Como a alfabetização sofreu na pandemia: ‘criança que já deveria saber ler ainda não domina o abc’

Na turma da professora Ana Carolina Guimarães há, hoje, desde crianças que já conseguem ler textos com facilidade até os alunos que, aos 8 ou 9 anos de idade, ainda sequer criaram familiaridade com todas as letras do alfabeto.

O cenário da volta às aulas preocupou a professora do 3° ano do ensino fundamental 1 na Escola Estadual São Bento, em Belo Horizonte (MG) – que por enquanto está funcionando em modelo híbrido, em que as crianças alternam entre uma semana na escola e uma semana no ensino remoto.

A preocupação da professora se deve ao fato de que, em condições normais, na 3ª série, as crianças já costumam estar na fase final do aprendizado básico de leitura e escrita.

“Todos os alunos teriam que estar lendo, e não é a realidade. Percebemos que há uma carência nesse retorno às aulas e que a alfabetização foi muito afetada pela pandemia”, diz Guimarães à BBC News Brasil.

Crianças vulneráveis de 5 a 10 anos de idade – e, portanto, as que cursam o final da educação infantil e todo o ensino fundamental 1 – foram um grupo particularmente sensível às dificuldades dos mais de 18 meses de ensino à distância na pandemia. É porque elas estão em uma fase crucial de seu desenvolvimento escolar: a da alfabetização e da consolidação da leitura, da escrita e dos fundamentos matemáticos.

E também porque, nessa idade, elas têm pouca autonomia no ensino remoto, e portanto o contato próximo aos professores fez muita falta.

Em abril, uma pesquisa divulgada pela Unicef (braço da ONU para a infância) e a organização Cenpec Educação apontou que a faixa etária correspondente ao ensino fundamental 1 foi a mais afetada pela exclusão escolar durante a pandemia.

Segundo a pesquisa, das mais de 5 milhões de crianças e adolescentes que estavam sem acesso à educação no Brasil em novembro de 2020, cerca de 40% tinham entre 6 e 10 anos de idade.

“Isso engloba desde crianças que não estavam matriculadas nas escolas ou que, no último mês (antes da pesquisa), não tinham tido nenhum tipo de contato com sua escola, nem por WhatsApp ou por acesso às aulas online. E o vínculo com a escola é importantíssimo”, explica Anna Helena Altenfelder, presidente do Cenpec.

Um ponto crucial é que, até a ruptura causada pela pandemia, essa era uma faixa etária em que o ensino estava praticamente universalizado no Brasil, ou seja, quase todas as crianças dessa idade estavam frequentando a escola.

Além disso, o ensino fundamental 1 público vinha melhorando constantemente seus indicadores de ensino – e embora estivesse aquém do ideal, repetidamente superava as metas oficiais de desempenho na grande maioria dos Estados brasileiros. Segundo os dados mais recentes, de 2019, o Brasil tinha em média 57% dos alunos do 5° ano do fundamental 1 com conhecimentos adequados em língua portuguesa, aumento de 7 pontos percentuais em relação a 2015.

Agora, a pandemia reverteu, pelo menos temporariamente, essa universalização e corre o risco de trazer retrocessos em conquistas obtidas ao longo de décadas, aponta o economista Marcelo Neri, diretor do FGV Social e especialista em mensuração de desigualdades.

Neri identificou que a taxa de evasão escolar (ou seja, de crianças fora da escola) nas idades de 5 a 9 anos era de apenas 1,39% em 2019, mas subiu para 5,5% no final de 2020 – o maior aumento percentual entre todas as faixas etárias.

“Era a faixa etária onde a gente havia tido grandes avanços não apenas na universalização, a partir dos anos 1990, mas também na aprendizagem”, diz Neri à BBC News Brasil.

O economista explica que, para além do fato de muitas crianças dessa idade estarem na delicada fase de alfabetização, elas também são desproporcionalmente mais afetadas pela desconectividade e pela pobreza no Brasil.

“A criança de 5 a 9 anos tem menos intimidade com a internet que um adolescente e ela é, em geral, mais pobre – o ápice da pobreza no Brasil é nessa faixa etária”, particularmente em famílias mais numerosas e sem renda suficiente ou ainda sem aposentadoria, pontua.

Não à toa a evasão observada por Neri foi mais aguda nas regiões mais remotas e carentes do país (principalmente na região Norte), e entre a população negra, também desproporcionalmente afetada pela desigualdade social e de renda.

Agora, uma preocupação de especialistas e educadores é que as lacunas na alfabetização durante a pandemia, caso não sejam enfrentadas, virem uma bola de neve que prejudique o desempenho das crianças nas etapas seguintes de ensino.

“A urgência é que essa fase do aprendizado é fundamental: as competências de leitura e escrita que a criança desenvolve ali são cruciais para seguir com a aprendizagem”, diz Anna Helena Altenfelder.

“E para aprender a ler e escrever elas precisam de experiências pedagógicas intencionais e de interações (com adultos e entre si) que não aconteceram na quantidade necessária durante a pandemia.”

