Carta à Excelentíssima Senhora Presidente da República Federativa do Brasil

Por José Geraldo de Santana Oliveira*

Dilma Rousseff

Senhora Presidente,

O sigilo do voto é uma garantia de todos(as) cidadãos(ãs), conforme dispõe o Art. 14 da Constituição da República Federativa do Brasil(CR). Porém, não se constitui em dever deles. Importa dizer: a eles é permitida a revelação do voto.

No uso desta prerrogativa constitucional, ao iniciar esta missiva, revelo-lhe que o meu voto somou-se aos mais de 43  milhões que lhe garantiram a passagem para o segundo turno das últimas eleições presidenciais,  e aos mais de 54 milhões que lhe asseguraram a assunção ao cargo maior da República: o de Presidente, para o mandato de 1º de janeiro de 2015 a 31 de dezembro de 218.

Os que a escolhemos Presidente do Brasil, por mais quatro anos, o fizemos para que fossem preservados os avanços sociais  que se consagraram, nos últimos 12 anos, e para que muitos outros, absolutamente necessários para a conquista da cidadania plena, objetivo precípuo da República, pudessem sê-lo.

Parafraseando o fabuloso romancista mineiro Guimarães Rosa, que, no conto “Lua de Me” – inserto na obra “Primeiras histórias”-, nos ensina, com a sua costumeira sabedoria, que “No mais, mesmo, da mesmice, sempre vem a novidade”.

Pois é, Senhora Presidente, a sua reeleição, tomando emprestadas as palavras do citado romancista, representa a mesmice, pois que nada mais é do que a continuidade de seu governo. Todavia, a pedra de toque dela está na novidade que dela advirá, ou seja, na implementação de novas políticas sociais, que, como já dito, ainda não foram concretizadas, notadamente no campo da educação; da seguridade social, que engloba a saúde a previdência social e assistência social; e das relações de trabalho.

O Art. 1º da CR estabelece os fundamentos sobre os quais se assenta a República Federativa do Brasil, que se materializa por meio do Estado democrático de direito, e que são

I – a soberania;

II – a cidadania;

III – a dignidade da pessoa humana;

IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

V – o pluralismo político.

Indiscutivelmente, o primeiro e o quinto, dos destacados fundamentos, já se acham devidamente sedimentados; o segundo, ainda se encontra longe de sua plenitude, pois que, sem a efetiva concretização do terceiro e do quarto, ele nunca estará completo.

O terceiro e o quarto, este no que diz respeito à sua primeira parte, lamentavelmente, apresentam-se equidistantes do que preconiza o Preâmbulo da CR, que sintetiza os seus objetivos; já no tocante à parte final do quarto, consubstanciada nos valores da livre iniciativa, mereceu, até aqui, todos os louros, atenções e esforços, dos três poderes.

No se pode afirmar, nem por hipótese, que a dignidade da pessoa humana atingiu a sua plenitude no país que investe mais no pagamento dos juros da dívida pública do que em educação e saúde, respectivamente, 5,6% contra 5,3% e 3,6%.

Estes repugnantes indicadores sociais têm como consequência, quanto à educação, cerca de 13 milhões de analfabetos absolutos – o que equivale a mais de 6% da população brasileira -, aos quais  é negado o mais basilar direito social: o da educação; e três quartos da população infantil, de até três anos de idade, sem acesso à escola, a quem se nega o presente e o futuro; e, igualmente, três quintos das matrículas no nível superior de ensino em escolas privadas. No que se relaciona à saúde, milhões ainda são desassistidos ou precariamente assistidos.

No pertinente à previdência e à assistência social, estamos longe do bem-estar e da justiça sociais, que são os objetivos da Ordem Social, como determina o Art. 192 da CR. Para comprovarmos esta assertiva, basta que comparemos o monstro chamado fator previdenciário (FP), criado pela Lei N. 9876/99 – que se assemelha à loba, retratada por Dante Alighieri, na sua magnífica obra “A Divina Comédia”, que se alimentava de carne humana e quanto mais carne comia, mais fome sentia -, com a desoneração da folha de pagamento, que se constitui num dos dois pilares de financiamento do Regime Geral de Previdência Social (RGPS), que, hoje, garante 31,7 milhões de aposentadorias – segundo dados do Ministério da Previdência Social, de 2013.

