Classe trabalhadora pejotizada: experiências reais marcam a 2ª live da Contee
A Contee realizou, no último dia 13, a segunda live do ciclo de formação sobre pejotização, promovida pela Secretaria de Organização e Formação Sindical, coordenada pela sindicalista Maria Marta Cerqueira. A atividade aprofundou o debate sobre os impactos desse modelo de contratação a partir das vivências concretas de trabalhadores e trabalhadoras.
A live foi conduzida por Pedro Rafael Machado Godoi Garcia, diretor da Secretaria, e contou com exposições de Juliana Sales, secretária-geral do Sindicato dos Médicos e dirigente da CUT Brasil, do jornalista Paulo Zocchi, ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo e vice-presidente da Fenaj, e do advogado Ademar Sgarbossa, diretor do Sintep Serra e integrante da diretoria plena da Contee.
Na abertura, Pedro Rafael destacou a centralidade do tema nesta gestão da Secretaria, lembrando que o ciclo de lives foi planejado justamente por se tratar de um assunto “dos mais candentes” enfrentado atualmente pelas categorias profissionais. A pejotização, apontou ele, precisa ser compreendida em suas múltiplas dimensões jurídicas, sindicais, sociais e econômicas, para que o movimento sindical seja capaz de enfrentá-la com consistência.
A pejotização na Saúde: um laboratório de precarização
A médica e dirigente sindical Juliana Sales apresentou uma radiografia da pejotização no setor médico, um dos mais afetados e onde essa lógica já opera há décadas, especialmente desde a reforma do Estado nos anos 1990 e, posteriormente, com a expansão das Organizações Sociais (OSs) e dos contratos de gestão.
Ela explicou que, apesar de exercerem funções típicas de empregados, com jornada, metas, pessoalidade e subordinação, muitos profissionais são obrigados a aderir a modelos como contratos por RPA, sociedades com múltiplos sócios e sistemas de cotização que escondem relações de trabalho dentro das OSs. “Os médicos cumprem horário, seguem protocolos, metas e regras da instituição. Tudo isso caracteriza vínculo empregatício, mas o contrato é mascarado como se fosse entre duas pessoas jurídicas”, salientou.
Juliana enfatizou que esse modelo está profundamente naturalizado no setor público terceirizado, especialmente em São Paulo: “Hoje, cerca de um quarto dos médicos da rede municipal trabalha como PJ, mesmo exercendo as mesmas funções, no mesmo local, lado a lado com servidores estatutários e celetistas.”
Ela destacou que a pejotização não retira apenas direitos individuais, mas corrói toda a estrutura de proteção social. Exemplos são frequentes: médicas gestantes em unidades insalubres sem garantia de afastamento, profissionais que retornam ao trabalho apenas 15 dias após o parto por falta de licença-maternidade, e casos recorrentes de calotes praticados por OSs, que atrasam ou simplesmente não repassam valores a médicos pejotizados.
“O calote virou prática comum. As organizações sociais pagam fornecedores e trabalhadores celetistas, mas deixam de pagar os médicos PJ por meses, e eles não têm a quem recorrer.”
Apesar de trabalharem regularmente e receberem remuneração mensal fixa, esses profissionais, lembrou Juliana, não conseguem reivindicar direitos trabalhistas. “Eles vão para a Justiça Civil, que é lenta, e muitas vezes só recebem, quando recebem, depois de dez anos.”
Ao final, a dirigente defendeu que o enfrentamento à pejotização exige articulação conjunta e imediata: “A pejotização anda de mãos dadas com a terceirização irrestrita. Por isso, precisamos lutar pela revogação da reforma trabalhista, da terceirização e das mudanças na previdência que fragilizaram toda a proteção social.”
“Voltamos ao século 19: sem direitos, sem mediações legais, sem proteção.”
O jornalista Paulo Zocchi ressaltou que a pejotização é um tema central da militância sindical há mais de uma década, especialmente em um contexto de retrocessos desde o golpe de 2016 e da aprovação da reforma trabalhista. Para ele, trata-se hoje de “talvez a maior luta trabalhista em curso no país”.
Segundo Zocchi, a decisão que o Supremo Tribunal Federal prepara sobre o tema pode ter impacto devastador. Dependendo da redação final, existe risco de extinguir o vínculo trabalhista e todos os direitos associados para amplos segmentos da classe trabalhadora. Por isso, afirmou, é fundamental “voltar ao problema” e compreender o que está realmente em jogo.
Zocchi explicou que a mudança na lei das terceirizações, que passou a permitir a terceirização da atividade-fim, abriu brechas utilizadas pelas empresas e amparadas por ministros do STF para tentar enquadrar a pejotização como simples prestação de serviços civis. Ele foi categórico: “Pejotização não é terceirização. É fraude trabalhista.”
Relatou também a experiência do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo com a Revista IstoÉ, da Editora Três, que pejotizou seus trabalhadores a partir de 2008. A empresa simulava direitos, pagando 13º, férias e reajustes como se fossem CLT, criando uma falsa sensação de vantagem, sustentada principalmente pela menor carga tributária do MEI. Com a crise econômica, porém, essa ilusão ruiu: o 13º deixou de ser pago, cessaram os reajustes previstos em convenção coletiva e vieram atrasos salariais.
Quando os trabalhadores procuraram o sindicato para ingressar com ações, descobriram que sequer tinham direito à assistência jurídica, pois não eram empregados formais. “Voltamos ao século 19: sem direitos, sem mediações legais, sem proteção.”
