Calunguinha, histórias que meus avós não contavam
Quem lida, cuida e brinca com criança, tem sempre o desafio de tirar da manga histórias e contos que as entretenham e as ajudem a sonhar e, se preciso, dormir. Mais ainda em tempos de hiperconectividade, afinal sonhos são fermento para a criatividade e para a formação de futuros adultos criativos, autônomos e transformadores das realidades em que vivam
Por Fred Vázquez*
Tradicionalmente, as histórias que são contadas às crianças são de matriz europeia, vividas por personagens brancos, principalmente os que têm êxito. Além disso, colocam sempre as mulheres em condições de dependentes, sejam elas princesas que, para serem reconhecidas, precisam casar com o sapo, ou sejam más, como as bruxas. Na verdade, essas últimas são tão temidas pelos homens por serem mestras de grandes saberes ao lidarem com plantas, ervas, poções, alquimia.
Em nossa cultura luso-brasileira, colonial e escravocrata, quem se destacou para as crianças foi Monteiro Lobato. Em suas histórias, porém, tanto Tia Nastácia, a negra cozinheira que trabalha para a dona do sítio, quanto tio Barnabé são personagens do serviçal cordial, que “faz parte” da família, mas é sempre colocado em seu devido lugar.
Outro dia, cuidando de uma criança de origem preta, fui desafiado a contar uma história para ajudar a dormir e sonhar. Diante do desafio me perguntei: “Quais referências culturais são importantes semear, estimular, em uma criança preta? O sonho de princesa branca? De rei de castelos medievais?”. Foi aí que, sabendo das possibilidades atuais de ofertar algo mais conectado com a realidade dessa criança, procurei no aplicativo Spotify histórias e músicas para crianças afrodescendentes.
Bingo! Como resposta me chegou o podcast Calunguinha.
Calunguinha, podcast idealizado e produzido por Stela Nesrine, estudante de Educomunicação da ECA (Escola de Comunicações e Artes), e Lucas Moura, aluno de Pedagogia da Faculdade de Educação, ambas da USP, surge do mesmo desafio por mim apontado, contar histórias pretas para crianças pretas. Nesse caso, o filho de Stela, enteado de Lucas.
A personagem Calunguinha é um garoto pretinho (como sua mãe) e crespinho (como seu avô). Numa noite em que ele não queria dormir, sua mãe soprou uma xícara de chá e a fumaça, magicamente, o levou pelo ar, fazendo-o parar num outro lugar: o mundo dos sonhos. Lá, ele encontrou seu avô, que lhe entregou um livro que era de sua mãe, chamado “Histórias para ninar crianças pretas, memórias para acordar pessoas brancas”.
Desde esse dia, sua viagem anda no sentido das histórias do povo preto. A cada noite Calunguinha encanta cada uma das histórias do livro e encontra os personagens delas em pessoa. Toda noite Calunguinha voa pelos ares, navega pelos mares, passa por Congo, Pernambuco, Bahia, Palmares. Na volta ele conta para sua mãe tudo o que ele aprendeu e fala sobre cada pessoa preta incrível que conheceu. Agora são 12 episódios, uma história nova toda sexta-feira e a cada episódio, um convidado ou convidada especial.
Do brincar de contar histórias pretas chegaram ao edital Sound Up, do Spotify, e assim criaram os 12 primeiros episódios do podcast. A primeira temporada conta com Lázaro Ramos, Luedji Luna, Margareth Menezes, Yuri Marçal e mais um monte de artistas importantes para narrar as histórias.
Desde então, quando uma criança me pede uma história, ou que apenas a coloque para dormir, ao invés de lembrar e contar histórias de heróis e princesas brancos, dou “play” em Calunguinha e caio no encantamento preto.
Conheça mais sobre o projeto e ouça as histórias pretas maravilhosas:
#Calunguinha #Podcast – https://open.spotify.com/show/2aUyIwcGitwiekGLVgg27v
#Sobre o projeto – https://www.geledes.org.br/alunos-da-usp-criam-podcast-de-cantacao-de-historias-para-criancas-negras/
*Fred Vázquez é uruguaio, branco, publicitário, produtor gráfico-digital, integrante da Equipe de Comunicação da Contee e encantador de sonhos para crianças
*Imagem da home: Freepik