Brasil vive “tentativa de imbecilização coletiva”, diz filósofo português
Os últimos anos da política brasileira, desde as manifestações de junho de 2013 até a eleição do presidente de extrema direita, Jair Bolsonaro, passando pelo impeachment de Dilma Roussef, chamaram a atenção da comunidade internacional. O filósofo Diogo Sardinha, pesquisador da Universidade de Lisboa e ex-presidente do Colégio Internacional de Filosofia sediado em Paris, é mais um membro da academia que viu no contexto brasileiro um terreno rico para uma reflexão sobre a democracia e sobre a fragilidade do sistema representativo. Em entrevista à RFI, ele detalhou as ideias contidas em seu próximo livro sobre as “grandes tendências da sociedade brasileira”.
A nova obra de Diogo Sardinha, que será lançada nos próximos meses em São Paulo pela editora Contracorrente, ainda não tem título definido, mas tratará do contexto político e social do Brasil dos últimos anos. “Sobretudo esse período que vai de junho de 2013, com a reeleição de Dilma Roussef, até os dias de hoje. A situação brasileira atual desperta atenção em todo o mundo. Paris é um dos centros de debates sobre o que está acontecendo no Brasil”, afirmou Diogo Sardinha à RFI.
De acordo com o pesquisador, os governos do PT fizeram com que a comunidade internacional acreditasse em uma sociedade de democracia saudável, “com instituições estáveis”, o que não era o caso. A impressão, para Diogo Sardinha, era de que essa situação de “direitos garantidos” iria se manter “porque estava consolidada”.
“Compreendi mais tarde, lendo e conversando com amigos, que essa não é a realidade. O Brasil viveu um período de início de construção de democracia, especificamente no sentido de integração nos direitos econômicos e sociais”, reflete o filósofo. “Tudo isso que foi desenvolvido num período de aceleração da história entre 2002 e 2016, foi uma exceção na vida da sociedade e das instituições políticas brasileiras.”
Nos últimos anos, entretanto, ficou claro que o Brasil não tinha instituições sólidas para garantir oxigênio suficiente à democracia, de acordo com o pesquisador. “Vemos isso no caso do poder judiciário, que é um poder dominado por um grupo de pessoas de um certo perfil e que toma decisões ao sabor daquilo que alguns magistrados sentem que é o desejo político das pessoas ou da população”, afirma, ressaltando que existem algumas exceções de juízes “comprometidos com o exercício equilibrado” da profissão.
Homem branco: chave da compreensão da situação brasileira
Para Diogo Sardinha, a figura do “homem branco das classes privilegiadas” é um elemento-chave para entender a situação brasileira atual – um personagem onipresente que participa de todos os grandes momentos da história do país. Eles dominam áreas de poder como, por exemplo, o judiciário, ressalta Sardinha, citando Sérgio Moro, ministro da Justiça, como representante desse “perfil”.
O impeachment de Dilma Roussef foi outro “momento decisivo” da história brasileira povoado por “homens brancos”. Com o agravante, segundo Sardinha, de que, dessa vez, eles se uniram para tirar uma figura feminina do governo. “Foi claramente uma afirmação do grande poder econômico e político branco das grandes cidades e das grandes famílias contra uma mulher. O impeachment não se resume a isso, mas ele é incompreensível sem isso. Claro que houve mulheres, como Janaína Paschoal, mas quando vemos o núcleo central dos opositores são os homens brancos da elite familiar brasileira.”
O processo de destituição de Dilma teve como objetivo reforçar o poder de grupos que foram ligeiramente afastados dele, de acordo com Sardinha, que cita polos importantes da sociedade brasileira, como a igreja ou o exército.
Tentativa de “imbecilização coletiva”
Parte dos eleitores do presidente Jair Bolsonaro, no entanto, são pessoas de classe baixa, negros e mulheres e elegeram, democraticamente, um homem branco da elite para governar o país. Diogo Sardinha apresenta diversos argumentos para decifrar esse episódio da história brasileira e lembra, antes de tudo, que nem todos se sentiram representados no discurso do chefe de Estado.
“É complexo. Muitas vezes, as pessoas votam contra seus próprios interesses. Mas o que se passa no Brasil é muito curioso: poderíamos chamar de ‘tentativa de imbecilização coletiva’. (…) É como vemos agora com o caso do hacker envolvendo Sérgio Moro e [Deltan Martinazzo] Dallagnol”, explica. “Tem esse velho provérbio que diz que, quando o sábio aponta para a lua, o imbecil olha para o dedo. Ao invés de olharmos para o que foi revelado entre a troca de conversas entre Moro e Dallagnol, isso não interessa, o importante é saber quem encontrou ‘criminosamente’ essas mensagens. É o processo de imbecilização, com um grupo de pessoas dizendo ao povo para ‘olhar para o dedo’”.
De acordo com Diogo Sardinha, esse fenômeno é o mesmo responsável para que “negros votem em um candidato racista e mulheres em um anti-feminista”. “Agora, vamos tentar fazer com que as pessoas se dêem conta do erro em que caíram. Nem todas, mais uma vez, mas é preciso trabalhar para que aqueles que se equivocaram compreendam isso e entendam que o erro pode ser corrigido”, conclui.