A reforma da previdência social e os seus mundéus
Por José Geraldo de Santana Oliveira*
Quem é do campo ou conhece o seu cotidiano sabe que lá, ainda hoje, com pequena frequência, utilizam-se certeiras armadilhas para atrair caças de pequeno porte, os mundéus — também utilizado em pesca fluvial artesanal —, os quais o camponês, com a sua linguagem espontânea, chama de mundés.
Para atrair as desejadas e desavisadas presas, são espalhadas, dentro ou ao alcance do mundéu, iscas ou engodos que se tornam irresistíveis para elas. Essas iscas ou engodos são letais para quem não resiste a eles, pois, uma vez posto o pescoço ou a pata dentro do mundéu, via de regra, a presa dele não se safa.
A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 6/2019, que visa a liquidar a previdência social, está repleta de mundéus, não para atrair pequenas caças, mas, sim, segurados descuidados e/ou abertos a engodos, com vistas a despertar-lhes simpatia e apoio cego às medidas letais que ela contém.
Como contraponto — na música, arte de sobrepor uma melodia a outra; no caso concreto, uma medida letal a uma aparentemente benéfica — aos mundéus contidos na PEC 6/2019, há dezenas de medidas de alto teor de letalidade para os esteios da previdência e da assistência social.
Dentre os mundéus da comentada PEC para a previdência social, sobressaem as alterações propostas para as alíquotas de contribuição para o regime geral e o próprio, estabelecendo percentuais progressivos, de acordo com as faixas de remuneração.
A isso, o secretário da Previdência Social, Rogério Marinho — que foi o impiedoso relator do projeto de lei da reforma trabalhista, na Câmara Federal — intitula de correção de privilégios, apregoando que, por essa razão, a PEC deva ser apoiada por todos.
Não há dúvidas de que a progressividade tributária se caracteriza como medida equalizadora do princípio constitucional da isonomia, segundo o qual os desiguais devem ser tratados de maneira desigual, na medida de sua desigualdade, e, por óbvio, os iguais de maneira igual, na proporção de sua igualdade.
Porém, o citado secretário, com a insinceridade que lhe é costumeira, só se refere ao que ele intitula de correção de privilégios; propositadamente, não diz uma palavra sobre a fatura que os segurados terão de pagar por ela.
1. Nos termos da PEC, haverá redução da alíquota de contribuição, para o regime geral, de 8% para 7,5% para quem ganha até um salário mínimo; e aumento progressivo, para as demais faixas, chegando a 11,68%, para quem recebe de R$ 3.0001 a R$ 5.839,45, valor do teto, até 31 de dezembro de 2019.
Do mesmo modo, no regime próprio, que abrange os servidores públicos civis efetivos, ocorrerá redução da alíquota de contribuição, de 14% para 7,5%, para quem ganha até um salário mínimo; e aumento progressivo, para as demais faixas, chegando a 11,68%, para quem recebe de R$ 3.0001 a R$ 5.839,45 — teto do regime geral —, e a 22%, para a remuneração superior a R$ 39 mil.
O preço cobrado por essa isca será impagável para a esmagadora maioria dos segurados do regime geral, com forte incidência no regime próprio.
O rosário de contas a ser pago pela sociedade é o seguinte:
I. Desconstitucionalização (retirada da CF) de todas as regras e parâmetros dos benefícios previdenciários e da assistência social, com a sua consequente transferência para lei complementar. Esta brutal mudança está para a previdência e para a assistência na mesma proporção que a retirada de suas estruturas está para um edifício.
II. Fim da previdência baseada na solidariedade, que será substituída pelo regime de capitalização individual.
III. Fim da aposentadoria por tempo de contribuição; se a PEC for aprovada, como redigida, somente haverá aposentadoria mediante comprovação cumulativa de idade — 62 anos para a mulher e 65 para o homem — e tempo de contribuição de 20 anos, no mínimo; hoje, o tempo mínimo de contribuição exigido, na aposentadoria por idade, é de 15 anos.
Para os segurados especiais rurais, serão exigidos 60 anos de idade para o homem e a mulher e 20 anos de efetiva contribuição, equivalente, em valores atuais, a R$ 600 por ano.
