Análise do projeto de lei do “Simples Trabalhista” | Por José Geraldo de Santana Oliveira
Por José Geraldo de Santana Oliveira*
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, no ato de sua aprovação, em 1948, foi aprovada e assinada por quarenta e oito nações, não se registrando nenhum voto contrário, mas com oito abstenções. Dentre os quarenta e oito signatários dela está o Brasil.
Esta Declaração que representa o maior compromisso histórico que extrapola as fronteiras de um país estabelece, em seus artigos as bases sobre as se assentam a dignidade, a solidariedade e o bem estar social: razões maiores da vida em sociedade.
Para o estudo que se propõe a fazer, aqui, merecem destaques os artigos I e XXIII, da destacada Declaração:
“ Art. I Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas as outras com espírito de fraternidade.
Art. XXIII 1.Toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego.
2.Toda pessoa, sem qualquer distinção, tem direito a igual remuneração por igual trabalho.
3.Toda pessoa que trabalha tem direito a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência compatível com a dignidade humana, e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social.
4.Toda pessoa tem direito a organizar sindicatos a neles ingressar para proteção de seus interesses”.
O Brasil é também signatário do Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966, por meio do qual se obriga a:
“Art. 3º Os Estados-partes no presente Pacto comprometem-se a garantir que os direitos nele enunciados se exercerão sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer outra situação.
Art. 7º Os Estados-partes no presente pacto reconhecem o direito de toda pessoa gozar de condições de trabalho justas e favoráveis que assegurem especialmente:
a) Uma remuneração que proporcione, no mínimo, a todos os trabalhadores:
i) Um salário equitativo e uma remuneração igual por trabalho de igual valor, sem qualquer distinção; em particular as mulheres, deverão ter a garantia de condições de trabalho não inferiores às dos homens e perceber a mesma remuneração que eles, por trabalho igual.
ii) Uma existência decente para eles e suas famílias, em conformidade com as disposições do presente Pacto;
b) Condições de trabalho seguras e higiênicas.
c) Igual oportunidade para todos os de serem promovidos, em seu trabalho, à categoria superior que lhes corresponda, sem outras considerações que as de tempo, de trabalho e de capacidade.
d) O descanso, o lazer, a limitação razoável das horas de trabalho e férias periódicas remuneradas, assim como a remuneração dos feriados”.
A Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, ao implantar o Estado democrático de direito, incorporou aos seus princípios e direitos todos insertos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e na Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) e outros, incorporados à Constituição Portuguesa, como se constata pela leitura dos seus artigos 1º, 5º, 6º e 7º.
Já no seu preâmbulo, a Constituição da República Federativa do Brasil assevera que o Estado democrático, por ela implantado, destina-se a assegurar, dentre outros, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos da sociedade brasileira.
No seu artigo 1º, dispõe que a dignidade da pessoa humana (inciso III) e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (inciso IV) constituem-se em fundamentos da República. No 3º, estabelece que um de seus objetivos é o de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (inciso IV). No 5º, caput, elege a isonomia como um de seus pilares indestrutíveis.
No Título dos Direitos e Garantias Fundamentais, reserva o Capítulo i aos direitos individuais, e o II, que vai dos artigos 6º ao 11, como o direitos sociais, sendo aqueles e estes fundamentais e, portanto, insuscetíveis de modificações por meio de emendas constitucionais, exceto para a ampliação.
Consoante o Art. 6º, são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados.
O Art. 7º, em trinta e quatro incisos, discrimina os direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social. Dentre estes direitos, apenas o da proibição de dispensa imotivada (inciso I), o salário mínimo ( inciso IV), a proteção do salário ( inciso X), a participação nos lucros (inciso XI), o salário família (inciso XII), licença paternidade (inciso XIX), proteção do mercado de trabalho da mulher (inciso XX), aviso prévio proporcional (inciso XXI), adicional de insalubridade e periculosidade (inciso XXIII), proteção em face das automação (inciso XXVII) dependem de lei, para vigorar, os demais são autoaplicáveis, ou seja, são exigíveis desde a promulgação da Constituição, aos 5 de outubro de 1988, não se sujeitando a restrições e/ou a limites.
