A MP 1099 e a filosofia de um par de botas
Em 1878, Machado de Assis escreveu um conto em que os dois pés de uma bota usada conversam. Lá pelas tantas, uma delas comenta que um de seus donos “gastava mais sapatos do que a Bolívia gasta constituições”. Eis o Brasil, tanto tempo depois “gastando constituição”, em lugar de efetivá-la. Lembrei do conto, quando recebia a notícia de edição da Medida Provisória 1099. Ela reedita texto de medida anterior, rejeitada pelo Parlamento, após forte pressão por parte de entidades ligadas ao mundo do trabalho.
Lembro de ter escrito, mais de uma vez, durante os últimos anos, que há uma deliberada intenção de vencer no cansaço. Eis a prova. Adotada no dia 28 de janeiro, essa MP traz de volta o Programa Nacional de Prestação de Serviço Civil Voluntário. Um programa a ser ofertado pelos municípios, por meio de processo seletivo público simplificado. Destinado a jovens de até 29 anos e trabalhadoras e trabalhadores com mais de 50 anos.
Sob o argumento de “reduzir os impactos sociais” da covid-19, “auxiliar na inclusão produtiva” no “mercado” e “promover a ocupação”, o programa institui a possibilidade de tomar trabalho por até 22 horas semanais, sem carteira assinada, sem concurso público, sem garantia contra a despedida, sem férias, sem gratificação natalina, sem descanso semanal remunerado. E, ao contrário do que o nome refere, não se trata de trabalho voluntário. Quem for selecionado, receberá “auxílio pecuniário de natureza indenizatória, a título de bolsa”, com valor “equivalente ao salário mínimo por hora”. É trabalho sem direitos.
As disposições da MP fazem mais do que gastar a Constituição. Burlam a regra da seleção por concurso e os direitos fundamentais do artigo sétimo. Ferem a base jurídica, sob a qual assenta-se a relação entre capital e trabalho. Ferem a própria noção de salário, que nada tem de indenizatório.
Cansa repetir o óbvio. Gerar emprego e, portanto, combater os efeitos sociais das escolhas políticas, inclusive aquelas que retardaram a compra das vacinas, boicotaram campanha de imunização e deixaram estados e municípios sem coordenação alguma nos momentos mais agudos da pandemia, depende de fazer circular riqueza. É preciso que as empresas produzam, que produtos e serviços existam e possam ser consumidos. Autorizar municípios a explorarem força de trabalho em parâmetros inferiores àqueles previstos na Constituição, não terá impacto algum na aguda crise social e econômica em que estamos mergulhados.
Mas não é disso que se trata e todos sabemos. Mesmo aqueles que por ingenuidade, maldade ou ignorância acreditaram que se tratava apenas de outra forma de fazer o Brasil seguir seu rumo, já foram confrontados com a realidade. Não há projeto. E se rumo houver, talvez seja o do precipício.
A Constituição de 1988 é uma construção coletiva que, mesmo não tendo avançado o tanto que se almejava, fixou parâmetros de convívio social importantes. Uma de suas regras fundamentais é a do direito à relação de emprego. Não se trata de benesse, mas do reconhecimento de que a fixação de limites à exploração do trabalho é a única forma de manter o sistema. Em uma sociedade de trabalho obrigatório, é preciso que se tenha capacidade de consumo. Do contrário, ainda que a maioria esteja trabalhando, o que não é o caso do Brasil atualmente, não haverá circulação de riqueza e, portanto, a crise persistirá. Garantia contra a despedida, salário mínimo mensal, jornada máxima não são direitos individuais, são garantias sociais que interessam inclusive a quem produz e emprega.
Do mesmo modo, o direito social à seleção através de concurso garante serviço público de qualidade. É norma diretamente relacionada ao enfrentamento da corrupção, palavra que se refere ao ato de quebrar aos pedaços, decompor ou deteriorar algo. A impessoalidade do concurso e as garantias para quem presta serviço público estabelecem uma forma de contratação capaz de selecionar pessoas tecnicamente habilitadas e permite que servidoras e servidores públicos não sejam pressionados econômica ou politicamente. Dificulta, concretamente, práticas de corrupção. Sabemos o quanto essas garantias vêm sendo atacadas. A PEC 32, propondo reforma administrativa, é um triste exemplo. A MP 1099 também promove uma quebra da ordem constitucional, deteriorando não apenas suas normas, mas sobretudo seu sentido.
O texto da MP 1099 faz pensar que 1988 não existiu. Não há ordem social fundada na dignidade e no valor social do trabalho, nem direito fundamental à relação de emprego e à seleção por concurso público? Havendo uma tal ordem jurídica, como alguém em Brasília (ou em qualquer outra parte do Brasil), tem coragem de redigir e assinar um texto como esse?
E, se a Constituição existe, porque desrespeitá-la desse modo?
Quem afinal de contas ganha com isso?
A MP prevê um incentivo aos municípios que contratarem de forma precarizada. O Prêmio Portas Abertas será criado pelo Ministério do Trabalho e contará com “recursos oriundos de parcerias estabelecidas com entidades públicas ou privadas”. Interessante o nome, sobretudo se lembrarmos a reunião ministerial em que se sugeria aproveitar a pandemia e toda a tragédia que ela nos impunha, para abrir a porta e “passar a boiada”.
Em vez de incentivar a produção e a circulação de riqueza, o governo autoriza exploração de trabalho em parâmetros inferiores àqueles previstos na Constituição e se compromete a investir dinheiro na premiação de municípios que aderirem a essa forma inconstitucional de contratação. Dinheiro que falta em saúde, educação, moradia e geração de empregos. Não é difícil presumir que o trabalho precarizado, assim utilizado, acabará sendo objeto de discussão em âmbito judicial. É isso, ou rasgamos de vez a Constituição.
Uma coisa é preciso que se reconheça: não há surpresa. Nunca houve. Ao contrário, o que há é uma série repetida de ações endereçadas a rebaixar as condições de vida do povo brasileiro. Depois da terceirização, da exploração através de falsas cooperativas, da autorização para reduzir salário em plena pandemia, agora o trabalho voluntário remunerado.
Os alvos são historicamente os mesmos corpos. Também aí não há novidade. O que existe é uma insistência perversa, que não arrefece. A questão é que nós, mesmo exaustas, também não desistiremos de denunciar. Afinal, como ensina Machado de Assis, na boca de uma das botas, no conto antes referido: “não há bem que sempre dure, nem mal que se não acabe”.
E este é um ano de eleições…
Valdete Souto Severo é juíza do trabalho e professora universitária.