Aos 35 anos, Constituição sai do 8 de janeiro fortalecida, diz especialista
A advogada constitucionalista Flavia Bahia, defende que, apesar das emendas e legislações infraconstitucionais, o texto de 1988 mantém vivo seu espírito garantista de direitos
A Constituição de 1988 completa 35 anos e Flávia Bahia, advogada especialista em direito constitucional e professora de direito da FGV Direito Rio, compartilhou sua avaliação sobre os avanços e desafios que essa legislação trouxe para o Brasil, em entrevista ao Portal Vermelho.
Ao responder se houve algum momento mais delicado em que a Constituição foi testada ao limite, a advogada lembrou dois momentos recentes. Para ela, o 8 de janeiro de 2023 e a pandemia (desde 2020) foram estes momentos que colocaram os valores democráticos e republicanos em choque com as instituições, saindo fortalecidos destes episódios. Desta forma, o governo de Jair Bolsonaro (2019-2022), pode ser colocado como um catalisador destes enfrentamentos aos valores constitucionais.
A Constituição de 1988, chamada de “Constituição Cidadã”, é um marco na história brasileira por sua abordagem humanística e seus impactos significativos na garantia de direitos fundamentais. Assim, Flávia chama a atenção para a necessidade de uma vigilância permanente dos valores constitucionais.
(Para ler a entrevista completa, vá até o final).
O legado da Constituição de 1988
Flavia destacou que a Constituição de 1988 representou uma virada constitucional e humanista para o Brasil, devolvendo o país aos brasileiros e possibilitando a proteção abrangente de direitos e garantias individuais e coletivas. Ela enfatizou que os avanços promovidos pela Constituição são incontáveis, com destaque para o princípio da dignidade da pessoa humana, que influenciou toda a legislação brasileira e colocou o país em destaque no direito internacional dos direitos humanos.
Um dos pontos mais notáveis da Constituição é o Artigo 5º, que contém 79 incisos que estabelecem uma ampla gama de liberdades, direitos individuais e coletivos. Entre os avanços notáveis, Flavia Bahia mencionou a igualdade formal entre homens e mulheres perante a lei, a proibição da tortura e tratamento desumano ou degradante, bem como a proibição da censura e da licença, que eram proeminentes na época da ditadura militar. A Constituição também aborda questões importantes, como o combate ao racismo, com pena de reclusão.
Além disso, a Constituição de 1988 oferece proteção a várias minorias, incluindo comunidades indígenas, pessoas com deficiência, idosos, crianças e adolescentes. Ela promove um projeto de felicidade claramente definido em seu texto, estabelecendo direitos fundamentais relacionados à moradia, alimentação, transporte e outros aspectos cruciais da vida.
Desafios e crises de efetividade
A especialista também apontou os desafios que o Brasil enfrenta em relação à Constituição de 1988. Embora a Constituição tenha prometido avanços significativos em áreas como saúde, educação e assistência social, ainda há uma crise de efetividade na implementação dessas políticas. A falta de regulamentação de direitos previstos na e a falta de vontade política para concretizá-los são obstáculos importantes.
Por exemplo, a saúde universal e igualitária, conforme estabelecido no Artigo 196 da Constituição, ainda não é uma realidade no país. Da mesma forma, a educação, que é um direito de todos e dever do Estado de acordo com o Artigo 205, depende de políticas governamentais eficazes para se tornar uma realidade.
A advogada também mencionou que a flexibilização dos direitos trabalhistas ocorreu em nível infraconstitucional e não constitucional, ressaltando que a Constituição ainda desempenha um papel fundamental na defesa dos direitos dos trabalhadores. Ela destacou que a Constituição assegurou direitos importantes para as mulheres no mercado de trabalho e para pessoas com deficiência, que não existiam em constituições anteriores.
Atuação dos tribunais e proteção da Constituição
A entrevista abordou a atuação dos tribunais na proteção da Constituição de 1988. Flavia elogiou a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) como o grande guardião da Constituição e destacou várias decisões importantes relacionadas a direitos fundamentais, como a legalização da união homoafetiva e o reconhecimento de direitos das comunidades indígenas. Ela enfatizou que o Supremo tem desempenhado um papel corajoso na defesa da Constituição, mesmo quando isso envolve custos políticos.