Em paralisações realizadas à época, a pejotização eliminou até a exigência de aviso de greve. Como todos eram MEI, a categoria pôde parar imediatamente. A mobilização, contudo, forçou a empresa a negociar, demonstrando que somente a ação coletiva é capaz de enfrentar esse modelo.
Zocchi afirmou que a luta contra a pejotização está diretamente ligada à necessidade de revogar as contrarreformas de 2016 e 2017, que abriram portas para a precarização generalizada. E fez um alerta: se o STF consolidar o entendimento de que a pejotização pode ocorrer irrestritamente, conquistas históricas, como a redução da jornada e o combate ao trabalho análogo à escravidão, ficam esvaziadas, já que contratos civis podem impor qualquer jornada, qualquer remuneração e qualquer condição.
Para ele, o país vive um momento de enorme perigo, agravado por uma “letargia do movimento sindical” que precisa ser superada: “Será necessária uma mobilização de grandes proporções. Estamos diante de uma ameaça gigantesca à classe trabalhadora.”
A primazia da realidade precisa prevalecer
O advogado Ademar Sgarbossa destacou que o debate sobre pejotização exige, antes de tudo, domínio conceitual por parte das entidades sindicais. Esse entendimento, afirmou, é fundamental para orientar as categorias e ajudar trabalhadores e trabalhadoras a se protegerem de futuras demandas judiciais.
“Nós, enquanto dirigentes sindicais, precisamos dominar o conceito de pejotização para poder enfrentar essa prática e orientar nossos representados no dia a dia.”
Para ele, a suposta liberdade associada ao modelo só existe quando há autonomia real, algo que não se aplica ao trabalho docente. “Educação não é uma atividade focada no resultado, mas um processo. Nada nas nossas categorias se encaixa nesse discurso de autonomia.”
O advogado apontou sinais claros de fraude: subordinação, jornada fixa, metas, pagamento mensal contínuo e dependência econômica de um único contratante, elementos que caracterizam vínculo empregatício. Nesses casos, a pejotização resulta na perda total de direitos, como férias, FGTS, 13º, aviso prévio e proteção previdenciária, além de transferir custos da empresa para o trabalhador.
Ademar também chamou atenção para o impacto coletivo. A pejotização reduz a base de representação, fragiliza negociações e enfraquece a proteção social. “O que vale não é o contrato escrito, mas a realidade do trabalho. A primazia da realidade precisa prevalecer.”
Ele alertou para a gravidade do momento, com o STF prestes a julgar a legalidade da pejotização em repercussão geral. Caso o Supremo considere que basta a existência de CNPJ para caracterizar autonomia, a pejotização será institucionalizada, afetando profundamente o setor privado da educação.
Relatou ainda a experiência vivida na universidade em que trabalha, onde todos os postos de gestão, que são os salários mais altos, haviam sido pejotizados. A situação gerou desigualdade interna, desorganização financeira e enfraquecimento da comunidade acadêmica. Após denúncias ao Ministério do Trabalho e ao Ministério Público, e mobilização do sindicato, a instituição revisou contratos e regularizou todos os vínculos como celetistas.
“Pejotização não é modernização, é precarização. Sem direitos não há dignidade. Nenhuma instituição é sustentável explorando seus trabalhadores. Defender o valor humano do trabalho é defender o futuro da educação”, concluiu.
Participações
O diretor adjunto da Secretaria de Formação Sindical da Contee, José Jorge Maggio, destacou que a pejotização traz consequências sociais profundas, muito além da perda de direitos individuais. Segundo ele, a expansão desse modelo ameaça a previdência social, compromete o FGTS, que é fundamental para a política habitacional, e fragiliza a CLT, eliminando direitos como licença-maternidade e estabilidade.
Maggio lembrou que, no setor educacional, a terceirização e a quarteirização têm levado empresas a encerrarem atividades e reabrirem com outros nomes, deixando trabalhadoras e trabalhadores sem qualquer garantia. Para ele, a pejotização também atinge a organização sindical, dificultando ou mesmo impedindo a atuação dos sindicatos. “Estamos diante da possível institucionalização do trabalho sem direitos, com impacto não só sobre os trabalhadores, mas sobre toda a sociedade”, sinalizou.
O sindicalista argentino Bernardo Beltrán, do Sindicato Argentino de Docentes Privados, o SADOP, destacou que a pejotização encontra paralelo na Argentina na figura do monotributista, o trabalhador que arca sozinho com impostos e contribuições, sem direitos assegurados. “Quando usado em relações de dependência, isso configura fraude trabalhista”, afirmou.
Beltrán alertou que o governo Milei discute reformas que podem ampliar essa modalidade, o que torna fundamental acompanhar a experiência brasileira. “O que acontece no Brasil pode se repetir na Argentina. Por isso, é essencial fortalecer nossa solidariedade e nossa resistência conjunta.”
Encerramento
No encerramento, Pedro Rafael Godoi reforçou que o avanço acelerado da pejotização exige que o movimento sindical desenvolva respostas concretas. Ele abordou que os problemas vividos por médicos e jornalistas, perda de direitos, subordinação disfarçada, pessoalidade e ausência de garantias, atingem o magistério de maneira agressiva também.
“A pejotização não é um tema jurídico isolado, é um projeto de sociedade inaceitável”, finalizou.
Por Romênia Mariani





