A“ema” diante do racismo de Estado

Por Adércia Bezerra Hostin dos Santos* e José Isaías Venera**

A repercussão da bicada da ema no presidente Jair Bolsonaro no dia 13 de junho poderia soar como uma anedota de um governo que se esforça em negar os fatos à sua frente. A falta de empatia com a gravidade do momento leva-nos a recorrer a um gesto que se aprende desde criança, o de dar um beliscão na pessoa que está alienada como forma de fazê-la voltar à realidade. Difícil aceitar que o presidente tenha se tornado o birrento garoto propaganda da cloroquina, como se pode observar em suas “lives”, além de minimizar os números de mortos, que já passam de 90 mil.

As “lives” semanais do presidente colocam suas ideias a céu aberto. Elogios ao agronegócio, culpabilização dos povos indígenas pelas queimadas na Amazônia, crítica ao isolamento social e propaganda da suposta eficácia da cloroquina. No dia 16 de julho, ao falar das queimadas, Bolsonaro atribuiu parte delas ao “indígena, que é o nativo, o caboclo, o ribeirinho, ele faz constantemente isso”. Primeiro o indígena, depois o outro que passa a ter o mesmo valor. Um discurso que criminaliza e anuncia quem é matável, como observou bem Silvio Almeida em Racismo estrutural: “morte aqui não é apenas a retirada da vida, mas também é entendida como exposição ao risco da morte, a morte política, a expulsão e a rejeição”.

Como sabemos, o valor de um signo não existe isoladamente, mas sempre em associação a outros, constituindo a materialidade do discurso. Na “live” de 23 de julho, Bolsonaro voltou a criticar os povos indígenas e a elogiar o agronegócio (este último vem como significante de diferenciação daqueles que podem morrer, os que são criminalizados). Entre os elogios, ressaltou que o setor não parou na pandemia.

Basta observar minimamente para perceber que, para Bolsonaro, quase toda a sociedade passa a ser inserida em um devir indígena, ou seja, na posição de quem é matável (na leitura de Achille Mbembe, esse devir é chamado de devir negro, cuja origem remonta ao início do mundo colonial, enquanto as ações de Estado de promoção da morte, como no caso de não prevenir aos riscos da pandemia, classificam-se como necropolítica). Dentro dessas percepção, em nome de uma sustentação imaginária do mercado, os trabalhadores e os estudantes não deveriam parar, mesmo que isso significasse suas mortes.

Racismo de Estado

Na última aula do curso Em defesa da sociedade, ministrado no Collège de France entre 1975-76, o filósofo Michel Foucault mostra como a guerra das raças do século XVIII retorna, no século seguinte, em algo muito diferente, no que chamou de racismo de Estado, quando a soberania passou a depender da “proteção da raça”, desenvolvendo, a partir do século XIX, tecnologias de poder pautadas no racismo (sendo a experiência nazista a expressão máxima). Interessa a Foucault evidenciar a passagem das relações de poder do soberano, que tem o domínio sobre fazer morrer ou deixar viver o súdito, para as relações de poder na biopolítica. Integra-se a essa análise os cursos Segurança, território e população, de 1977-78, e Nascimento da biopolítica, de 1978-79, detalhando a passagem da política como governos dos outros (governamentalidade) voltada para fazer viver o corpo que produz, útil ao Estado, o que caracteriza também a mudança de um Estado de justiça, maquinaria da soberania, para o administrativo, maquinaria do biopoder.

Mas é o próprio Foucault que analisa outra mudança, com destaque para as análises econômicas empreendidas, sobretudo, pela Escola de Chicago, com destaque para a teoria do Capital Humano, demonstrando a passagem do liberalismo para o neoliberalismo, o que desloca o capital do produto para o próprio sujeito. Seus cursos foram realizados, como vimos, no contexto do final dos anos 1970, período das políticas econômicas na ditadura de Augusto Pinochet (1973 a 1990), no Chile, e depois com os governos da primeira-ministra do Reino Unido, Margaret Thatcher (1979 a 1990), e do presidente dos EUA, Donald Reagan (1981 a 1985), dando efetividade à maquinaria neoliberal que tem, entre as produções de subjetivação, o empresário de si mesmo, ao que Foucault refere-se como o homo economicus.