No entanto, a advogada observou que a relação entre os poderes legislativo e judiciário é complexa, especialmente quando se trata de questões sensíveis. Ela também abordou a questão do marco temporal, que foi indeferido pelo STF, mas posteriormente aprovado pelo Congresso Nacional. A advogada acredita que, em casos como esse, a Constituição será mantida, pois as decisões do STF sobre questões constitucionais prevalecem.
Em suma, a Constituição de 1988 trouxe avanços significativos para o Brasil ao estabelecer uma base sólida de direitos e garantias fundamentais. No entanto, há desafios a serem superados na efetivação desses direitos, e a atuação dos tribunais desempenha um papel importante na proteção da Constituição. A entrevista com a especialista em Constituição destaca a importância contínua dessa legislação na vida do Brasil e sua capacidade de enfrentar desafios e crises ao longo de 35 anos de história constitucional.
Leia a íntegra da entrevista:
Qual a avaliação da senhora a respeito dos avanços que foram obtidos por essa Constituição?
A Constituição de 88 configura uma virada constitucional e humanística do país. Ela devolveu o Brasil aos brasileiros, ela abriu realmente a possibilidade de que os nossos direitos e garantias pudessem ser largamente protegidos por um texto constitucional. E os avanços, eles são absolutamente incontáveis. E eu vou destacar pelo menos alguns.
É a primeira constituição brasileira a ser fundamentada pelo princípio da dignidade da pessoa humana. E isso diz muito sobre a Constituição, porque o princípio reverbera sobre todo o texto constitucional, influencia a criação das normas no plano infraconstitucional e coloca o país num papel de destaque também no direito internacional dos direitos humanos.
O artigo 5º, que é a grande pérola da Constituição, ele é formado por 79 incisos, que desdobram as inúmeras liberdades, direitos individuais e coletivos. Ele tem inúmeros dispositivos que representam esse grande progresso constitucional. Por exemplo, o artigo 5º, inciso 1º, diz que homens e mulheres são iguais perante a lei. Nenhuma outra constituição brasileira trouxe essa igualdade formal como hoje a gente lê na constituição. O inciso 3 proíbe a tortura, o tratamento desumano ou degradante. Nós temos a proibição da censura, da licença, que foram muito marcadas na época da ditadura. Então, há um compromisso com múltiplas liberdades na Constituição de 88, a proibição do racismo tratado como crime inafiançável, imprescritível, sujeito a pena de reclusão.
Podemos também falar da proteção a inúmeras minorias, às comunidades indígenas, às pessoas com deficiência, aos direitos dos idosos, às crianças e aos adolescentes, há um projeto de felicidade muito bem claro no texto constitucional.
Mas apesar de termos muito a celebrar, temos também desafios pela frente e eles são inúmeros. A Constituição prometeu muito, avançou na saúde, na educação, na assistência, mas há ainda uma crise de efetividade, não por culpa dela, mas por aqueles que instrumentalizam o texto constitucional. E falta no país, eu creio, que por parte de alguns, a chamada “vontade de constituição”, de realizar toda essa promessa constitucional.
Agora, isso seria a falta de regulamentação de direitos que a Constituição previu, ou é algum problema de interpretação, mesmo?
Não apenas de regulamentação de direitos, mas de concretização de direitos, atuação administrativa voltada à implementação de muitas normas da Constituição que são problemáticas. Por exemplo, o artigo 196 diz que saúde é direito de todos e dever do Estado. Sabemos que essa saúde universal, a igualdade ainda não é uma realidade do país.
No artigo 205, a gente tem uma redação parecida, em que educação é direito de todos, dever do Estado, e depende de políticas governamentais, para que possa se tornar realidade. Então, falta lei em muitos casos, mas, na grande maioria, falta vontade de concretizar a Constituição, homens e mulheres comprometidos com esse projeto constitucional.
Fala-se do direito à moradia, por exemplo, que é algo que percebemos que é mais difícil de concretizar.
O artigo 6 contempla além de saúde e educação, moradia, alimentação, transporte. É como se a Constituição de 88 tivesse de fato confirmado um patamar civilizatório formal muito alto. Nós realmente avançamos, mas creio que o grande desafio dos próximos anos seja a realização de tudo isso.
Temos muito a celebrar, muito a vigiar também, porque precisamos estar sempre atentos na preservação da nossa Constituição e na realização dela, porque ela é um compromisso de todos. A Constituição restaurou o regime democrático e tem uma frase que eu gosto muito de um congressista norte-americano já falecido, John Lewis, em que ele diz assim, a democracia não é um Estado, a democracia é a ação.