O FP foi criado para reduzir os já minguados proventos de aposentadoria dos segurados do Regime Geral de Previdência Social (RGPS) em nome do frio e duvidoso equilíbrio financeiro e atuarial, chegando a subtrair metade daqueles; esta subtração proporciona a economia de cerca de R$ 2,8  bilhões, anualmente; enquanto a desoneração da folha de pagamento, generosamente criada como “incentivos” às empresas de mais de 150 ramos de produção, sangra dos cofres públicos cinco vez mais; sendo que a renúncia fiscal, no seu conjunto, representa mais de 25 vezes a economia gerada pelo FP.

Veja, Senhora Presidente, que colossal contradição: com o FP, reduzem-se os proventos de aposentadoria, o que significa mais agruras e menos alentos para os aposentados, que, por isso, não podem parar de trabalhar; com a renúncias fiscais, enchem-se as burras de empresas, que, ao fim e ao cabo, acabam por fartar-se  às expensas de fonte de vida, sugada dos aposentados. Que justiça é esta?

A assistência social limita o benefício da prestação continuada (BPC) – que é um benefício de largo alcance social, correspondente a um salário mínimo – destinado a quem não contribui para a Previdência Social, e que, em consequência, dela não goza nenhum benefício, que são os incapazes e/ou os que contam com mais de 65 anos de idade, e, pasmemo-nos todos,  os que possuam renda familiar por pessoa (per capita) igual ou inferior a um quarto de salário mínimo, quer dizer, a R$ 183, conforme dispõe a Lei N. 8742/93. Como explicar estes miseráveis limites diante da gigantesca renúncia fiscal e da efetiva proteção social?

Não há como deixar de comentar que mais da metade dos municípios brasileiros ainda não criou os seus regimes próprios de previdência social, como manda  o Art. 40 da CR desde 1988, acarretando irreparáveis prejuízos aos seus servidores efetivos.

No que toca aos valores sociais do trabalho, os dados são angustiantes e gritam por mudanças radicais e imediatas. Vejamos alguns deles.

A proposital inércia do Congresso Nacional e do Poder Executivo na regulamentação do inciso I do Art. 7º da CR, que trata da proibição de dispensa arbitrária ou sem justa causa, mesmo passados mais de 26 anos da CR, possibilita às empresas liberdade quase absoluta para contratar e demitir os seus empregados, sendo que os únicos freios existentes a este desvalor do trabalho são os criados pela jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho (TST), concretizados por meio das Súmulas N. 244, 378 e 443, que, com a  amplitude atual, remontam apenas a outubro de 2012.

 

Graças a essa falta de limites, decorrente da não regulamentação do Art. 7º, inciso I, da CR, a rotatividade chegou, no ano de 2013, a 63% da mão de obra formal, o que significa que a cada dez empregados mais de seis perderam o emprego. Isto não tem similar em nenhum lugar do mundo.

A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) N. 231/94, que visa a alterar o Art. 7º, inciso XIII, da CR para reduzir a carga horária semanal de trabalho de 44h para 40h, sem redução dos salários, tramita na Câmara Deputados há quase 21 anos, sem perspectiva de êxito, até pelo cúmplice silêncio do Poder Executivo.

Isso sem contar que todos os direitos fundamentais sociais, insculpidos  em 34 incisos do Art. 7º da CR, são ameaçados por todas as fronteiras e flancos. Primeiro,  pelo famigerado Projeto de Lei (PL) N. 4.330/2004, que, efetivamente, visa a suprimi-los, por meio da terceirização sem limites e sem controle.

Segundo, pelo próprio Supremo Tribunal Federal (STF), que, de forma estranha e inexplicável, do ponto de vista processual, reconheceu repercussão geral no recurso extraordinário (RE) N. 713.2011, que visa a destrancar as parcas porteiras ainda existentes para barrar a terceirização ilimitada.

Frise-se que o relator do referido processo, ministro Luiz Fux, asseverou, em seu voto de acolhimento dos embargos declaratórios, que os tímidos limites impostos à citada terceirização pela Súmula N. 331 do Tribunal Superior do Trabalho (TST) – que a proíbe na atividade-fim -, à primeira vista, ferem o que preconiza o Art. 5º, inciso II, da CR, que estabelece: “ninguém é obrigado a fazer ou  deixar de fazer, senão em virtude de lei”.