IV. Aumento do tempo de contribuição de 30 para 40 anos para que o segurado possa receber 100% do salário de benefício.
V. O salário de benefício — que é o resultado da média aritmética simples de todos os salários de contribuição utilizados para o cálculo do benefício — será calculado com base em 100% de todo o período contributivo, e não em 80%, como o é hoje, o que acarretará considerável redução de seu valor, devido às oscilações dos salários, via de regra, para menos.
VI. Fim da garantia constitucional de reajustamento dos benefícios previdenciários para preservar-lhe, em caráter permanente, o valor real, o que poderá provocar, inclusive, seu congelamento, como ocorreu com a remuneração dos servidores públicos da União durante os oito anos de mandato de Fernando Henrique.
VII. Lei complementar poderá determinar que a aposentadoria de segurados com deficiência, daqueles que exerçam atividades com efetiva exposição a agentes químicos, físicos e biológicos prejudiciais à saúde e de professores(as) não lhes assegure nenhuma redução na idade e no tempo de contribuição em relação às regras gerais.
VIII. Proibição de acúmulo de pensão por morte superior a dois salários mínimos com qualquer outro benefício previdenciário.
IX. Os segurados do regime geral que não contribuírem com base em, pelo menos, um salário mínimo mensal ficarão excluídos de todos benefícios previdenciários enquanto não o fizerem.
X. Aumento da idade mínima necessária, e de forma progressiva, para aposentadoria dos servidores públicos civis efetivos.
XI. Estabelecimento de idade mínima, e igualmente de forma progressiva, para a aposentadoria por tempo de contribuição dos segurados do regime geral, inclusive dos professores. Hoje essa exigência cinge-se à aposentadoria por idade.
XII. Redução de 25% do salário de benefício para quem já é segurado e se aposentar por idade; pela regra atual, o homem, com 65 anos de idade e 15 de contribuição, e a mulher com 60 e 15, respectivamente, aposentam-se com 85%; pela PEC, com apenas 60%, aumentando-se o tempo de contribuição, progressivamente, até chegar a 20 anos, sem que se altere o percentual do salário de benefício.
XIII. Aumento da idade mínima para a aposentadoria da trabalhadora rural de 55 para 60 anos, bem como do tempo de segurado especial de 15 para 20 anos, para ambos. Além disso, o segurado especial que não comprovar o recolhimento de R$ 600 anuais, valores de hoje, não terá o seu tempo computado para nenhum efeito previdenciário.
XIV. Os(as) professores(as), públicos e privados, que forem contratados após a aprovação da PEC, mesmo que consigam manter o direito à aposentadoria com idade e tempo de contribuição reduzidos, terão de comprovar cumulativamente 60 anos de idade e 30 de contribuição.
XV. Redução do direito ao abono salarial anual de remuneração de até 2 salários mínimos para 1 salário mínimo, o que acarretará a exclusão de milhões de trabalhadores que deles se beneficiam pelas regras atuais.
XVI. Subtração do direito aos depósitos mensais do FGTS do trabalhador aposentado, que continuar ou voltar a trabalhar após aposentadoria; bem assim, da multa de 40% do FGTS, mesmo quando dispensado sem justa causa, após a aposentadoria.
Pasmem-se! Essas duas medidas de ostensivo calote aos trabalhadores, que afrontam o Art. 7º, inciso III, da CF, e 10, inciso I, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), são acintosamente chamadas pelo governo de “desoneração ao empregador”.
2. Para a assistência social, o principal mundéu é o da antecipação da idade exigida para fazer jus ao benefício da prestação continuada (BPC) de 65 para 60 anos; pela PEC, a partir dos 60 anos de idade, aquele(a) que não contribuir para a previdência social e comprovar a sua condição de miserabilidade — expressão do texto — fará jus ao valor mensal de R$ 400.
Como contrapartida, o direito ao BPC correspondente ao salário mínimo será elevado de 65 para 70 anos.
Quem apoiar a aprovação da PEC 6/2019, na falsa crença de que ela será justa e corrigirá privilégios, automaticamente, estará dizendo sonoro sim a todas as monstruosidades acima numeradas.
*José Geraldo de Santana Oliveira é consultor jurídico da Contee