Argentina: Alberto Fernández quer unir o país e superar a crise
O lilás dos jacarandás não foi suficiente para amenizar o sol que brilhou em Buenos Aires na manhã de terça-feira (10). Apesar do calor intenso, milhares de argentinos se aglomeraram nas praças para ver a chegada de Alberto Fernández e Cristina Kirchner à Casa Rosada. Pelo caminho, um balé de bandeiras celestes mescladas ao céu muito azul e às cores vivas da whiphala e dos povos mapuche, deu o tom da festa do campo popular no Sul do mundo.
Por Mariana Serafini, especial para o Portal Vermelho*
O novo presidente discursou para uma plateia diversa, composta pelos maiores líderes contemporâneos do campo progressista latino-americano, ao lado de políticos do centro e da direita dos países vizinhos. As mães e as avós da Praça de Maio, símbolo da resistência argentina à ditadura, estavam acomodadas com seus pañuelos nas galerias superiores do Congresso, que serviram também para acolher os estudantes, as feministas, os sindicalistas e os os demais movimentos populares.
Junto à vice-presidenta Cristina Kirchner, e ao presidente da Câmara dos Deputados, Sergio Massa, Alberto Fernández apresentou um plano para combater a fome e o desemprego – que hoje atinge principalmente os jovens e as mulheres – e já anunciou uma reforma integral do poder judiciário. Levantou a bandeira da unidade para governar e defendeu uma Argentina capaz de resolver sozinha suas questões internas, sem a interferência do FMI, do Banco Mundial e de outros agentes externos.
Defesa da soberania foi o fio condutor do discurso do presidente que garantiu o fim da subserviência aos Estados Unidos. Atualmente, a Argentina tem o maior empréstimo do mundo concedido pelo Banco Mundial a um mesmo país, o impacto negativo causado pela dívida externa no PIB é o maior desde 2004. Mas o cenário desastroso deixado pelo neoliberal Maurício Macri parece não assustar Fernández que já em seu primeiro discurso defendeu formas mais justas de negociação.
“Vamos encarar o problema da dívida externa. Mas não há pagamentos de dívidas que se sustentem se o país não cresce. Simples assim: para poder pagar, é necessário crescer. Buscaremos uma relação construtiva e cooperativa com o Fundo Monetário Internacional e com nossos credores. Resolver o problema da dívida insustentável que a Argentina tem hoje não é uma questão de ganhar a disputa de ninguém”.
Como no Brasil, o método “Lava Jato” se alastrou feito erva daninha pelo judiciário argentino. Se depender na nova gestão, chegou ao fim a “escola Sérgio Moro”: “Nunca mais uma justiça contaminada por serviços de inteligência, ‘operadores judiciais’, procedimentos obscuros e linchamentos midiáticos. Nunca mais uma justiça que decide e persegue segundo os ventos políticos do poder da vez. Nunca mais uma justiça que seja utilizada para saldar discussões políticas, nem a uma política que judicializa os dissensos para eliminar o adversário. E o digo com a firmeza de uma decisão profunda: nunca mais é nunca mais. Porque uma justiça demorada e manipulada significa uma democracia perseguida e renegada”, afirmou o presidente.
Admirado por sua habilidade de diálogo com os mais diversos campos políticos, Fernández posicionou a Argentina como um agente para amenizar os conflitos ideológicos e crises políticas que assolam o continente neste momento. “Seguimos apostando por uma América Latina unida. Em 1974, o general Juan Domingo Perón afirmava que ‘a níveis nacionais, ninguém pode realizar-se em um país que não se realiza. Da mesma maneira, a nível continental, nenhum país poderá se realizar em um continente que não se realize’. Sabemos que se trata de um mundo altamente complexo, com graves problemas e desequilíbrios econômicos. Tem crescido em vários países movimentos autoritários, houve golpes de Estado e ao mesmo tempo em vários países crescem manifestações cidadãs contra o neoliberalismo e a desigualdade social. Em qualquer cenário a Argentina levantará alto seus princípios de paz, de defesa da democracia, de plena vigência dos direitos humanos. Defenderemos a liberdade e a autonomia dos povos para discutir seus próprios destinos”.
Na plateia, o ex-presidente do Equador, Rafael Correa, ao lado do ex-presidente paraguaio Fernando Lugo, vítima de golpe de Estado, aplaudiram a iniciativa. Ao mesmo tempo, o movimento do leque da primeira dama cubana, Lis Cuesta, conferiu leveza ao cenário composto pelo presidente da ilha socialista, Diaz Canel, posicionado entre os chefes de Estado de direita do Brasil e do Paraguai, Geraneral Hamilton Mourão e Mario Abdo, respectivamente.
