Análise preliminar do projeto de valorização e fortalecimento da negociação coletiva
Consultor jurídico da Contee pondera sobre documento interno elaborado por CUT, UGT e Força Sindical, com participação da CTB na terceira versão
Por José Geraldo de Santana Oliveira*
O documento elaborado por CUT, UGT e Força Sindical, com o título “PROJETO DE VALORIZAÇÃO E FORTALECIMENTO DA NEGOCIAÇÃO COLETIVA E ATUALIZAÇÃO DO SISTEMA SINDICAL BRASILEIRO”, em sua versão 3, que contou com a participação da CTB, aos olhos deste observador, reclama muitas ponderações e reflexões.
Sobreleva-se, dentre elas, a de se tratar de documento para a adesão das demais centrais, posto que não participaram de sua elaboração. Isso, a toda evidência, arranha a imprescindível unidade construída ao longo dos anos e que foi decisiva para as poucas vitórias sindicais dos últimos anos — em especial, o êxito da Conclat 2022.
2 Ao discorrer sobre o “CONTEXTO”, o documento assevera: “Essas diretrizes indicam um caminho que exigirá mudanças através de Lei Ordinária, sem precisar, portanto, emenda constitucional. Apresentamos um caminho que preserva a redação atual do artigo 8 º da Constituição e, ao mesmo tempo, produz avanços”.
3 Porém, ao se cotejar as diversas propostas de mudanças no “SISTEMA SINDICAL” com o Art. 8º da Constituição Federal (DF), deparam-se, desde logo, com proposições que não estão acordes com este, tais como:
I ) no subtópico 3.1 do item 3 (SOBRE O SISTEMA SINDICAL), propõe-se o seguinte: “As entidades sindicais adquirem a personalidade jurídica com o registro civil de pessoa jurídica”.
Todavia, o Art. 8º da CF, inciso I, exige também “o registro no órgão competente”, tendo o STF baixado a Súmula 677, que dispõe: “Até que lei venha a dispor a respeito, incumbe ao Ministério do Trabalho proceder ao registro das entidades sindicais e zelar pela observância do princípio da unicidade”.
Desse modo, enquanto se mantiver a redação atual do Art. 8º da CF, é imprescindível o registro sindical em órgão competente, que deve zelar pela observância do princípio da unicidade, como determina a citada Súmula do STF. Nada obsta que esse órgão seja o Conselho de Autorregulamentação das Relações de Trabalho (Cart), proposto pelo documento. Não pode, em nenhuma hipótese, ser cartório de registro civil, por lhe faltar competência para o cumprimento da obrigação de zelar pela observância da unicidade sindical;
- II) no subtópico 3.3, propõe-se: “Para estancar o atual processo de fragmentação dos sindicatos e permitir que todas as mudanças propostas, ficará proibida durante (3 ou mais, 5 anos) anos a fragmentação da atual base sindical”.
Essa proposta, além de não ser clara quanto ao seu alcance, por não precisar o que se deve entender por fragmentação da atual base sindical, esbarra nos incisos I e II do Art. 8º da CF, posto que, antes de mais nada, representa interferência do Poder Público. Além disso, porque nenhuma lei pode impedir que, respeitado o princípio da unicidade e base territorial não inferior à área de um município as respectivas categorias, sejam criados sindicatos.
O que se pode e deve fazer é regulamentar, de forma clara e insuscetível, o conceito de categoria, para estancar a sanha do judiciário trabalhista de aplicar pluralismo sindical à revelia do Art. 8º da CF;
III) os subtópicos 3.11, 3.14, 3.15 e 3.16 versam sobre densidade sindical, sem estabelecer, com a devida clareza, critérios objetivos sobre o que se visa com sua adoção e quais são as penalidades a serem aplicadas às entidades que não as alcançarem.
Extrai-se de sua leitura que as entidades que não as cumprirem perderiam a representatividade sindical, não podendo, a partir de sua constatação, cumprir as obrigações atribuídas aos sindicatos pelo Art. 8º, III, da CF.
Se realmente for esse seu propósito, pelas mesmas razões elencadas no item II desta singela análise, essa proposição estaria em desacordo com os incisos I e II do Art. 8º da CF, o que lhes retiraria validade jurídica;
- IV) o subtópico 3.16 diz: “Mensuração da densidade sindical considera somente os trabalhadores ativos (não considera aposentados)”.
Ao menos ao primeiro olhar, esse item colide com a garantia inserta no inciso VII do Art. 8º da CF, assim exarada: “o aposentado filiado tem direito a votar e ser votado nas organizações sindicais”.
Esse dispositivo constitucional, de maneira clara e insuscetível de dúvida, mantém os aposentados sob o manto da representação do sindicato de sua categoria, para todos os efeitos legais, inclusive o de ser seu dirigente, não importando, pois, a aposentadoria em afastamento da base de representação da respectiva entidade.