O Art. 170 vincula a ordem econômica à valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tendo por fim assegurar a todos existência digna.
O Art. 193 dispõe que a ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais.
Já se passaram sete legislaturas, desde a promulgação da Constituição de 1988, incluindo a que se lhe sucedeu, com término aos 15 de fevereiro de 1989, tendo a oitava cumprido o seu primeiro ano, sem que o Congresso Nacional se preocupasse em dar efetividade aos princípios e fundamentos constitucionais, quanto à valorização e o primado do trabalho. Ao contrário, o seu esmero, sem exceção de legislatura, tem como foco a exclusão e a diminuição deles.
As normas baixadas no período de vigência da nova Constituição demonstram, de forma inequívoca, que o Congresso Nacional não se posta nem se porta como guardião dela, mas, sim, como seu algoz. Basta dizer que já a emendou sessenta e sete vezes, quase sempre para diminuir-lhe o alcance.
No que diz respeito aos direitos sociais, que pendem de regulamentação por lei, somente o salário mínimo, e a partir de 2003, vem sendo regulamentado de forma decente, muito embora esteja longe de atender ao que preceitua o Art. 7º, inciso IV, da Constituição República.
O salário-família, a participação nos lucros (Lei N.10.101/2000), o aviso prévio proporcional (Lei N. 12.506/2011), aprovado às pressas, para se evitar que o Supremo Tribunal Federal o definisse de maneira mais benéfica, e a proteção do mercado de trabalho da mulher foram regulamentados de maneira pífia, que nem longe respeita a vontade do legislador constituinte e o bem-estar e a justiça sociais.
A proibição de dispensa imotivada, a proteção dos salários contra a sua retenção dolosa, a licença paternidade e a proteção em face da automação jamais mereceram a atenção do Congresso Nacional.
O adicional de remuneração pelas atividades insalubres e penosas continua sendo regido pela legislação anterior à Constituição, respectivamente, Art. 192 (com a redação dada pela Lei N. 6.514/1977) e 193 (pela Lei N. 7.369/1985), ambos da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
Os dispositivos constitucionais, contidos no Art. 7º, de eficácia contida, ou seja, que possuem parâmetros definidos em lei, embora dela não dependam para vigorar, também possuem alcance social de pequeno porte, como o seguro desemprego (inciso II), regulamentado pela Lei N. 7.998/1990; o FGTS (inciso III), Lei N. 8.036/1990; adicional noturno (inciso IX), Art. 381, da CLT; repouso semanal remunerado (inciso XV), Lei N. 605/49; aposentadoria, Lei 9.876/1999; seguro contra acidente de trabalho (inciso XXVIII).
Pode-se dizer, metaforicamente, com base nas normas baixadas pelo Congresso Nacional e sancionadas pelo Presidente da República, que, salvo raras exceções normativas, aos integrantes destes poderes, o bem-estar e a justiça sociais causam mal estar. Por isso, tudo fazem para impedir a prevalência deles. Ou, parafraseando o Jornalista uruguaio, Eduardo Galeano, tudo fazem para criar um Estado de pior estar social.
O fator previdenciário (Lei N. 9.876/1999); o regime de trabalho a tempo parcial (Art. 58-A, da CLT, Medida Provisória N. 2.164); e o banco de horas (Art. 59, da CLT, Lei N. 9.601/1998), que tem por finalidade eximir a empresa do pagamento de horas extras; o trabalho em cooperativa (Art. 442, Parágrafo único, da CLT, Lei N. 8.949/1994), todos criados após a Constituição de 1988, são demonstrações inequívocas da precarização das relações e das condições de trabalho.
