Ainda haverá Brasil?
Por José Geraldo de Santana Oliveira*
A antífrase é uma figura de linguagem (recurso estilístico) largamente utilizada na Língua Portuguesa, oral e escrita — sobretudo no mundo político, que tem muita dificuldade em conviver com a verdade — e consiste em dizer exatamente o contrário do que se quer afirmar.
A ‘solenidade’ realizada no Palácio do Planalto — melhor seria dizer a reunião de confrades do mal —, no dia 22 de dezembro de 2016, para a divulgação de projeto de lei (PL) que altera profundamente a legislação trabalhista, e para pior — como se demonstrará a seguir —, foi marcada por um verdadeiro festival de antífrases.
De início, o presidente Temer, com o cinismo e a desfaçatez que lhe são peculiares, afirmou:
“Você sabe que o Natal é o momento da fraternidade, é o momento da solidariedade, é o momento da irmanação, é o momento em que as pessoas deixam de lado as suas quizilas, as suas disputas e se unem e se reúnem familiarmente ou socialmente para a prosperidade.
O que nós assistimos aqui neste momento, que foi chamado corretamente de momento histórico, foi exatamente isso: sua fraternidade absoluta. Acho que, até penso, é caso ímpar em uma questão tão aparentemente polêmica, como se falava no passado sobre a modernização da legislação trabalhista”.
O falso e mal arrumado arranjo do presidente pode haver soado bem para os malfeitores que o acompanhavam e para o capital, o único a beneficiar-se com as anunciadas mudanças; para o mundo do trabalho, o alvo das medidas contidas no citado PL, soou como uma bomba de muitos megatons, que irá reduzir a pó sagrados e históricos direitos, conquistados a duras penas, por meio de intensas e incansáveis batalhas.
Chamar este PL de presente de Natal, de ‘fraternidade absoluta’, não passa de escárnio absoluto do mundo do trabalho, dos trabalhadores e, principalmente, do Estado de Bem-Estar Social.
Confraternizar significa congregar, congraçar, comungar com outrem, ideais e motivos para regozijos; ora, ninguém, em são consciência, confraterniza-se com a morte, que é a mensagem contida no PL sob questão.
Após o presidente debochar-se dos trabalhadores, foi a vez de o ministro do Trabalho —correto seria dizer do capital —, fazer desdenhosa afirmação de que no Brasil “não há divisão de classes, todos são brasileiros”. Esse acinte dispensa comentários, ridiculariza-se por si mesmo.
Ato contínuo, veio a pérola do terceiro tenor da ópera bufa, sob realce, o presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Ives Gandra da Silva Martins Filho, fiel escudeiro dos interesses do capital, que o leva, com frequência, a desvestir-se da condição de magistrado, que tem o dever de ao menos respeitar a instância maior da Justiça do Trabalho, para assumir, onde quer que esteja, inclusive em sessões solenes desse Tribunal, a condição de parte, sempre em defesa do capital.
O presidente do TST, em tom solene, afirmou: “Vossa excelência ao marcar esse gol contou com todo o time. E, na verdade, esse gol foi de um time que joga unido pensando no bem do Brasil”. Ele só não disse, nem poderia fazê-lo, que o gol aludido foi contra; e que o time ao qual se refere é o do capital, que joga unido para destruir o Estado Democrático do Direito, sendo ele um dos maestros.
Tristes e tenebrosos dias estes, impostos ao Brasil, em que os poderes da República demitiram-se da decência e da idoneidade.
Breves comentários sobre o PL sob destaque
Como se trata de antífrases — o que já foi anunciado antes —, o conteúdo deste PL significa exatamente o contrário do que se afirmou, na fatídica ‘solenidade’, e é repetido pelos demais integrantes da confraria do mal; senão, veja-se:
A CF, no seu Art. 7º, inciso XXVI, desde a sua promulgação, aos 5 de outubro de 1988, reconhece a prevalência (supremacia) do negociado sobre o legislado. No entanto, o faz com uma condição primordial: os acordos e as convenções coletivas de trabalho somente adquirem força de lei se garantirem mais do que a legislação trabalhista; menos, jamais.
O caput desse artigo assim dispõe: “São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social”, elencando 34 incisos, dentre eles o XXVI, que reconhece os instrumentos coletivos de trabalho, se, como já se assentou, visarem à melhoria da condição social dos trabalhadores por ele abrangidos.
O PL sob impugnação, ao reverso da CF, visa a dar força de lei aos instrumentos normativos coletivos que transigirem com o mínimo legal, que, insista-se, pelo caput retrocitado, é intransigível. Ou dito, em outras palavras, visa a dar força de lei a instrumentos que suprimam ou reduzam direitos.
