As urnas e a democracia: o que revela a demanda bolsonarista pelo voto impresso
A proposta de voto impresso possui o objetivo único de tumultuar as eleições de 2022
Por Tânia Maria Saraiva de Oliveira*
Entes soluços e ameaças, Jair Bolsonaro segue testando a estabilidade das instituições no Brasil. Não de hoje vem questionando a lisura do sistema eleitoral, fórmula bastante comum usada por perdedores para instigar ações antidemocráticas, cujo exemplo mais recente ocorreu em janeiro deste ano nos Estados Unidos da América quando, estimulados pelo derrotado Donald Trump, extremistas invadiram o Capitólio na tentativa de barrar a posse do presidente eleito, Joe Biden.
Bolsonaro segue à risca a estratégia adotada pela extrema-direita norte-americana, insistindo na alegação de fraude na votação que o elegeu presidente em 2018, que afirma ter vencido no primeiro turno e nas eleições de 2014. Com o reiterado discurso busca impulsionar aprovação da Proposta de Emenda Constitucional 135/2019, conhecida como PEC do Voto Impresso, de autoria da deputada bolsonarista Bia Kicis.
Intimado pelo Tribunal Superior Eleitoral a apresentar provas de fraude nas eleições de 2018, Bolsonaro não respondeu, mas segue ameaçando o tribunal e seus ministros, afirmando que não haverá a realização das próximas eleições caso não se implemente o voto impresso, o que levou o presidente do TSE, ministro Luís Roberto Barroso a declarar que qualquer atuação no sentido de impedir as eleições configura crime de responsabilidade.
Diferente do que alguns imaginam, voto impresso no Brasil após implementação das urnas eletrônicas não é uma novidade.
De fato, a impressão do voto foi testada no pleito de 2002, instituída pela Lei nº 10.408/2002, em procedimento similar à proposta que tramita agora na Câmara dos Deputados.
O eleitor deveria fazer uma conferência visual do voto, sem ter contato com sua versão impressa. Se os dados fossem confirmados, o voto seria depositado em uma urna lacrada. Naquele ano 6,18% do eleitorado brasileiro teve seu voto impresso. No Distrito Federal e no estado de Sergipe todas as seções eleitorais contaram com urnas com módulo de impressão externo.
De acordo com o relatório oficial das eleições de 2002, além dos custos altos para implantação do sistema de urnas com voto impresso, houve diversos tipos de problemas, como número significativo de eleitores que saíram da cabine sem confirmar o voto impresso, demora na votação, necessidade de procedimentos de transporte, de guarda e de segurança física das urnas de lona com os votos impressos, treinamento mais complexo para os mesários.
Na prática, a orientação geral de simplificação do processo eleitoral ficou totalmente comprometida e, algumas questões de ordem graves se apresentaram: a ocorrência de problemas técnicos nas impressoras, o que a deixou vulnerável a tentativas de fraude, a quebra do sigilo constitucional do voto em algumas seções eleitorais, já que foi necessária ação humana para resolver problemas de travamento de papel na impressora, o que acarretou, também, perda de alguns votos em determinadas seções, possibilitando a ocorrência de divergência entre o resultado da urna eletrônica e o da urna de lona.
Por experiência, fácil perceber que a implementação em todo o país desse sistema traria o caos às eleições.
Reunido um mês após o segundo turno do pleito de 2002, o Colégio de Presidentes e o Colégio de Corregedores da Justiça Eleitoral, concluíram a necessidade de eliminação do voto impresso no processo de votação. Em outubro de 2003, foi sancionada pelo então presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, a Lei nº 10.740, que revogou os dispositivos da Lei nº 10.408 que determinavam a impressão do voto.
A tentativa de deslegitimação do sistema eletrônico de votação que é operada por Jair Bolsonaro e seus seguidores aproveita-se da desconfiança comum da sociedade em relação aos processos e às instituições, sem que haja, contudo, nos mais de vinte anos em que são usadas as urnas eletrônicas, qualquer prova que justifique a dúvida.
Importa lembrar que no processo eleitoral atual, urnas e softwares são monitorados e passam por testes e por controle público em todas as etapas até o momento em que o programa é instalado e a urna é lacrada. O TSE realiza diversos procedimentos de auditoria tanto antes quanto durante as eleições, envolvendo representantes de partidos políticos, juízes eleitorais, servidores, membros do Ministério Público, bem como entidades como a OAB.
Antes da votação é emitido um boletim em que se atesta que a urna está zerada. Após a conclusão das eleições, um boletim de urna é emitido, a partir do qual qualquer cidadão tem acesso ao resultado. Ainda, durante a votação, algumas urnas são escolhidas por sorteio para passar por votação paralela, em que votos em papel são registrados na urna eletrônica para posterior conferência e sempre na presença de auditores e de fiscais indicados pelos partidos ou coalizões.
Ainda que, por livre suposição, houvesse motivos para desconfiar da lisura do processo de votação, a simples impressão do voto não garantiria que as eleições brasileiras sejam auditáveis, pois o voto é impresso pelo mesmo software que atualmente conta digitalmente os votos colhidos nas urnas eletrônicas brasileiras.
Mesmo que possua apoio em poucos setores políticos de boa-fé, a proposta de voto impresso defendida por Bolsonaro e seus asseclas possui o objetivo único de tumultuar o processo eleitoral de 2022, a partir da promoção de uma desconfiança infundada, e diante do evidente temor de ser democraticamente derrotado.
*Tânia Maria Saraiva de Oliveira é advogada, historiadora e pesquisadora. Membra do Grupo Candango de Criminologia da Unb – GCcrim/Unb. Membra da Coordenação Executiva da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia – ABJD. Leia outros textos.