América, é que o Brasil inicia o seu calvário diante de enormes e complexos desafios.

Pelo fato de se mostrar muito bem adaptado ao hospedeiro humano e pela rápida propagação, as autoridades sanitárias pelo mundo afora definiram, como uma das estratégias, o confinamento social como forma de evitar a propagação e contaminação geométrica da doença. Nessas condições, a propagação descontrolada do vírus pode causar um grande colapso no sistema de saúde e consequentemente um grande número de óbitos.

Neste cenário de guerra existem setores da economia que ocupam grande parte das preocupações das autoridades públicas devido ao seu modo de se organizar em grandes concentrações. É o caso da indústria, das lojas de departamentos, dos supermercados, dos shopping centers, dos call centers etc. Mas também é a situação de igrejas, eventos esportivos, eventos culturais, repartições públicas etc.

Contudo, existe um outro setor econômico e social que dispõe de uma grande concentração DE PESSOAS, de todas as idades e níveis sociais e enorme capilaridade social, com ramificações por toda a sociedade. Falo do setor educacional.

O Brasil possuiu 47,8 milhões de estudantes distribuídos nos quatro níveis da educação (infantil, fundamental, médio, superior). As escolas estão localizadas nos grandes centros urbanos e no meio rural; portanto, numa ampla diversidade de meios habitáveis. Possuem, em sua estrutura pedagógica, professores e auxiliares educacionais que contabilizam cerca de 8 milhões de trabalhadores e trabalhadoras. Esse universo de 55,8 milhões de pessoas se relaciona cotidianamente com outros milhões de pais, mães, avós, avôs etc., constituindo-se assim num grande potencial de contaminação e propagação da doença.

Outra preocupação que deve estar em nosso radar é a forma como se organizam as escolas públicas e privadas. Em sua grande maioria, isso se dá em salas com concentração de dezenas de alunos, em ambientes fechados, amontoados em carteiras muito próximas umas das outras e em contato sistemático e coletivo nos intervalos de aulas que elevam de maneira exponencial as possibilidades de contágio.

É por essas e outras razões que defendemos o isolamento social da população em todo o seu universo, principalmente nesta fase de expansão da contaminação. Mas é na educação que devemos ter nossas maiores preocupações.

Alguns desinformados dizem que não é preciso fazer o isolamento social nas escolas, pelo fato de a doença não provocar maiores danos aos mais jovens e crianças. Estatisticamente, é verdadeira a afirmação. Porém, em todo o mundo tem morrido crianças, jovens e adultos até os 60 anos. Não podemos perder uma vida por negligência e falta de humanidade.

Em segundo lugar, porque a propagação da doença potencializa sua disseminação a partir das escolas, seguindo pelas artérias sociais que se comunicam diariamente com a escola, os alunos, os professores e os auxiliares educacionais.

Em terceiro, porque as estruturas de funcionamento das escolas podem ser mais flexíveis. O ano letivo pode ser redimensionado, o número de aulas revisto, as atividades acadêmicas reelaboradas, principalmente nesta situação em que a vida tem que estar em primeiro lugar e, portanto, à frente de todas as necessidades humanas, incluindo neste rol a educação.

Em quarto, proteger e isolar as escolas é também proteger e isolar os mais idosos de prováveis contágios a partir de crianças e jovens presentes no convívio social cotidiano. É importante lembrar que os idosos são potencial grupo de risco e preservá-los é dever da sociedade. Até porque, na sociedade brasileira, muitos idosos são os principais cuidadores de crianças e adolescentes, seja por questões jurídicas, sociais e ou afetivas.

Nesse sentido, a sociedade e a educação devem exigir dos governos, autoridades judiciais, empresários etc. que, enquanto perdurar a epidemia da Covid-19, as escolas e todas as suas estruturas humanas e sociais sejam preservadas. Não podemos permitir que a falta de conhecimento e de sensibilidade humana provoque uma carnificina na sociedade brasileira, provocando milhares de mortes, e que a educação seja o elo que liga a vida à morte. Fechar as escolas é salvar vidas, não somos formadores de almas inocentes.

*Gilson Reis é coordenador-geral da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino — Contee e vereador do município de Belo Horizonte (MG).

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