Registra-se que o Poder Público, em todos os entes federados, está entre aqueles que mais se valem da terceirização, com o vil propósito de beneficiar as empresas prestadoras de serviço, à conta da drástica redução de direitos e da garantia de efetivação dos poucos que sobram aos terceirizados.

Soma-se a isto o teratológico quadro das execuções de decisões trabalhistas, que, segundo dados do TST, em cerca de dois terços são frustradas, ou seja,  dois terços dos trabalhadores lesados, apesar de um título judicial, não conseguem êxito, não recebendo, por conseguinte, os minguados créditos.

Como se vê, Senhora Presidente, a este desolador quadro não se pode chamar de valores sociais do trabalho nem de cumprimento da função social da propriedade, ditada pelo Art. 170, inciso III, da CR, sob pena de perjúrio.

É bem verdade que estas mazelas não são obras de seu governo; mas, também o são, que este pouco ou nada fez para alterá-lo.

Ao longo de seu primeiro mandato, a sua agenda, a um só tempo, esteve praticamente fechada aos movimentos sindical e social e às suas justas bandeiras; e, em sentido oposto, esteve sempre aberta aos empresários, que, via de regra, buscam a supressão de direitos, como se acha expresso nas nefastas “101 Propostas de Modernização das Relações Trabalhistas”, que lhe foram entregues pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), em dezembro de 2012. Os mesmos empresários que cerraram fileira com a candidatura de oposição, que tinha por projeto a volta do passado de triste memória, anterior a 2003, que, necessariamente, passava pela derrota de sua candidatura.

Não obstante a providencial e relevante afirmação do presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TSE), ministro Dias Tófoli, no dia de sua diplomação, de que não haverá terceiro turno eleitoral, em claro e direto recado aos que planejam inviabilizar até a sua posse, não podemos nos descurar, com afrouxamento da vigilância permanente, porque esses políticos, que só têm compromisso com o poder econômico, não desistirão de seu intento; e, ao longo de seu mandato, buscarão com sofreguidão realizar, aqui, o que se fez no Paraguai, em passado recente, com o presidente Fernando Lugo.

O seu antídoto contra as multifacéticas tentativas de golpe institucional, sem dúvida alguma, será o apoio popular; e, para mantê-lo, faz-se imperioso que o seu novo governo seja diferente e que tenha como objetivo a construção da cidadania plena, que não se materializará sem a efetiva garantia dos valores sociais do trabalho, do bem-estar e da justiça sociais.

Mas, para tanto, é imprescindível a quebra total de toda a timidez e das amarras que entravaram o seu primeiro governo; faça isto e a Senhora terá todo o antídoto necessário para enfrentar as várias trincheiras dos que buscam a ascensão à Presidência pela via golpista, posto que pelas urnas, ou seja, pela vontade popular, foram derrotados.

Afinal, Senhora Presidente, como já ensinava à sua geração, do século XVIII, e a todas as vindouras, o filosofo Voltaire: só há  esperança no clamor popular.

Senhora Presidente, a vida nos ensina cotidianamente que o capital financeiro, aquinhoado com o Ministério da Fazenda, é desprovido de sentimento e de compromisso social,  pouco se lhe importando se os seus lucros custam a vida de milhões de seres humanos; igualmente, o é  o latifúndio, agraciado com o Ministério da Agricultura. Estes dois seguimentos somente serão seus aliados enquanto os escusos interesses que defendem não correrem riscos; quando isto acontecer, serão os seus algozes.

O seu segundo governo, Senhora Presidente, tem de ser o portal do futuro radioso, que eleve o povo ao pedestal, como preconizava o revolucionário poeta Castro Alves, em 1867, no seu imortal poema “O Século”; e não o barqueiro Caronte, da mitologia grega, que, com seu barco, fazia a travessia para Hades, que nada mais era do que a casa dos mortos.

José Geraldo de Santana Oliveira

*José Geraldo de Santana Oliveira é consultor jurídico da Contee

**Os artigos assinados são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente representam o posicionamento da Contee

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