Ao manter Enem, governo não considera estudantes pobres, diz vice-presidenta da UNE
Ministro Waintraub assegura cronograma mesmo com crescimento da pandemia; entidades estudantis e educadores criticam
O Ministério da Educação (MEC) confirmou a realização do Enem, um dos maiores vestibulares do mundo – atrás apenas da seleção universitária da China, o Gaokao – para os dias 1º e 8 de novembro. A decisão, que foi reiterada pelo ministro Abraham Weintraub em diversas ocasiões, foi chancelada pelo Tribunal Regional Federal da 3 Região (TRF-3), na última semana.
Para alunos, organizações estudantis e educadores ouvidos pelo Brasil de Fato, essa decisão não levou em conta os desafios enfrentados por alunos, principalmente os que integram as redes públicas de ensino, que estão afastados do ambiente escolar, por conta da pandemia de coronavírus.
Entre os entraves relatados está a baixa participação dos estudantes nas aulas de ensino à distância – que já vigora em vários estados do país –, a falta de infraestrutura e tecnologia para assistir às aulas em casa e as condições psicológicas de uma preparação tão importante como o vestibular, em um momento como esse.
Segundo a Unesco, organização das Nações Unidas para a educação, 165 países fecharam suas escolas, deixando cerca de 1,5 bilhão de alunos sem aulas.
“O ministro [Abraham Weintraub] infelizmente não está preocupado que os estudantes, que o povo mais pobre acesse a universidade. Por isso a gente defende o adiamento das provas, para que a gente consiga debater com a sociedade, com as secretarias estaduais e municipais de ensino, um plano e um calendário, levando em conta os limites pedagógicos e técnicos que esse momento de pandemia nos impõe”, explica Élida Elena, vice-presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE).
A UNE e outras organizações estudantis estão organizando um ato virtual contra a postura do MEC nesta sexta-feira (8). A entidade também elaborou um abaixo-assinado para reverter a decisão da Justiça que confirmou a realização do Enem no cronograma original.
Ensino prejudicado
Os estudantes, que tentam se adaptar à realidade do ensino à distância, agora terão que correr uma maratona para recuperar o tempo perdido com a paralisação das aulas. No entanto, eles têm se queixado da baixa efetividade da EaD, que não resolve grande parte das dúvidas dos alunos.
Para Bianca Miranda dos Santos, estudante do 3º ano da escola Comendador Mario Reis, localizada na zona leste da cidade de São Paulo, as aulas à distância “têm sido muito ruins, por não ter os professores ali, não ter as atividades escolares”.
“Por mais que nós tenhamos as aulas online, convenhamos que não é a mesma coisa que o professor frente a frente, cara a cara”, completa a estudante. Ela tentará pela terceira vez o Enem para ingressar em um curso de Medicina.
Já para a colega de Bianca, Jéssica de Souza Andrade, que fará o Enem pela terceira vez e vai tentar uma vaga em curso de Fisioterapia, o tempo que os professores estão disponíveis para tirar as dúvidas não é suficiente. “Às vezes você quer fazer uma lição e o professor está em reunião e não tem tempo de responder. Na aula presencial, ele explicava e você entendia mais. Em casa é mais difícil. Agora, não estou conseguindo aprender quase nada, vou ter muita dificuldade”, afirma a estudante.
Segundo o professor de Sociologia, Leandro Ramos Gonçalves, que leciona para alunos do ensino médio da escola Salvador Rocco, do bairro Vila Carrão, em São Paulo, “há um hiato entre a inscrição para a prova do Enem e a realização do exame. Um percurso de aflição do estudante do terceiro ano, sobretudo na escola estadual”.
“Ele começa a ingressar na ideia de ir ao vestibular, de ir ao Enem, uma retomada e finalização de estudos. Nós temos feito isso, mas virtualmente. Envia o conteúdo, tira dúvida, responde por áudio. Essa dinâmica não é a ideal para esse tipo de situação. Lembrando que apenas 30%, 40% dos alunos conseguem acompanhar as aulas à distância”, explica.
Motivação?
Nesta semana, o MEC divulgou um vídeo de um minuto, convocando os estudantes para o Enem e tentando estimulá-los ao estudo em casa. A publicação causou revolta em educadores e entidades estudantis, que afirmaram que o Ministério desconsidera a situação de grande parte dos alunos do país, que estão nas periferias e sem acesso à tecnologia para complementar seus estudos.
“O vídeo diz para os estudantes: estudem, na internet ou em livros. E essa não é a realidade que nós temos na educação brasileira. Ele [Abraham Weintraub] maquia a realidade de forma intencional. Ele sabe que o povo pobre não acessa à internet da mesma forma que a classe média. O projeto que ele defende é o de uma universidade sem povo”, aponta Élida Elaine, da UNE.
Além do vestibular presencial do Enem, que tem data marcada para os dias primeiro e oito de novembro, o MEC também realizará uma versão digital da prova, nos dias 22 e 29 de novembro, para aqueles que não puderem se deslocar no período.
Nesta terça-feira, Weintraub esteve no Senado e reuniu-se com líderes da Casa, novamente defendendo a manutenção do edital. Na visão do ministro, o país só estará em situação de isolamento social em novembro se houver “uma hecatombe”.
Tramitam no Congresso, projetos que preveem o adiamento das provas, como dos senadores Humberto Costa (PT-PE) e Daniella Ribeiro (PP-PB). Na Câmara dos Deputados, foi protocolado um Projeto de Decreto Legislativo nº 167/2020 que suspende o edital da prova de 2020. Parlamentares de ambas as casas pressionam para que o tema entre na pauta legislativa.
Em nota de esclarecimento, o MEC afirma que “Enem é uma das políticas públicas de educação mais importantes, a ser prestada anualmente, pois, além de avaliar o ensino médio, significa a porta de entrada ao ensino superior para milhões de brasileiros”.
Ainda segundo a nota, “por esse motivo, o Inep está buscando garantir sua execução adequada, não apenas para cumprir com seu dever institucional, mas, principalmente, para não prejudicar mais ainda a sociedade brasileira. Inclusive, com o Enem Digital é oferecida à sociedade mais de uma aplicação durante o ano”.