Combate ao trabalho infantil é desafio compartilhado em países de língua portuguesa

A naturalização da prática passa por um viés cultural, pela desigualdade e pela exclusão social

Segundo dados mais recentes da Organização Internacional do Trabalho (OIT), 160 milhões de crianças e adolescentes entre cinco e 17 anos são vítimas do trabalho precoce no mundo. A agricultura lidera esses números, com 70,9% dos casos. Depois vêm os setores de serviços (19,7%) e indústria (10,3%).

Com realidades diversas nas bases legais e nas estruturas do Estado para enfrentar o problema, países de língua portuguesa lidam com um desafio comum: a naturalização do trabalho infantil, que passa por um viés cultural e de exclusão social. Esse é o tema desta reportagem, a segunda da série especial “Trabalho Decente e Justiça em Países de Língua Portuguesa”.

O material foi produzido a partir da “1ª Oficina Internacional: Diálogo e Cooperação Sul-Sul de Países da CPLP sobre Justiça do Trabalho”, promovida em março pelo TST e mobilizou representantes do Poder Judiciário de sete Estados-membro da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) e ocorreu em março, na sede do TST.

Pobreza e aceitação enraizam a prática

“No Brasil, nosso maior desafio é combater a questão cultural da aceitação do trabalho infantil do filho do pobre”, afirma o juiz Otávio Bruno Ferreira, do Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região (PA/AP). No país, quase 5% das pessoas entre cinco e 17 anos, em 2022, estavam em situação de trabalho infantil, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Isso significa aproximadamente 1,9 milhão de crianças e adolescentes. Pretos e pardos representam 66,3% desse contingente. Dados da OIT apontam que sete em cada 10 vítimas nessa condição trabalham em propriedades rurais ou pequenas empresas da própria família.

Em Cabo Verde, país da costa africana, o juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça Simão Alves Santos relata que a tradição é que os filhos devem ajudar os pais no trabalho do campo, nos afazeres domésticos e no comércio informal. “Devido à pobreza das famílias e a essa prática enraizada, tem sido difícil fazer um controle eficaz para a erradicação do trabalho infantil e para manter essas crianças na escola”, afirma.

Em São Tomé e Príncipe, a situação se assemelha: elevadas taxas de desemprego, informalidade e pobreza são entraves complexos de se enfrentar, relata Vera Cravid, procuradora-geral adjunta do Tribunal de Família, Menores e Trabalho.

A Organização Internacional do Trabalho alerta que, apesar da percepção comum de que as famílias são locais seguros, o trabalho infantil nesses casos é frequentemente perigoso. Para se ter uma ideia, mais de 25% das crianças de cinco a 11 anos e quase 50% adolescentes com idade entre 12  e 14 anos em situação de trabalho baseado nas famílias estão sujeitas a condições capazes de prejudicar sua saúde, sua segurança ou sua integridade psíquica.

Legislação específica e programas sociais são estratégias de enfrentamento

Combater o trabalho infantil exige uma abordagem multifacetada, que envolva políticas públicas eficazes, acesso à educação, conscientização da sociedade e apoio às famílias em situação de vulnerabilidade. Para direcionar o foco internacional nas ações voltadas  para a  eliminação do problema, a OIT instituiu duas convenções: a Convenção 182, que trata das piores formas de trabalho infantil, e a Convenção 138, que aborda a idade mínima de admissão para emprego e trabalho.

Entre os países de língua portuguesa, as duas normas foram ratificadas por Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe. Os países também criaram legislações próprias.

São Tomé e Príncipe implementou, em 2018, o Código de Organização Tutelar de Menores. O Novo Código de Legislação do  Trabalho, aprovado em 2019, também tem um capítulo destinado ao trabalho infantil, que trouxe inovações que poderão auxiliar o combate à prática e facilitar os mecanismos de fiscalização. “A idade mínima de admissão passou para 15 anos, com escolaridade mínima até a nona classe”, explica Vera Cravid. “Por fim, ela foi incluída na lista das piores formas de trabalho”.

Em Cabo Verde, compromissos internacionais assumidos pelo governo desde 1992 demonstram a preocupação do país com a melhoria do bem-estar das crianças. Por lá, 15 anos é a idade mínima para trabalhar. Mas podem existir exceções em atividades culturais, artísticas, domésticas e agrícolas que não ponham risco seu desenvolvimento, sua saúde e a formação escolar. Mas, segundo Simão Alves, os casos levados ao Judiciário ainda são poucos.

Legislação brasileira é uma das mais completas

Para Maria Cláudia Falcão, coordenadora do Programa de Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho da OIT,  o conjunto de leis do Brasil se destaca em relação à proteção de crianças e adolescentes no que se refere ao trabalho. O tema é tratado na Constituição Federal, no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), no Plano Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Trabalhador Adolescente e em programas sociais de transferência de renda. A rede de proteção envolve diferentes esferas de governo e instituições.

A Justiça do Trabalho brasileira também tem uma atuação institucional voltada ao tema: desde 2012, desenvolve o Programa   de Combate ao Trabalho Infantil e de Estímulo à Aprendizagem. De acordo com o juiz Otávio Bruno, a iniciativa vem enfatizando a aprendizagem como instrumento para a superação do problema. “A educação é a única política pública que o Brasil tem para a inclusão do adolescente no mundo do trabalho de forma segura”, ressalta.

Isso passa também pela necessidade de geração de emprego e renda para as famílias. Algumas iniciativas no país buscam fomentar essas oportunidades. Otávio Bruno cita o projeto Judiciário Fraterno, do Pará, que atende não apenas crianças e adolescentes, mas também as mulheres que cuidam deles. Elas têm acesso a cursos de capacitação profissional e assumem o compromisso de mantê-los na escola e longe do trabalho infantil.

Atuação da Justiça

Desde 2020, a Justiça do Trabalho julgou 1.880 processos envolvendo trabalho infantil na primeira e na segunda instâncias, segundo o Monitor do Trabalho Decente, do Conselho Superior da Justiça do Trabalho. Em junho, em alusão ao Dia Mundial Contra o Trabalho Infantil, comemorado no dia 12, o Judiciário Trabalhista também se mobiliza em mutirões de julgamentos de casos relacionados a trabalho infantil e aprendizagem profissional.

Outra frente em andamento é a elaboração de um protocolo para orientar a atuação da Justiça do Trabalho no julgamento de processos que tratem da temática. O documento deve ser lançado ainda este ano.

Esforço conjunto e troca de experiências fortalecem atuação dos países

Em 2021, os países da CPLP aprovaram um Plano de Ação para Combate ao Trabalho Infantil nos Estados-membros, a ser executado até 2025. O aprimoramento do conhecimento sobre o tema, o incremento do diálogo para a adoção de políticas públicas efetivas, o fortalecimento da cooperação técnica multilateral e a partilha de experiências estão entre os objetivos do plano.

A importância dessas trocas foi considerada essencial pelos representantes dos diferentes Sistemas de Justiça e da OIT ouvidos para esta reportagem. Para Maria Claudia Falcão, da OIT, elas permitem identificar as lacunas de abordagens e colaborar com estratégias conjuntas para um futuro promissor e com mais esperança. O desafio, reforça, é global. “Ao olharmos para o cenário internacional, é evidente que estamos diante de um desafio de proporções gigantescas, em que milhões de crianças e adolescentes continuam sendo exploradas e privadas dos seus direitos fundamentais”, conclui.

(Andrea Magalhães/NP/CF)

Do TST

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