Desse modo, a não ser que se conforme o item 3.16 com essa garantia, ainda que ele venha a ser aprovado por lei, não gozará do status de constitucional, por colidir com o disposto no Art. 8º, VII, da CF;
- V) os subtópicos 3.17 a 3.21, de maneira absolutamente pertinente e imprescindível, tratam do financiamento sindical, nada havendo a objetar quanto à sua relevância e ao seu conteú
Não obstante isso, faz-se necessário considerar que a questão, dificilmente, será resolvida por lei, seja ordinária ou complementar, ante a retrógrada jurisprudência do STF, firmada na Súmula vinculante 40, e no Tema com repercussão geral 935, que dispõem:
Súmula vinculante 40 — A contribuição confederativa de que trata o art. 8º, IV, da Constituição Federal só é exigível dos filiados ao sindicato respectivo.
Tema 935 — Inconstitucionalidade da contribuição assistencial imposta aos empregados não filiados ao sindicato, por acordo, convenção coletiva de trabalho ou sentença.
É preciso ponderar que o estrangulamento financeiro das entidades sindicais não decorre de anomia (falta de norma) que o regulamente; decorre, isto sim, da jurisprudência antissindical do STF e da SDC do TST, com seu famigerado Precedente Normativo 119.
O Art. 513 da CLT, em sua alínea ‘e’, com a redação dada pelo Decreto-lei N. 8987-A, de 1946, jamais alterada, assegura aos sindicatos, como prerrogativa: “impor contribuições a todos aqueles que participam das categorias econômicas ou profissionais ou das profissões liberais representadas”.
4 O tópico 4 dispõe “SOBRE O SISTEMA COLETIVO DE NEGOCIAÇÃO COLETIVA”, fazendo-o em 7 subtópicos, razoavelmente abrangentes, e trazendo como inovação principal a garantia de negociação coletiva para os servidores públicos de todos os entes federados.
Muito embora o Art. 37, X, da CF assegure data-base de revisão dos subsídios dos servidores públicos dos quatro entes federados, fixada ao 1º de janeiro para os servidores federais, pela N. 7706/1998; a inovação sob comentários somente se concretizará por meio de modificação do § 3º do Art. 39 da CF, posto que dentre os direitos insertos do Art. 7º, que ele assegura àqueles, não se inclui a negociação coletiva — que, no entanto, é assegurada pela Convenção 151 da OIT, ratificada pelo Brasil.
5 Os 7 subtópicos tratam do fortalecimento e da valorização da negociação coletiva, esvaziada e amordaçada sobretudo pela Lei N. 13.467/2017 e pelo STF, que julgou inconstitucional a Súmula 277 do TST na arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) 323, que garantia a ultratividade das normas coletivas, bem como constitucional o § 3º do Art. 614 da CLT, com a redação dada pela Lei N. 13.467/2017, que a proíbe, até mesmo por convenção ou acordo coletivo.
Em que pese a densidade dos 7 subtópicos, nenhum deles aborda questões essenciais e inadiáveis, de cuja resolução adequada, em prol do trabalho, depende a valorização da negociação coletiva não passa de mera figura de retórica.
O subtópico 3.2 bordeja, de forma genérica, uma das referidas questões, que será a seguir elencada, assim o fazendo: “Categoria passará a ser um conceito que possibilitará a agregação dos trabalhadores por ramo ou setor de atividade econômica, permitindo a ampliação da base de representação”.
Muito embora a questão relativa ao conceito de categoria se insira no quadro das que demandam solução imediata, não é o único, havendo outros de igual relevância, tais como:
- I) limitação da representação sindical a quem tem CTPS assinada, que, segundo a Pnad divulgada aos 19 de janeiro de 2023, totaliza apenas 36,8 milhões, ou 36,91% do total da força de trabalho ocupada, que, no trimestre de setembro, outubro e novembro de 2022, totalizou 99,7 milhões.
Com isso, são excluídos da representação sindical os empregados sem CTPS assinada, autônomos, pejotas, que são figuras monstruosas criadas pela Lei N. 13.467/2017. Assim, acham-se alijados os informais, sendo que a soma de todos os alijados da representação sindical chega a 62,8 milhões, em relação à força de trabalho ocupada (99,7 milhões), ou 63,09%.
Por isso, a revogação imediata dos Arts. da CLT que regulamentam a organização sindical (511, 570, 571, 572, 573, 574, 575, 576 e 577) é tarefa urgente e inadiável, seja por se mostrarem incompatíveis com a CF de 1988, por se acharem em descompasso com a realidade social, em constante mutação, ou, ainda, por se constituírem em entraves para efetiva proteção dos/as trabalhadores/as;
- II) os terceirizados, por decisão do STF nas ADIs 5685, 5686, 5687, 5695 e 5735, não integram a base de representação dos seus respectivos sindicatos, não sendo, por isso, abrangidos pelos instrumentos normativos coletivos que esses assinam. Somente podem ser representados por sindicatos de terceirizados.
