Brasil deve formalizar trabalhadores de aplicativos, mas cenário dificulta, avaliam especialistas

Pesquisador da Unicamp afirma que situação para 1,7 milhão da categoria no Brasil é de estagnação

“O Brasil e seu governo de esquerda, liderado pelo presidente Lula, devem trabalhar pela criação de um sistema trabalhista para melhorar as condições dos trabalhadores de plataformas digitais”. O autor dessa afirmação não é um proletário do setor ou líder sindicalista brasileiro, mas sim um político doMéxico, país que passa por profundas transformações para incluir trabalhadores do setor em suas leis trabalhistas.

Se trata do economista Otoniel García Montiel, que é membro do partido governista mexicano Movimento Regeneração Nacional (Morena) desde a sua fundação. Em entrevista a Opera Mundi, ele lembrou que as “mudanças profundas” no país ocorreram sob o projeto político Quarta Transformação (4T), do ex-presidente progressista Andrés Manuel López Obrador (2018-2024) para aplicar grandes mudanças na história do país.

“Essas reformas são importantes porque cada uma delas ajuda a dar continuidade ao projeto de transformação que começou em 2018”, declarou Montiel, ao defender “o processo histórico” que tem permitido a classe trabalhadora ter acesso a diversos direitos.

Segundo Montiel, a realidade dos trabalhadores das plataformas digitais era bastante diferente antes da reforma. “Eles estavam na informalidade e, consequentemente, não tinham previdência social”, frisou.

“Eu vi entregadores de comida por aplicativo de bicicleta, principalmente jovens, atropelados por algum veículo e sem nenhum seguro social, o que é necessário para receber atendimento médico”, recordou o político mexicano, que tem experiências de trabalho na categoria.

Transformações no México

Uma das principais transformações iniciadas por Obrador e continuadas pela sua sucessora, a atual presidente Claudia Sheinbaum, é justamente a da questão trabalhista. Em dezembro de 2024, o Senado mexicano aprovou a regulamentação do trabalho de pessoas que atuam por meio de plataformas digitais, beneficiando cerca de 658 mil pessoas da categoria, segundo o Serviço de Administração Tributária (SAT).

A partir disso, a Lei Federal do Trabalho (LFT) foi modificada para definir a natureza do trabalho nas plataformas digitais e determinar a relação entre empregador e trabalhador, tanto em direitos como em obrigações de ambos os lados.

A proposta garante que todas as pessoas que trabalham em plataformas digitais tenham estabelecidos seus horários, salário e direitos como previdência social, assistência médica, crédito à habitação e até distribuição de lucros e remunerações. A reforma ainda proíbe a contratação de menores de idade e a retenção ou manipulação de rendimentos dos trabalhadores.

Além disso, estabelece as obrigações de quem administra ou gerencia serviços através desses meios digitais, entre as quais está o pagamento dos serviços prestados no prazo não superior a uma semana e a inscrição dos trabalhadores no regime do Instituto Mexicano de Segurança Social (IMSS).

Com essa mudança, o México registrou entre janeiro e agosto de 2025 mais de um milhão de trabalhadores de plataformas digitais em seu IMSS, quase dobrando o total de pessoas atuando na categoria, segundo a contagem do SAT.

O registro garante que todos os trabalhadores contem com a proteção do IMSS. Já os que alcançam rendimentos superiores a um salário mínimo mensal têm direito a seguro contra riscos ocupacionais, seguro saúde e maternidade, seguro-desemprego, seguro por invalidez, seguro-creche e benefícios sociais, além de acesso a empréstimos do Instituto Nacional de Habitação dos Trabalhadores (INFONAVIT).

O programa piloto IMSS para registrar os trabalhadores de aplicativos, aberto pelo governo mexicano em 1º de julho, recebeu o número mencionado em menos de um mês. O programa piloto será encerrado pelo governo de Sheinbaum em 31 de dezembro. Durante esses seis meses, o objetivo é recolher informações para sugerir eventuais ajustes legislativos no sistema de previdência para a categoria.

O político mexicano explicou que a inclusão dos trabalhadores no IMSS é uma das mudanças mais visíveis trazidas pela reforma. Segundo ele, a partir de agora, as plataformas digitais devem contribuir para a previdência social das pessoas que trabalham nelas.

Segundo Montiel, essa contribuição é possível através da nova categoria de arrecadação criada pelo SAT, voltada para os trabalhadores da categoria e ntitulado: Regime de Atividades Empresariais com Receitas por Meio de Plataformas Tecnológicas.

Além disso, o governo de Claudia Sheinbaum está trabalhando na disseminação de informação para que as pessoas exijam seus direitos à plataforma e o processo seja efetuado mais rápido.

“É importante educar os jovens trabalhadores e até mesmo os empresários dessas plataformas, conscientizá-los e sensibilizá-los sobre os benefícios e a importância de estar na formalidade”, explicou.

Qual o cenário da categoria no Brasil?

Diante das transformações no México, Montiel defendeu que o governo de esquerda do presidente Luiz Inácio Lula da Silva trabalhe pelas mesmas mudanças no Brasil, uma vez que já existe a luta para que as condições de trabalho da categoria sejam melhoradas.

