Avenida Paulista celebra Lula “metade alegre, metade preocupada”
Eleitores do petista festejam vitória sobre Bolsonaro, mas preveem que futuro governo terá dificuldades com o Congresso e expressam desejo de superar polarização que divide o Brasil
Milhares de pessoas foram na noite deste domingo (30/10) à Avenida Paulista, em São Paulo, celebrar a vitória do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sobre o presidente Jair Bolsonaro (PL) na eleição presidencial. A celebração transcorreu sem incidentes violentos, com discursos de Lula e de políticos aliados, e foi encerrada com um show da cantora Daniela Mercury, que cantou o hino nacional acompanhada em coro pela multidão.
Receios de que Bolsonaro contestaria a derrota imediatamente, com possibilidade de conflitos, não se confirmaram. O presidente permaneceu em silêncio, e alguns de seus aliados chegaram até mesmo a reconhecer a vitória do petista.
Na Paulista, o clima era de festa e alegria pela vitória do petista, mas havia também cautela de que os próximos meses e anos serão difíceis para o país. Um híbrido sintetizado pelo próprio Lula em sua fala no carro de som, quando disse estar “metade alegre e metade preocupado”.
“A partir de amanhã eu tenho que começar a me preocupar como é que a gente vai governar este país. Eu preciso saber se o presidente que nós derrotamos vai permitir que haja uma transição para que a gente tome conhecimento das coisas”, disse Lula.
A DW perguntou a alguns eleitores de Lula que foram à Paulista como eles avaliam a vitória do petista e o que aguarda o Brasil no futuro próximo.
“Bandeira foi roubada para simbolizar um grupo”
A médica Perla Oliveira Schulz, de 44 anos, e o radialista Marcelo Mamomi, de 49 anos, foram à Paulista carregando uma grande bandeira do Brasil, símbolo nacional que acabou apropriado pelo bolsonarismo. O objetivo deles era resgatar a bandeira como algo que representa todo o povo brasileiro e não somente os apoiadores do presidente.
“Nós nos sentimos cerceados no direito de poder usar o símbolo do nosso patriotismo, que foi roubado para ser o símbolo de um ideal fascista, um ideal antidemocrático, que não simboliza o povo brasileiro”, afirmou Schulz. “Temos que mostrar que a luta tem que ser pela nação, por todo o povo, e não só por alguns.”
Apesar de demonstrar alegria ao andar pela Paulista com a bandeira, ela disse temer que o próximo governo Lula seja muito difícil, pois a maioria da Câmara e do Senado não está com o presidente. “Mas acho que com muita conversa, com a troca de ideias e de informações, vamos aos pouquinhos melhorando as coisas.”
“Justiça foi feita, por Lula e contra o racismo”
A assistente social Gina Rodrigues, de 52 anos, foi toda vestida de vermelho à Paulista festejar a vitória de Lula, que segundo ela simbolizava Justiça – “pelo próprio Lula, pela justiça social, contra o racismo e contra a homofobia”.
Ela lembrou da condenação de Lula no âmbito da Operação Lava Jato, que manteve o petista preso por 580 dias e posteriormente foi anulada pelo Supremo Tribunal Federal. Os ministros da corte concluíram que o então juiz Sergio Moro, que depois virou ministro da Justiça de Bolsonaro, era suspeito e não tinha competência para julgar o caso.
“Lula foi injustiçado, não pôde concorrer para o Bolsonaro entrar, foi chamado de ladrão, foi humilhado, e Deus fez Justiça”, afirmou Rodrigues.
Ela acredita que Bolsonaro irá contestar o resultado da eleição, pois é “mentiroso e falso”, e que Lula terá muitos obstáculos no seu terceiro governo – “mas vai desembolar, porque ele consegue desembolar junto com a força positiva que nós temos”.
“Não vai consertar nos primeiros momentos, mas haverá uma melhora. Pelo menos menos fome, eu garanto que o Lula vai trazer”, disse. Exultante, Rodrigues mencionou que Bolsonaro é o primeiro presidente que não foi reeleito e disse que isso tem que ser festejado.
“Vitória contra o autoritarismo”
Para o jornalista Eduardo Tironi, de 52 anos, o aspecto mais marcante da vitória de Lula é a ampla coalizão de forças políticas que o petista conseguiu reunir em torno de si. “Foi uma vitória da sociedade brasileira contra o autoritarismo. O que o Lula fez foi uma frente ampla, e o Brasil se voltou contra o autoritarismo, contra a extrema direita”, disse. “Não era só esquerda ou direita, era autoritarismo contra a democracia.”
