As razões da nova (e má) Política Nacional de Alfabetização
Ontem, 8 de setembro, Dia Mundial da Alfabetização — instituído em 1968 pela Unesco —, um trecho da obra “Filhos dos dias”, do escritor uruguaio Eduardo Galeano, a respeito da data circulou na redes sociais:
“Sergipe, Nordeste do Brasil: Paulo Freire começa uma nova jornada de trabalho com um grupo de camponeses muito pobres, que estão se alfabetizando.
— Como vai, João?
João se cala. Amassa o chapéu. Longo silêncio, e finalmente ele diz:
— Não consegui dormir. A noite inteira sem fechar os olhos.
Mais palavras não saem da sua boca, até que ele murmura:
— Ontem, eu escrevi meu nome pela primeira vez.”
No pequeno fragmento se lê a grandeza de dois alvos que vêm sendo duramente atacados pelo atual governo e seu empenho em desmontar a educação pública, gratuita e de qualidade. O primeiro, Paulo Freire, o educador sob cuja liderança um grupo de professores ensinou 300 adultos a ler e escrever em menos de 40 horas na cidade de Angicos, no Rio Grande do Norte, em 1963; o professor cujo método propunha um modo de educar intrinsecamente ligado à vida cotidiana — e, consequentemente, também à política; o pensador que tem seu nome e seu trabalho entre os mais citados em pesquisas acadêmicas pelo mundo afora e cujo livro “Pedagogia do oprimido” é a única obra brasileira na lista das cem mais pedidas nas universidades de língua inglesa; o homem descrito no inquérito divulgado logo depois de partir para o exílio (após ser preso pela ditadura civil-militar) como “um dos maiores responsáveis pela subversão imediata dos menos favorecidos”.
O segundo alvo, por sua vez, é precisamente a própria alfabetização e sua potência. Em agosto, o Ministério da Educação divulgou a cartilha em que descreve sua nova Política Nacional de Alfabetização e defende o método fônico para ensinar crianças e jovens a ler e a escrever. A proposta já havia sido decretada por Jair Bolsonaro em abril, mas só agora o o plano apresentado pelo MEC elencou os seis componentes que considera essenciais para alfabetização: consciência fonêmica, instrução fônica sistemática, fluência em leitura oral, desenvolvimento de vocabulário, compreensão de textos e produção escrita.
Acontece que o método, como proposto pelo governo, passa por cima de várias questões. No nível mais básico, despreza as variações e imprecisões da linguagem oral. Em outra camada, escamoteia o fato de que os obstáculos para o processo de alfabetização no Basil não são estritamente de cunho didático-pedagógico, passando também pela necessidade projetos políticos que incluam o combate à desigualdade social, a melhoria das condições das escolas públicas, a valorização profissional do magistério etc. Numa vertente mais profunda, busca deliberadamente impedir que a aquisição da leitura, mais do que um acesso ao código de letras e fonemas, passe pela construção de uma visão crítica, política e politizada da sociedade e de seu contexto sócio-econômico-cultural.
Em outras palavras, o que esse governo, com sua (má) Política Nacional de Alfabetização e seus ataques ao legado de Paulo Freire, não quer é que os novos Joões, aos escreverem seu nome pela primeira vez, sejam capazes de ler também, com isso, toda a identidade e a cidadania que o gesto traz.
Por Táscia Souza