Para aprofundar o debate sobre essa possibilidade, Opera Mundi conversou com Marcelo Manzano, doutor em Economia Social e do Trabalho do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Ele detalhou que o cenário no Brasil apresenta uma categoria que é composta por 1,7 milhão de pessoas, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), e definida por um tipo de relação na qual o trabalhador oferece seus serviços por meio de uma plataforma digital, sem a assinatura de contratos que comprovam esse vínculo.

“O trabalhador se coloca à disposição para prestar serviços, como se a plataforma fosse apenas uma administradora. Mas essa relação, na verdade, está disfarçando uma forma de exploração do trabalhador”, explica, uma vez que, apesar da falta de contratos, o trabalhador gera “lucros e resultados econômicos” para a empresa.

Desse total, 53,1% faz parte de aplicativos de transporte particular de passageiros, 29,3% de aplicativos de entrega de comida e produtos, 17,8% de aplicativos de prestação de serviços gerais ou profissionais, e de aplicativos de táxi: 13,8%.

Ainda de acordo com o Pnad, 71,1% dos trabalhadores dos setor são informais. Para mudar essa realidade, o Governo Federal, a partir do Ministério do Trabalho, montou um grupo de trabalho para pensar soluções para a categoria.

A iniciativa conseguiu encaminhar um projeto de lei no Congresso, mas sem obter novos avanços porque “há uma série de divergências entre trabalhadores, empresas, governo e sindicatos”. “Não chegamos a um modelo que agrade que agrade as partes”, acrescentou Manzano.

“Há uma série de questões que precisam ser resolvidas, em especial em relação à aposentadoria. Mas infelizmente não há avanços no Brasil”, declarou, ao detalhar que a categoria que sequer foi considerada na Reforma da Previdência de 2019.

Segundo ele, apesar de certa movimentação no setor, uma grande parcela dele não se une pelos mesmos objetivos, como é o caso dos motoristas de aplicativo como 99 e Uber, por exemplo. Para ele, essa divisão é uma possível explicação para o fracasso do movimento.

“Houve uma ruptura no grupo e na discussão, e isso dificulta ainda mais a busca por entendimento e o alcance de uma regulamentação que efetivamente consiga proteger esses trabalhadores”, afirmou.

Frágil minoria no Congresso atrapalha Lula

Manzano explica que as iniciativas estão paradas no Congresso Nacional, sem perspectiva de resolução em prol de uma legislação para proteger os trabalhadores. Para ele, esse é um fator significativo que deve ser levado em consideração se o objetivo é seguir o exemplo mexicano.

Opera Mundi questionou Montiel sobre a oposição da direita mexicana em relação à transformação no setor trabalhista. O economista afirmou que apesar de “certa resistência”, a reforma não afetava os interesses da classe.

Porém, no Brasil, o cenário não é o mesmo. Manzano afirmou que as diferenças das condições políticas entre os dois países é um “fator importante que deve ser assinalado”.

“Obrador e Sheinbaum têm maioria assegurada na Câmara e no Senado. Já no Brasil, o presidente Lula não tem maioria nas casas. Muito pelo contrário, tem uma frágil minoria e muito mais dificuldade para aprovar qualquer projeto mais ambicioso, progressista e protetivo em relação aos direitos trabalhistas”, analisou o especialista.

Para Manzano, essa configuração política “desestimula” o governo Lula a apresentar “qualquer projeto mais ousado de garantia dos direitos e do reconhecimento dos vínculos de trabalho” de pessoas que atuam por meio das plataformas digitais.

O também pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit) da Unicamp reconheceu os avanços alcançados no México, em especial em relação à aposentadoria, remuneração em caso de licença médica e licenças de maternidade e paternidade. Por outro lado, não vê o Brasil encontrando “boas saídas” para a questão.

“Na melhor das hipóteses, os trabalhadores farão uma contribuição mínima, similar ao que acontece com os Microempreendedores Individuais (MEI), que fazem um pagamento mensal único referente aos impostos, e nessa quantia está incluído um valor pequeno para o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Isso significa que, no melhor cenário, esses trabalhadores vão se aposentar com um salário mínimo”, explicou.

Manzano ainda explicou que, mesmo que essa mudança ocorra, ela está acompanhada de problemas porque será exigido do trabalhador que ele contribua ao longo de toda a sua vida, por pelo menos 30 a 35 anos. “Mas nas condições do mercado de trabalho brasileiro, para uma boa parte da população, é muito pouco provável que consigam manter esses anos de contribuição regular”, detalhou.

Diante deste cenário, o “resultado final” da categoria é que, mesmo com a contribuição “é muito pouco provável que os trabalhadores tenham direito assegurado à aposentadoria, de modo que, após os 65 anos de idade, ainda precisarão solicitar o Benefício de Prestação Continuada (BPC), assistência social concedida pelo governo brasileiro por não terem aposentadoria.

“Resumindo, ainda não há uma definição clara sobre como incluir esses trabalhadores na Previdência Social e, ao que parece, o que está sendo encaminhado não é efetivamente uma solução”, concluiu.

Fonte
Opera Mundi

Artigos relacionados

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo
666filmizle.xyz