RE 635546, terceirizados como trabalhadores de segunda categoria, sob a ótica do STF
Tese: “A equiparação de remuneração entre empregados da empresa tomadora de serviços e empregados da empresa contratada (terceirizada) fere o princípio da livre iniciativa, por se tratar de agentes econômicos distintos, que não podem estar sujeitos a decisões empresariais que não são suas”.
III) o direito de greve foi transformado pela SDC (Seção de Dissídios Coletivos) em poderosa arma a serviço do capital e, por óbvio, contra os/as trabalhadores/as, como atestam as decisões a seguir anotadas:
TST e a destinação de multa fixada em DG
Processo: RO-83-52.2014.5.11.0000 (SDC)
GMMGD/vd/ls/mas/dsc
RECURSO ORDINÁRIO DO SINDICATO DAS EMPRESAS DE TRANSPORTE DE PASSAGEIROS DO ESTADO DO AMAZONAS – SINETRAM. PROCESSO SOB A ÉGIDE DA LEI 13.467/2017. DISSÍDIO COLETIVO DE GREVE. DESTINAÇÃO DA MULTA APLICADA POR DESCUMPRIMENTO DE DECISÃO LIMINAR EM CONTEXTO DE GREVE.
Segundo a jurisprudência majoritária desta Seção de Dissídios Coletivos, a multa por descumprimento de obrigação de fazer ou de não fazer – fixada em decisão liminar em contexto de greve – é devida ao exequente, em razão do critério objetivo fixado no art. 537, § 2º, CPC. Ressalva de entendimento do Relator. Recurso ordinário conhecido e provido
TST e a proibição de greve política
O sítio do TST, em 4/5/22, com a manchete “Greve de rodoviários do Espírito Santo contra reforma da previdência é considerada abusiva”, deu notícia de que a Seção Especializada em Dissídios Coletivos (SDC) do Tribunal Superior do Trabalho no processo ROT-303- 39.2019.5.17.0000 “declarou abusiva a greve deflagrada pelo Sindicato dos Trabalhadores em Transportes Rodoviários do Estado do Espírito Santo (Sindirodoviários), em 14/6/2019, contra a emenda constitucional de reforma da previdência social em tramitação, na época, no Congresso Nacional. De acordo com o colegiado, a paralisação teve motivação política, com pretensões que não poderiam ser atendidas pelo empregador. A decisão autoriza o desconto do dia parado nos salários de quem participou do movimento”.
- IV) sem a revogação dos entulhos envenenados da Lei N. 13.467/2017, não haverá negociação coletiva fortalecida e valorizada. Tais entulhos são, a rigor, todos os seus dispositivos, em especial, os seguintes:
Art. 8º, § 1º, que retira do direito do trabalho a obrigatoriedade de observância dos princípios que o regem;
Art. 8º, § 3º, que impede a Justiça do Trabalho de afastar cláusulas convenções e acordos coletivos que lesam direitos mínimos;
Art. 59-A, que autoriza jornada de 12 horas ininterrupta, sem direito a intervalo para repouso e alimentação;
Art. 134, § 1º, que fraciona as férias em três períodos, sendo que dois podem ser de apenas cinco dias cada um;
Art. 223-G, que afere a dignidade do/a trabalhador/a pelo salário que recebe, um verdadeiro vale quanto pesa;
Art. 394-A, que autoriza trabalho de gestante em atividade insalubre, já declarado inconstitucional pelo STF;
Art. 442-B, que cria a esdrúxula figura de autônomo exclusivo, sem nenhum direito social;
Art. 452-A e seguintes, que criam o contrato intermitente, que cria a fantasmagórica figura de trabalhador/a formalmente contratado/a, mas sem trabalho, salário e direitos;
Art. 456-A, que permite a empresa usar o corpo do trabalhador como outdoor, para fazer propaganda, por meio de uniforme, sem nenhum retorno financeiro para ele/a;
Art. 477-A, que desregulamenta o inciso I, do Art. 7º, da CF, que assegura proteção contra despedida arbitrária ou sem justa causa;
Art. 507-A, que cria o/a trabalhador/a hipersuficiente, sem direito constitucional, legal e convencional;
Art. 611-A, § 5º, que transforma os sindicatos em réus em ações judiciais movidas contra convenções ou acordos coletivos;
Art. 611-B, XXVI, que retira das assembleias sindicais autonomia para fixar contribuições aos/às sócios/as;
Art. 614, § 3º, que declara nula cláusula de convenção ou acordo coletivo que assegure ultratividades das normas convencionais;
Art. 620, que faz acordo coletivo maior que convenção coletiva;
Art. 702, I, que cria barreira intransponível para a Justiça do Trabalho aprovar súmulas, orientações jurisprudenciais e precedentes normativos;
Art. 790-B e 791-A, que punem o/a trabalhador/a que reclama seus direitos lesados perante a Justiça do Trabalho, se seus pedidos não forem totalmente procedentes.
Ao debate!
*José Geraldo de Santana Oliveira é consultor jurídico da Contee
OAB/GO 14090