Ao que parece, no Congresso Nacional, a maldade, contra o trabalho e trabalhador, não possui medidas. Fiel a esta máxima, o Deputado Júlio Delgado, do PSB de Minas Gerais, propôs o Projeto de Lei N. 951/2011, que, a pretexto de incluir o trabalhador informal, por meio do chamado Programa de Inclusão Social do Trabalhador Informal (Simples Trabalhista), a ser adotado pelas microempresas e as empresas de pequeno porte, definidas no Art. 3º, da Lei Complementar N. 123, visa a fazer com que a legislação trabalhista, para esses trabalhadores, seja literalmente rasgada, submetendo-os à condição análoga à de escravos.
Como bem salienta o Assessor Jurídico do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (DIAP), Dr. Hélio Stefani Gherardi, o citado Projeto de Lei, em tramitação na Câmara dos Deputados, “Em todas as tentativas de anular direitos dos trabalhadores contidos na Consolidação das Leis do Trabalho após a promulgação da Carta de 1988, nenhuma é tão funesta, abusiva, inconstitucional, repreensível, antidemocrática e ultrajante quanto o Projeto de Lei n. 951/2011.”.
O comentado Projeto de Lei fere letalmente todos os cânones do Direito brasileiro e comparado, tendo por escopo, não confessado, a volta à barbárie.
De plano, viola o princípio da isonomia, insculpido no Art. 5º, caput, da Constituição da República, ao prever, em seu Art. 3º, a criação de subpiso salarial, com valor abaixo do piso, convencionalmente estipulado, eufemisticamente chamado de regime especial de piso salarial, a ser definido em instrumento coletivo específico.
Aqui, inverte-se a ordem do que é estabelecido pelo Art. 620, da CLT, segundo a qual as condições insertas em convenções coletivas, quando mais vantajosas, prevalecem sobre as de acordos coletivos. O Projeto de Lei sob discussão determina o contrário, no seu Art. 3º, § 1º.
Fere, também, o Art. 8º, inciso VI, da Constituição da República, que condiciona a validade de negociações coletivas à participação dos respectivos sindicatos. No Projeto sob realce, os acordos coletivos podem ser celebrados diretamente entre empresa e empregados, inclusive para permitir trabalho em domingos e feriados e sem remuneração, por meio do famigerado e nocivo sistema de compensação de horas; o parcelamento do 13º salário em seis vezes; o fracionamento das férias em três períodos; e cumprimento de aviso prévio em horário normal; e a redução do FGTS ao percentual de 2% (dois por cento); o estabelecimento de cláusula compromissória, por meio da qual as partes prescindem da Justiça do Trabalho e elegem árbitro para a solução dos conflitos individuais.
Frise-se que negociação coletiva é aquela que envolve o conjunto dos empregados de uma empresa e/ou de uma categoria, não importando o número. E para que adquira validade jurídica tem de contar, obrigatoriamente, com a participação do sindicato correspondente. O que o Projeto de Lei dispensa.
No Brasil, com a permissão legal de denúncia vazia do contrato de trabalho, pelo patrão, a negociação direta entre este e o empregado não passa de engodo, assemelhando-se ao embate entre o pote de ferro e o de barro, parafraseando o jurista Benedito Calheiro Bonfim.
O trabalho aos domingos e feriados viola a Lei N. 11.603/2007; o parcelamento do 13º salário, a Lei N. 4.74965; o das férias, o Art. 134, da CLT, além de inviabilizar o seu objetivo primordial, que é o descanso do trabalhador; o cumprimento de aviso prévio, sem redução de jornada, contraria o Art. 488, da CLT, e a Súmula 230, do Tribunal Superior do Trabalho (TST); do FGTS, o Art. 15, da Lei N. 8.036/90, que o fixa em 8% (oito por cento) do total da remuneração; o estabelecimento de cláusula compromissória, o Art. 5º, inciso XXXV, da Constituição da República.