Então, devemos cobrar dos nossos representantes, mas ao mesmo tempo, também realizar a Constituição, na nossa vida, no respeito ao próximo, nos princípios da solidariedade, da convivência mútua, temos muito a cumprir pela frente.
Nesses 35 anos, ela passou por muitas alterações. O Congresso agiu no sentido de, tanto regulamentar, quanto fazer alterações mesmo, por meio de emendas constitucionais. Dentre essas alterações, o que a senhora destacaria? Existem direitos que são mais afetados por essas alterações?
Na verdade, as alterações são esperadas dentro de um constitucionalismo jovem. Talvez não tantas, porque nós temos 131 emendas constitucionais, sendo que as duas últimas foram promulgadas ontem e ainda seis emendas de revisão.
Mas tivemos emendas muito boas, por exemplo, moradia, alimentação e transporte foram direitos assegurados pela Constituição por emenda constitucional, a partir dos anos 2000. Temos emendas mais oportunistas também, sem dúvidas. Tivemos em 2016 a janela partidária pela emenda 91 que permitiu que os parlamentares mudassem de partido sem que isso representasse a perda do cargo. Mas eu creio que, no geral, a gente não teve uma reforma que descaracterizasse o espírito da Constituição, que coloque em risco seus valores, seus fundamentos principais, a gente precisa realmente estar vigilante. Mas nenhuma reforma que a Constituição sofreu, na minha opinião, nesses últimos 35 anos, colocou em risco todo esse projeto de reviver a democracia em bases mais garantistas.
A senhora mencionou reformas políticas que beneficiam a conservação de um determinado sistema político. A senhora não acha que teve também reformas do trabalho, em que se precarizou, alguns direitos, no sentido de terceirizar a contratação de trabalhadores, a criação de contratos intermitentes?
Foram mudanças infraconstitucionais. A Constituição, inclusive, recebeu uma reforma muito importante pela Emenda 72 para assegurar novos direitos à categoria dos trabalhadores domésticos. As mudanças de flexibilização dos direitos trabalhistas, que eu acho que você está perguntando, foram flexibilizações infraconstitucionais, muitas por medidas provisórias, outras por leis, e outras inclusive chanceladas por decisões do Judiciário.
A Constituição ainda continua sendo um pilar na defesa dos direitos dos trabalhadores, como nenhuma outra Constituição conseguiu garantir o direito da mulher no mercado de trabalho, garantindo que ela não receba salário inferior ao do homem enquanto realizar a mesma função, a proteção à pessoa com deficiência no mercado de trabalho. Os avanços foram inúmeros, mas nós também temos os sobressaltos, os momentos difíceis de interpretação do texto constitucional. A flexibilização trabalhista, eu creio que esteja nessa seara mais interpretativa e de regulamentação do que constitucional.
Vou aproveitar que a senhora mencionou que muitas vezes os tribunais acabam chancelando certas alterações infraconstitucionais, para perguntar como a senhora avalia a atuação dos tribunais na defesa da Constituição?
Bem, chamando a atenção aqui do Supremo, que é o grande guardião da Constituição, eu vejo decisões muito importantes ao longo desses 35 anos. É claro que as vicissitudes também existem, que as críticas estarão sempre presentes, mas, por exemplo, em 2011, o Supremo ao julgar a ADI-4277, decidiu, pra mim, da forma mais constitucional possível, ao dizer que o Estado não pode escolher a forma com que as pessoas se relacionarão, ou seja, escolher os afetos. Então ao confirmar a união homoafetiva como formadora de uma família, isso nos coloca num patamar avançado. A gente progride como nação, porque as pessoas passam a ter direito a mais respeito e dignidade.
Temos decisões na área da saúde, sobre a interrupção da gravidez do feto anencefálico, um julgado de saúde pública, porque a mulher que era mais prejudicada, era aquela que não tinha recursos realmente para interromper a sua gravidez, a gravidez penosa, a gravidez sofrida.
São muitas decisões importantes, ainda que muitas delas nos coloquem em maior debate, tragam maior complexidade, como a que pode ser pautada em breve, do aborto até a 12ª semana. As tensões entre os poderes também são muito fortes dentro de um constitucionalismo tão garantista, porque todos são protagonistas dessa Constituição, não apenas o Executivo ou o Legislativo. O Judiciário também recebe um papel de grande destaque.
