“A inteligência não tem sexo”: conheça a história da ativista negra Almerinda Gama
No Mês da Consciência Negra, a Contee dedica sua pauta cultural a uma obra que lança luz sobre mais um vazio profundo deixado pela história oficial brasileira. Almerinda Gama: A sufragista negra, de Cibele Tenório, publicado pela Editora Todavia e vencedor do Prêmio Todavia de Não Ficção, resgata a trajetória de Almerinda Gama, ativista negra que o país insistiu em manter à margem.
Resultado de uma pesquisa rigorosa, tese de mestrado realizada na Universidade de Brasília (UnB), o livro de 277 páginas reconstrói a vida dessa mulher negra, nordestina, trabalhadora e absolutamente decisiva para a conquista do voto feminino no Brasil. Cibele Tenório, alagoana como Almerinda, jornalista, pesquisadora, doutoranda e mestre em História, mergulha em fontes dispersas para reconstituir o caminho trilhado por essa pioneira do sufrágio feminino, que lutou de forma incansável pelo direito ao voto na década de 1930 e pela igualdade de gênero em todos os espaços sociais e políticos.
Desconstruindo as cortinas da invisibilidade
Durante décadas, Almerinda Gama foi lembrada apenas como “a mulher misteriosa” em uma fotografia histórica ao lado de Bertha Lutz. Sua presença atravessou o tempo relegada ao rodapé do movimento sufragista, em narrativas que privilegiaram sobretudo as mulheres brancas da elite.
O livro de Cibele rompe esse silêncio. Reconstrói as pegadas da jornalista, advogada, poetisa, ativista e líder sindical que, nos anos 1930, enfrentou racismo, machismo e exclusão para ocupar espaços de poder político. Feminista que não se curvou ao patriarcado, destemida, e que afirmava com firmeza e ousadia: “A inteligência não tem sexo.”
A frase, tão atual quanto necessária, ecoa como denúncia e advertência.
Se a inteligência não tem sexo, por que razão o poder ainda tem?
Ao trazer à tona a biografia de Almerinda, rica em detalhes, Cibele Tenório expõe algo maior: o mecanismo do apagamento histórico, que insiste em repetir o mesmo destino para tantas figuras negras fundamentais.
Quantas Almerindas o Brasil já apagou? Quantas o país ainda insiste em ignorar?
A história oficial narrou com zelo a trajetória das elites, da “nação branca”, dos heróis consagrados. Mas invisibilizou, e segue invisibilizando, o papel do povo negro na construção política, intelectual e cultural do país. Cibele reconstitui essa história, mostrando que a luta de Almerinda não é apenas um episódio do passado, mas um fragmento que se expande. Há muitos exemplos de protagonismo como o de Almerinda nos escombros do esquecimento. Como lembra Conceição Evaristo, “a literatura é capaz de preencher as lacunas deixadas pela história oficial”, e Cibele o faz com maestria.
Uma leitura urgente em um Brasil ainda desigual
A biografia de Almerinda Gama evidencia uma realidade que ainda perdura.
Hoje, as mulheres representam 51,2% da população brasileira, mas continuam minoria nos cargos de decisão. Nas eleições municipais de 2024, apenas 15,3% das candidaturas a prefeita foram de mulheres, embora representem avanço em relação a 2020, quando eram 13,7%. Entre as candidatas, 30,6% se elegeram e, entre as vice-prefeitas, 29% conquistaram o cargo. As vereadoras eleitas chegaram a 6,9%, superando o pleito anterior.
Apesar de a lei de cotas para candidaturas femininas ser cumprida, o resultado nas urnas ainda revela desigualdade. As mulheres representaram 35,4% das candidaturas a vereança em 2024, mas apenas 18,2% das eleitas. No recorte racial, 59% das mulheres eleitas eram brancas e 40% pretas ou pardas, o que mostra que a barreira da cor se soma à barreira de gênero.
No mercado de trabalho, as desigualdades também persistem. As mulheres recebem, em média, 77,7% da renda dos homens e ocupam menos cargos de decisão, com maior vulnerabilidade para as mulheres negras. Esses dados reforçam que a luta de Almerinda Gama não terminou com a conquista do voto. Ela segue sendo necessária, um século depois.
Por que ler Cibele Tenório agora
Almerinda Gama: A sufragista negra é uma obra indispensável porque confronta a narrativa cômoda que nos foi ensinada. O livro revela que a luta pelo voto feminino não foi homogênea nem harmoniosa e que muitas protagonistas não cabiam na moldura reservada às feministas brancas da elite.
Almerinda não se intimidou. Enfrentou a dupla barreira de gênero e raça. Ousou, liderou, pensou, escreveu e lutou. O Brasil precisa conhecer essa história em sua inteireza.
Dica cultural da Contee
Leitura essencial para educadores, sindicalistas, estudantes e todas as pessoas comprometidas com democracia, igualdade e justiça racial.
A Contee celebra e recomenda a obra de Cibele Tenório como parte da valorização da memória histórica do povo negro no Mês da Consciência Negra. Que a história de Almerinda Gama inspire novas gerações e que continuemos a revelar as muitas Almerindas soterradas pelo tempo e pelo apagamento.
“A inteligência não tem sexo”, e a história do Brasil precisa, de fato, representar essa realidade.
Por Romênia Mariani