O que está na ordem das análises de Foucault são os processos de subjetivação, ou seja, o modo como nos constituímos em sujeitos a partir de uma racionalidade de governo. No neoliberalismo, o Estado é negado em favor da lógica de mercado, o que reforça a tese de que a morte está relacionada às formas de vida que não interessam ao mercado. Poderíamos dizer que passamos do racismo de Estado para o racismo de mercado na medida em que os interesses de mercado prevalecem. É por isso que para Foucault, a política é a guerra continuada por outros meios, invertendo o aforismo de Clausewitz.

Fazer morrer pela educação

No dia 23 de julho, em sua “live”, Bolsonaro considerou que o problema da educação “mais do que financeiro, é problema de currículo, o que ensinar em sala de aula, quem vai ensinar, se o professor tem ou não como exercer sua autoridade na sala de aula”. Em síntese, o problema são os conteúdos e professores que valorizam a formação crítica do aluno, enquanto ao atual governo interessa a formação que valorize o sujeito enquanto capital humano, tendo utilidade única ao mercado. Em seguida, passou a elogiar os colégios militares, que, segundo ele, “têm disciplina, têm hierarquia, têm castigo. […] Onde tem disciplina, tem como o professor exercer sua autoridade”. Não à toa, o presidente confunde autoritarismo com autoridade, sendo este segundo resultado de um reconhecimento que vem pelo saber. O professor se constitui como autoridade na medida em que seus alunos reconhecem seu conhecimento.

A confusão de Bolsonaro explica em parte a crise de autoridade do governo, que se queixa com frequência do fato de os Estados não seguirem as coordenadas do governo federal sobre a pandemia, que se resumo na retomada do comércio, do trabalho e das aulas presenciais. Por isso, a análise do filósofo esloveno Slavoj Žižek, publicada no último dia 20 no blog da Boitempo, é certeira, a de que ignorar a pandemia é uma espécie de psicose coletiva. O retorno à “normalidade é uma versão de psicose”.

Poderíamos pegar essa leitura de Žižek, que segue o passe do psicanalista Jacques Lacan, e afirmar que, no caso brasileiro, Bolsonaro não cessa de tentar instituir uma normalidade ao anormal. Isto por um motivo simples de entender: o governo se tornou servil à racionalidade de mercado, a qual conhecemos por neoliberalismo.

A racionalidade de mercado produz subjetivação psicótica, na qual a realidade se apresenta descolada completamente dos fatos, mas tem força de escravizar o desejo levando o sujeito a apoiar políticas contra si próprio às voltas de um discurso sedutor que o convence que agora ele será empresário de si mesmo.

Desinformação e necropolítica na educação

O resultado da última eleição para presidente ratificou a desinformação como principal meio de governar os outros. Normalmente chamada de fake news, o discurso falso encontra lastro numa sociedade perversa, que nega o racismo, a divisão de classe, a diferenciação de gênero e se aliena às bravatas de um líder. Na história não faltam exemplos de líderes com discursos empobrecidos e com gestos patéticos que alcançaram poder desigual, como no caso do führer Hitler.

A aprovação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) pelo Congresso foi uma derrota para a política de Bolsonaro. Na “live” de 23 de julho, o presidente apresentou-a como uma vitória. Em resumo, queimadas são provocadas por aqueles que não interessam ao mercado e educação pública é entendida como gasto, mas, quando o governo sofre uma derrota no Congresso, rapidamente inverte o discurso.

Como observou bem Chico Alvez, colunista do UOL, “enquanto o debate acontecia na Câmara, as redes sociais bolsonaristas faziam chegar aos trend topics do Twitter a inacreditável hashtg #FundebNão”. Sem o Fundeb seria praticamente o fim da educação pública no país, o mesmo que promover pelo Estado a necropolítca via educação.

*Adércia Bezerra Hostin dos Santos é pedagoga, mestranda em Sociologia e Ciências Políticas na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), presidente do Sindicato dos Professores de Itajaí e Região/SC, coordenadora da Secretaria de Assuntos Educacionais da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (Contee) e membro da diretoria do Fórum Nacional de Educação (FNPE).

**José Isaías Venera é jornalista, doutor em Ciência da Linguagem pela Unisul e professor dos cursos de comunicação da Univille e Univali, em Santa Catarina. Site: joseisaiasvenera.com

Da Carta Capital

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