A senhora mencionou a questão das uniões homoafetivas, que, nesta semana anterior esteve em debate no Congresso, justamente no sentido de criar uma lei que proíba essa possibilidade. A senhora acredita que esse tipo de iniciativa vai esbarrar na decisão constitucional do STF?
As reações legislativas, as viradas de jurisprudência por atuação do Congresso, fazem parte do jogo democrático. Mas, no fim das contas, as leis serão sujeitas ao controle de constitucionalidade, muitas vezes, como essa que você comentou, caso se torne um ato normativo. E quem dá a palavra final sobre matéria constitucional é, pelo próprio jogo democrático e pela separação e harmonia entre os poderes, o Supremo Tribunal Federal. Então, esse tipo de retrocesso, como não permitir, depois de 12 anos de avanços a união homoafetiva como família, não irá permanecer.
O Supremo provavelmente se junta e logo declara inconstitucionalidade, porque os fundamentos constitucionais são muitos. A dignidade do indivíduo, a liberdade, a autonomia da vontade, uma interpretação mais ampla, a busca pela felicidade que a gente extrai também no texto constitucional. Então são esperadas reações legislativas, as decisões do Supremo não vinculam a função legiferante do Estado, mas os retrocessos, na minha opinião, eles não têm espaço no atual constitucionalismo brasileiro.
E como a senhora observa esse debate sobre o marco temporal? Porque, novamente, é um conflito entre poderes, pois foi indeferido pelo STF, mas o Senado aprovou em seguida. É um tema até mais complexo, eu diria, do que a questão do casamento homoafetivo.
Mais complexo, sim, que divide opiniões, mas a decisão foi muito garantista para as comunidades indígenas. E o Congresso, ao reagir, e reagiu de plano, quase que imediatamente, a essa decisão do Supremo, está no seu direito democrático de criar leis e de realizar essa virada de jurisprudência por atividade legislativa. Mas eu creio que também não prevaleça no Supremo Tribunal Federal ao se levar a uma ação direta de inconstitucionalidade sobre uma lei que tão recentemente contraria uma jurisprudência importante do Supremo.
Porque as relações legislativas, elas devem existir, mas o que mudou no cenário brasileiro e da decisão para essa reação? Foi muito rápido. Então eu creio que rapidamente também nós teremos uma manutenção de decisão do Supremo. Em matéria de direitos fundamentais, o Tribunal tem avançado bastante e concretizado muito a Constituição e sido bastante corajoso para enfrentar pautas que geram custo político para o Congresso.
O Congresso muitas vezes leva ao Supremo, por meio de partidos políticos, mesa da Câmara, mesa do Senado, leva ao tribunal essas pautas mais sensíveis, por não assumir o custo político de um debate sobre um tema que envolve a parte da população mais conservadora, parte da população menos a favor de garantias das minorias. Então, eu creio que nesse caso também do marco temporal, nós teremos uma decisão confirmando o que o Supremo acabou de decidir.
A gente teve, nesse último governo, uma série de polêmicas em torno desses conflitos entre poderes. A senhora acredita que nesses 35 anos a Constituição correu algum risco?
Falando de um episódio bastante recente, o 8 de janeiro de 2023 marcou a história brasileira. E a Constituição, ela saiu dali fortalecida, porque as instituições se uniram, se reuniram, reconstruíram o patrimônio público depredado, deram recado à sociedade de que aquele tipo de conduta não era republicana, não era aceita. A fiscalização sobre os participantes daquele fadado 8 de janeiro, e o julgamento estão acontecendo.
Eu acho que na história bem recente, nós tivemos o 8 de janeiro, mas não há muito tempo, a pandemia também testou bastante o texto constitucional, porque havia uma tentativa do Executivo Federal de assumir os poderes da crise. E o Supremo, ao receber ações para se manifestar, o tribunal diz não. Os cuidados com a saúde, o combate à pandemia deverão ser realizados como determina a Constituição, artigo 23, inciso 2, por todos os entes federativos. Não é um papel exclusivo do governo federal, do Poder Executivo federal.
Tivemos dois impeachments, na década de 1990 e 2016, e a Constituição, ela consegue atravessar esses momentos de crise. Os sobressaltos foram muitos, crise econômica, mudança de governo, eleições polarizadas, mas ela se manteve íntegra e sem ser esvaziada.
Os sobressaltos aconteceram, mas eu creio que a gente pode extrair desses 35 anos, muito mais benefícios do que momentos de fragilidade.