A proposta de uma diplomacia voltada aos princípios da paz e do diálogo não ficou só no discurso. O Chile neoliberal de Sebastián Piñera foi o primeiro país a receber ajuda oficial da nova Argentina. Fernández destacou seu ministro da Defesa para ajudar na busca de um avião militar chileno que desapareceu nesta segunda-feira (9). E enviou sua solidariedade ao seu homônimo que, devido ao acidente, não participou da cerimônia.
Os ministros e secretários já anunciados mostram que os novos ventos não sopram só a política externa. Para as agendas internas Fernández nomeou muitos políticos jovens e bastante técnicos. É o caso de Martín Guzman, que aos 37 anos assumiu o ministério da Economia já com a proposta corajosa de suspender o pagamento da dívida externa por dois anos. Mas também contará com quadros políticos experientes, como o professor Pablo Gentili que deixou de ser chefe de gabinete do espanhol Pablo Iglesias (Podemos), para voltar à sua terra natal e integrar o novo governo.
Conhecido por ter um bom diálogo com a direita e com os setores mais agressivos da mídia, Fernández defendeu a liberdade da imprensa e boas relações com a oposição, a fim de derrubar o “muro do rancor e do ódio entre os argentinos”, e superar “o muro do desperdício de energias produtivas” porque são estes, aliados “às ideias distintas que nos dividem neste tempo histórico”.
Alinhado mais ao centro quando o tema são as pautas econômicas e políticas de desenvolvimento e comércio, o novo presidente se posiciona de forma mais progressista quando se trata de direitos humanos e liberdades individuais. Um mar de lencinhos verdes invadiram o Congresso no momento em que dezenas de mulheres levantaram o punho esquerdo cerrado em apoio às politicas de inclusão e em defesa da ampliação de direitos, como a regulamentação do aborto.
“Ni una a Menos [nome da campanha feminista de combate à violência contra a mulher] deve ser uma bandeira de toda a sociedade e de todos os poderes da República. O Estado deve reduzir drasticamente a violência contra as mulheres até sua total erradicação. Também em nossa Argentina há muito sofrimento pelos estereótipos, os estigmas, pela forma de se vestir, pela cor de pele, pela origem étnica, o gênero ou a orientação sexual. Abraçaremos a todos que sejam discriminados. Porque qualquer ser humano, qualquer um de nós pode ser discriminado pelo que é, pelo que faz, pelo que pensa. E essa discriminação deve ser imperdoável”.
Da plateia, um jovem de cabelo bagunçado, alargador numa orelha e brinco na outra, aplaudia com entusiasmo. O lencinho de cetim colorido preso à lapela do terno impecável seria só um detalhe se este não fosse o filho de Alberto Fernández. Estanislao é um influencer famoso na Argentina por suas caracterizações como drag queen e cosplay. O rapaz de braços inteiros tatuados fez todo o trajeto entre o Congresso e a Casa Rosada sentado no banco da frente do carro presidencial, e posou para a foto junto à vice-presidenta, primeira-dama e presidente Câmara com um sorriso largo, depois de cumprimentar o pai com um beijo no rosto.
Antes de finalizar seu primeiro discurso, Fernández arrancou lágrimas de Cristina e Máximo Kirchner [deputado e filho do casal que comandou a Casa Rosada por uma década]: ao homenagear Néstor Kirchner, “que no ano de 2003 me permitiu participar da maravilhosa aventura de tirar a Argentina da prostração”.
O atual presidente foi o chefe de gabinete do líder peronista que tirou a Argentina da grande crise política de 2001, uma das maiores de toda a história do país. Graduado em Direito, Fernández trabalhou como advogado e professor de Direito Penal da Universidade de Buenos Aires. Após deixar a administração Kirchner, se tornou um crítico ferrenho ao governo e se posicionou mais ao centro.
A crise econômica na qual Argentina está inserida agora é comparada pelos economistas apenas à de 2001. Foi diante deste cenário que os dois Fernández – Cristina Fernández Kirchner e Alberto Fernández – se reconciliaram e tiveram a maturidade política necessária para fazer a composição de chapa capaz de dialogar com o momento histórico.
Pelo telefone um amigo jornalista argentino me conta aos gritos que está na rua, levou vinho e dividiu com desconhecidos porque “estamos muito felizes”. Diz que a festa vai longe, haverá dezenas de shows de grandes nomes da música argentina. As pessoas estão alvoroçadas pelo calor e pela mística. O presidente chileno Salvador Allende pretendia que seu socialismo tivesse sabor de vinho tinto e cheiro de empanadas, mas o sonho foi interrompido por um golpe. Anos depois, que pelo menos a democracia seja celebrada ao som de cúmbia e rock argentino, numa grande praça liberada, com vinho branco e rosè para aliviar o calor de uma noite primaveril que cheira a tília e não fica tão escura pelo lilás dos jacarandás.
*Mariana Serafini é jornalista