A nova roupa da desigualdade no Brasil: O rei está nu
Por José Geraldo de Santana Oliveira *
O escritor dinamarquês Hans Christian Andersen (1805-1875), autor de dezenas de contos infanto-juvenis, ainda hoje consagrados, no conto traduzido para o português com o título “A roupa nova do rei”, com a sua refinada ironia, desnuda as mazelas de um reino inominado, mas que, a rigor, poderia ser aplicado a todos, inclusive, nos atuais, alcançando também as repúblicas, notadamente no hemisfério sul.
O rei da obra de Andersen acometido por vaidade extrema, como o são os pavões que se travestem de presidentes nos dias atuais, foi convencido por dois charlatães — que, pelo grau de canalhice de que eram dotados, devem ser ancestrais dos de agora — a mandar confeccionar novas vestimentas, bordadas com fios de ouro.
Ávido pelas novas vestimentas, que o fariam único, o rei cumulou os citados charlatães de vultosas somas de ouro. Esses astutos, cientes da pavonice e dos limitados recursos mentais do rei — um parvo —, fingiam que cumpriam o contrato com ele firmado. Porém, ninguém conseguia enxergar sequer um fio bordado, mas isso não os preocupava; como fazem os charlatães atuais, não mediam palavras e contorcionismos para convencer o rei e os seus asseclas de que estavam trabalhando e que a sua obra seria magnífica.
A trama era tão mal urdida que o rei, mesmo sendo parvo, desconfiou que estava sendo ludibriado em sua boa pavonice, visto que não via nenhum sinal de tecelagem.
Por isso, mandou o ministro da Cultura — curador das Artes do Reino — ir averiguar o trabalho dos tecelões do logro. Este, tal qual o rei, também não viu nada. Mas, com medo da represália e querendo bajular este — como bom bajulador que era —, disse-lhe:
“— É um trabalho sublime… em seus aspectos de inconcretude material… hã… uma obra-prima em sua fundamentalidade semântica… e visualidade significa… hã… o imagético e o invisível se fundem num todo de… hã… expectativas estético-formais… neste simulacro crítico… se percebe a função… hã… as funções, semióticas… da transcendente imaterialidade da arte…
— Assim, neste procedimento referencial do não-objeto… hã… em sua virtual vacuidade… o deslocamento do olhar… em sua intensa… hã… re-significação… a obscurecer ao limite extremo… toda e qualquer possibilidade de reflexão perceptiva… hã… insere-se nesta vertiginosa… pós-modernidade… hã… Mas, por outro lado… o discurso estético… das poéticas da segunda metade do século XX … hã…”.
Desconfiado de que seria objeto de escárnio se acreditasse nos que o cercavam, mas, não conseguindo conter a sua bazófia, o rei, em dia de grande festa, despiu-se de sua roupa verdadeira e vestiu a simulada, e, com ela, saiu a desfilar pelas ruas do reino.
Como receava, tornou-se objeto de chacota, nunca dantes vista, fazendo com que o povo mal conseguisse conter os desbragados risos pela sua indisfarçada nudez. Até que um menino, com a sinceridade peculiar a todas as crianças, gritasse, a plenos pulmões: o rei está nu; este grito foi bastante para a figura do rei vir abaixo.
Possivelmente, Andersen não sabia muito do Brasil; entretanto, parece que este conto foi escrito pensando no que seria ele em 2016; se não o foi, há semelhanças demais que se pululam na pavonice do mandatário maior, na charlatanice dos que cosem as suas medidas políticas e econômicas, na bajulação dos asseclas que o cercam, e na arte de tentar enganar o povo trabalhador.
A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) — já aprovada na Câmara Federal com o número 241/2016 e em tramitação no Senado com o número 55/2016 —, sem dúvida é a forma mais acabada de imitação do realçado conto.
Os charlatães que a teceram e os seus capatazes, tais como os do conto, despudoradamente, afirmam que ela será a redenção do Brasil. O primeiro mandatário, como o fez do ministro da Cultura do conto em destaque, com o cinismo que lhe é peculiar, assevera que ela é linda e a coisa mais séria desde a promulgação da Constituição Federal (CF) de 1988.
As explicações que dão para a PEC em questão são semelhantes às do ministro da Cultura da obra de Andersen; tal qual este, falam em trabalho sublime, em seus aspectos de inconcretude material, em fundamentalidade semântica, no imagético e no invisível, no não-objeto, em sua virtual vacuidade, no deslocamento do olhar, e outras prosaicas palavras que nada dizem.
Contudo, não possuem argumento para explicar o porquê de as despesas financeiras que sangram o Brasil, absorvendo metade do orçamento da União, ficarem fora da PEC .
O certo que a PEC congela o Brasil por 20 anos. Por isso, só os bajuladores e os que terão os seus rendimentos multiplicados pela monstruosidade da PEC em questão é que conseguem enxergar beleza e harmonia nela; o povo, só vislumbra miséria e desalento.
Em uma palavra: há abissais diferenças entre o conto e a PEC; enquanto aquele fica do terreno da arte, esta, muito embora o imite, desmorona-se para a tragédia, principalmente, nas áreas nucleares de qualquer Ordem Social Democrática: educação, saúde, moradia, previdência social e investimentos.
Afirmar que não haverá ruptura das políticas sociais com o congelamento das verbas que a eles se destinam, por 20 anos — uma geração e meia — soa tão falso como falar que o rei nu, da obra de Andersen, estava divinamente vestido.
*José Geraldo de Santana Oliveira é consultor jurídico da Contee