Não satisfeito, o realçado Projeto de Lei permite a celebração de contrato por prazo determinado para todas as atividades da empresa, em total confronto com o Art. 443, da CLT, que não o permite para a atividade fim, mas, apenas, para as de caráter transitório.
Como é sabido, nos contratos de prazo determinado, não há aviso prévio, se rescindido ao seu término, nem indenização de 40% (quarenta por cento) do total do FGTS. Assim, a previsão do Projeto representa mais um significativo prêmio à empresa e mais severo golpe no trabalhador.
As empresas que aderirem ao “Simples Trabalhista”, melhor seria dizer ao “Nada trabalhista”, ficam dispensadas da adoção de medidas de segurança e da medicina do trabalho, descritas nos Art.s 154 a 201, da CLT, transferindo-a para o Sistema Único de Saúde (SUS) e o Ministério do Trabalho e do Emprego (MET). Importa dizer: cada empresa aderente a este sistema pode se equiparar a uma senzala, sem problema algum, no que diz respeito à segurança, higiene e demais condições de trabalho.
Como se tudo isso ainda fosse pouco, as empresas enquadradas no “Simples Trabalhista”, que quitarem os seus débitos trabalhistas, anteriores a este ato, obrigação primeira de qualquer empresa, inclusive em caso de falência, pasmem! no prazo de um ano, ficam isentas de quaisquer tributos.
Não é só. Em caso de condenação, pela Justiça do Trabalho, para recorrerem, as microempresas terão de depositar tão somente 25% ( vinte e cinco por cento) do valor exigido, a título de depósito recursal, e as empresas de pequeno porte, 50% ( cinqüenta por cento).
É bem de ver-se que o depósito recursal, em centenas de processos, constitui-se na única garantia de satisfação dos créditos deferidos pela Justiça do Brasil, notadamente de pequenas empresas. Garantia que o Projeto reduz drasticamente.
E, por último, as empresas do “Simples Trabalhista” poderão ser representadas em juízo por qualquer pessoa, sem que isto implique revelia e confissão ficta, quanto à matéria fática, em flagrante violação ao que preceituam os Arts. 843 e 844, da CLT.
Em uma palavra: o Projeto de Lei sob apreciação representa o paraíso para as empresas e o inferno para os trabalhadores, em escancarado e descarado ato de negação de todos os princípios e fundamentos sobre os quais se assenta o Estado democrático de direito.
O autor do Projeto sob comentários tem o desplante de afirmar que ele se ampara no Art. 170, inciso IX, da Constituição da República, que prevê tratamento favorecido às empresas de pequeno porte.
É fato que há previsão constitucional, contudo, nas à custa dos direitos sociais, como quer o autor. Não é demais lembrar que, no Art. 1º, inciso IV, e no próprio 170, caput, a Constituição, respectivamente, estabelece como fundamentos da República e da ordem econômica, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. Mas, ao autor só interessa a segunda parte destes princípios constitucionais, como se fosse possível construir o bem-estar e a justiça sociais sobre bases análogas às da escravidão.
Se este malfadado Projeto for aprovado e se transformar em lei, o Brasil rasgará a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, o Pacto de San José da Costa Rica, a sua Constituição e todos os anos de luta em prol dos direitos nele assegurados.
Ao que tudo indica, face a esse paraíso, todas as empresas, micro, de pequeno e grande porte requererão a sua inclusão no “ Simples Trabalhista”. Afinal, qual delas não quer viver no paraíso, sem culpa e sem custo?
Na hipótese de esse monstro vir a ser aprovado, a Contee, com amparo no Art. 103, inciso IX, da Constituição da República, deverá, imediatamente, ajuizar, perante o Supremo Tribunal Federal (STF), a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), remédio jurídico, de maior eficácia, em casos que tais, prevista no Art. 102, § 1º, também da Constituição.
* José Geraldo de Santana Oliveira é consultor jurídico da CONTEE