Ele prevê que o novo governo Lula terá muita dificuldade pela frente, pois o Congresso eleito é “muito conservador” e o petista irá encontrar um país “completamente quebrado”. “Com tudo o que foi feito nos últimos meses do ponto de vista fiscal, um descalabro, ele vai encontrar as contas públicas em uma situação muito difícil.”
Porém, diz Tironi, “a boa notícia é que Lula é um ótimo negociador, ele conseguiu negociar da outra vez que esteve no poder”.
“Abrir o peito, que andava travado”
Para a historiadora Sônia Vaz, de 69 anos, o resultado do segundo turno foi tão acirrado que se assemelhou a uma disputa de pênaltis, mas ela vê matizes na alta votação obtida por Bolsonaro – 49,1% dos votos válidos – e pondera que nem todos os eleitores dele são de extrema direita.
“Muita gente foi na onda do antipetismo, e espero que nos próximos quatro anos o Lula, que é um negociador incrível, consiga dar uma melhorada nessa divisão tão meio a meio”, afirmou.
Ela disse ter ido à Paulista pelo aspecto catártico da celebração, “para abrir o peito mesmo, que andava travado com esse horror todo”.
Seu acompanhante, o engenheiro civil Leonardo Manzionni, de 65 anos, também disse que tinha ido à avenida para “ver essa alegria, o povo na rua, retomar nossa coragem”.
“Mas vai ser difícil, o país vai levar muito tempo para voltar a ser o que era. Você estraga rapidamente, mas construir levar algumas gerações, não é só um governo”, disse ele. Manzionni manifestou receio de que, nos próximos meses, Bolsonaro “estrague o resto” do que, segundo ele, ainda não teria sido afetado na sua gestão.
“Sempre tem mais alguma coisa para estragar, se estiver a fim”, concordou Vaz. Ela espera que o próximo governo Lula escolha de forma criteriosa o próximo ministro da Educação, pois, para ela, a gestão Bolsonaro foi um desastre total, com impacto negativo na formação da atual geração de estudantes.
“Há forte polarização emotiva”
O professor Oscar Vilhena Viera, diretor da FGV Direito SP, acompanhou de perto as investidas de Bolsonaro contra instituições democráticas e foi um dos organizadores da Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito, lida no dia 11 de agosto na Faculdade de Direito da USP. Na Paulista, declarou-se muito feliz com a vitória de Lula, que segundo ele dá ao Brasil “uma possibilidade de reconstrução, de continuar na trajetória democrática iniciada em 1988”.
Oscar Vilhena Viera foi um dos organizadores da Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito Foto: Bruno Lupion/DW Brasil
“Não tenho uma filiação partidária, tenho uma filiação à democracia e à Constituição. E entendi que a vitória de Bolsonaro agravaria ainda mais a erosão do Estado democrático de direito. Tenho filhos jovens, e para mim importa muito que eles tenham a sua juventude dentro de um país democrático.”
Viera avalia quea campanha eleitoral foi marcada por um emprego “muito forte” de recursos públicos a favor da candidatura de Bolsonaro, o que provocou desequilíbrio, mas também por uma “aliança inusitada” na história recente da democracia brasileira, que uniu setores da centro-direita a setores da esquerda.
Ele prevê que os próximos anos serão um período muito difícil devido ao tensionamento da sociedade. “Há uma polarização de natureza muito mais visceral do que política. Não é meramente uma polarização política e ideológica, é uma polarização forte de natureza emotiva, e isso realmente dificulta a reconstrução de pontes”, afirmou.
Contudo, Vieira observa que o discurso feito por Lula após a confirmação de sua vitória propõe refazer essas pontes. “Não foi um discurso revanchista, foi um discurso de construção de diálogo, e ele é um homem que tem talento político para recompor esse dialogo”, disse.
Ele afirma ver espaço dentro do próprio espectro da direita para iniciativas que fortaleçam a democracia nos próximos anos. “Não vai ser fácil, mas do lado dos eleitores do presidente Bolsonaro também há um número muito grande de pessoas que não estão radicalizadas, mas que têm uma percepção anti-PT, mais à direita, o que é altamente saudável numa democracia, e que irão conter essa radicalização”, disse.
Vieira pondera que Lula terá que fazer um governo de conciliação com o Congresso, e que a direita venceu em estados importantes, como São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. “O Brasil tem um curso a tomar, um curso de moderação, e espero que isso se sobreponha às chagas que foram criadas durante este processo eleitoral.”
Bruno Lupion Repórter