Assim sendo, soam falsas e completamente desprovidas de fundamentos jurídicos e até morais todas as afirmações de que a negociação coletiva será valorizada; somente será valorizada a negociação que reduzir e/ou suprimir direitos, sobre a que os amplia, não se diz uma palavra.
Segundo informações postadas no Portal do Palácio do Planalto, somente o FGTS, o 13º salário, o seguro-desemprego, o salário-família (benefícios previdenciários), a remuneração da hora de 50% acima da hora normal, a licença-maternidade de 120 dias, aviso prévio proporcional ao tempo de serviço, sendo no mínimo de 30 dias, e a normas relativas à segurança e saúde do trabalhador não passíveis e redução, por meio de acordos e convenções coletivas; tudo o mais, sim.
Com certeza, se esta excrescência for ratificada pelo Congresso Nacional, o que parece fora de dúvida em razão de sua explicita demissão da condição de poder independente e único com competência para legislar, os sindicatos profissionais (laborais) serão cotidianamente instados pelos representantes patronais a negociar; negociar redução e/ou supressão de direitos, acréscimos, nenhum. Como diz uma velha metáfora, “quem não dormir verá”.
No tocante à jornada de trabalho, com duração máxima de 8 horas, o PL do mal, além de fazer tabula rasa do Art. 7º, inciso XIII, da CF, impõe ao mundo do trabalho um retrocesso de nada mais, nada menos, do que cem anos, pois, foi em 1917, que ela se consagrou, pela Constituição Mexicana de Queretaro; e, em 1919, na Alemanha, pela Constituição de Weimar.
No Brasil, o histórico é o seguinte:
O Decreto 313, de 1891, impedia que menores de idade trabalhassem por mais de nove horas, no Rio de Janeiro, que era a capital da República; em 1932, o Decreto 21.364 instituiu a jornada de oito horas diárias e 48 horas semanais na indústria; o Decreto n. 21.186, também deste ano, estendeu ao comércio; a Constituição de 1937 fixou-a em oito horas; as constituições de 1946, 1967 e 1969 mantiveram-na neste patamar. Coube à CF de 1988 fixar a duração de 44 horas semanais, “facultada a compensação de horas e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho”.
No que toca ao intervalo para repouso e alimentação (intervalo intrajornada), o PL rasga a garantia inserta no Art. 71 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), desde o dia 1º de maio de 1943, portanto, há 84 anos, que o assegura com a duração mínima de 1 (uma) hora; bem assim, a Súmula N. 437 do TST, que determina o seu pagamento, como hora extra, quando a sua integralidade (60 minutos) não é respeitada.
No que diz respeito às férias, o contestado PL consegue ser mais draconiano do que o regime militar, que, por meio do Decreto-lei N. 1535/1977, assegurou-o com a duração de 30 dias ininterrupto, salvo em casos excepcionais, como se colhe do Art. 134, da CLT:
Art. 134 – As férias serão concedidas por ato do empregador, em um só período, nos 12 (doze) meses subseqüentes à data em que o empregado tiver adquirido o direito (Redação dada pelo Decreto-lei nº 1.535, de 13.4.1977)
§ 1º – Somente em casos excepcionais serão as férias concedidas em 2 (dois) períodos, um dos quais não poderá ser inferior a 10 (dez) dias corridos (Incluído pelo Decreto-lei nº 1.535, de 13.4.1977)
§ 2º – Aos menores de 18 (dezoito) anos e aos maiores de 50 (cinqüenta) anos de idade, as férias serão sempre concedidas de uma só vez (Incluído pelo Decreto-lei nº 1.535, de 13.4.1977)”.
Este PL completa o danoso círculo de desmonte do Estado Democrático de Direito, que teve início com a Emenda Constitucional (EC) N. 95 – promulgada ao dia 15 de dezembro de 2016 -, que congela, por 20 anos, todas as políticas públicas sobre os quais se assenta a Ordem Social, passando pela Proposta de Emenda Constitucional (PEC) N. 287, que destrói a previdência e a assistência social.
Completado este ciclo, que o cínico e descarado Presidente Temer chama de fraternidade absoluta, será forçoso perguntar: ainda haverá Brasil, democrático e fundado na dignidade da pessoa humana, nos valores sociais do trabalho, no bem-estar e na justiça sociais. Com toda certeza, não.
José Geraldo de Santana Oliveira é consultor jurídico da Contee*