Mas isso não significa que essas crianças estejam “fadadas a arrastar esse fracasso” ao longo de sua vida, prossegue a educadora, sobretudo porque elas ainda têm bastante tempo de anos escolares pela frente.

“Um trabalho consistente certamente é capaz de resgatar essas competências de leitura e escrita. (…) É algo possível e que sabemos fazer no Brasil – temos experiência com classes de aceleração de aprendizagem e correção de fluxo escolar (ou seja, de adequar a idade da criança à série que ela deve cursar). Mas as escolas não farão isso sozinhas, os professores vão precisar de apoio.”

Na turma da professora Ana Carolina Guimarães, em Belo Horizonte, citada no início desta reportagem, a combinação de pobreza e desconexão marcou a trajetória escolar de muitos alunos durante os meses de escola fechada.

“Trabalhamos com crianças carentes. Algumas não tinham nem condições de ir buscar na escola a cesta básica que foi oferecida. Imagina então ter internet para fazer aula online”, explica.

Agora, ela está avaliando as crianças uma a uma, e “conversando de família em família, para identificar quais são as maiores dificuldades. Quando os pais não são alfabetizados, por exemplo, a gente tem que ficar muito mais próximo aos alunos”.

Uma vez por mês, Guimarães tem ligado para cada aluno para ouvi-lo ler um texto para ela e, assim, medir sua capacidade de leitura. “E cada vez que eles evoluem, me mandam um áudio (de WhatsApp), comemorando”, conta.

Os alunos também são convidados a fazer um podcast explicando as atividades para os colegas que tenham mais dificuldades, prossegue a professora.

Guimarães e suas colegas professoras da Escola Estadual São Bento transformaram esse desafio pedagógico em um projeto de trabalho no curso de pós-graduação de Aprendizagem Criativa, que cursam na PUC Minas em parceira com o instituto educacional Iungo e o governo mineiro.

O objetivo é que o projeto, focado na recuperação da alfabetização das crianças, possa ajudar não apenas as turmas individuais de cada professora envolvida, mas toda a escola.

“Isso porque a demanda não é só minha: se aluno não se alfabetizar até o terceiro ano, isso vai virar um problema para o professor do quarto ano”, aponta.

Agora que os alunos começam a voltar a frequentar a escola com mais regularidade, desafios como o enfrentado por Guimarães estão frequentes na pós de Aprendizagem Criativa, explica Paulo Emilio Andrade, diretor do Instituto Iungo.

“Mas os professores estão vendo que, em vez de empurrar o problema para a frente, conseguem construir soluções para seus alunos avançarem”, diz Andrade. No curso, a ideia é, a partir dos problemas identificados em sala de aula, seja possível elaborar atividades e estratégias que ajudem a engajar as famílias e as crianças na recuperação da aprendizagem.

Para Anna Helena Altenfelder, do Cenpec, de fato será necessário agir de modo amplo para evitar que as defasagens de alfabetização escalonem em diversas partes do Brasil.

“As redes e secretarias de ensino vão ter que se organizar de forma diferente. E seria necessário haver a coordenação técnica e financeira do Ministério da Educação em projetos de apoio aos municípios (que concentram a maior parte das escolas de fundamental 1 no país)”, diz ela – criticando o que vê como inação federal nas ações de enfrentamento à pandemia e a ênfase da pasta em projetos polêmicos e de baixo alcance, como o de ensino domiciliar e o de escolas cívico-militares.

O ministério, por sua vez, diz à reportagem que fez destinação emergencial de recursos por meio do Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE); criou uma plataforma para apoiar professores e trabalhadores da educação no planejamento e execução de atividades e planos de aula para alunos que estão aprendendo a ler e escrever; e tem oferecido, para famílias, um aplicativo gratuito e o programa de contação de histórias Conta pra Mim de forma a apoiar o letramento dentro de casa.

E afirmou à reportagem que seus cursos online recém-lançados sobre práticas de alfabetização estão entre os mais frequentados (e bem avaliados) pelos professores.

“Ciente da gravidades dos impactos desse evento (pandemia) sobre a educação, a Secretaria de Alfabetização do MEC estive ativa em elaborar ações e projetos para dirimir (o problema), não apenas voltados às crianças, mas também aos profissionais da educação”, diz a pasta, por e-mail.

Segundo Altenfelder, agora será necessário buscar ativamente os estudantes desvinculados da escola neste período pandêmico, olhar individualmente para a realidade de cada escola e criar uma espécie de “acolhimento em cascata”, que responda às dificuldades emocionais e de aprendizado vividas na pandemia – com a ajuda dos setores de assistência social e saúde.

“Os alunos vão precisar de acolhimento por parte dos professores, que precisarão ser acolhidos por seus diretores de escola, e estes, pelos seus secretários e assim por diante”, diz.

Esse olhar individualizado, seguido de intervenções concretas, diz ela, pode ajudar a amenizar os enormes abismos que ficaram latentes durante a pandemia.

Um exemplo desse abismo, explica o economista Marcelo Neri, é exposto na quantidade de horas-aula que crianças de diferentes extratos sociais tiveram. Ele calcula que, em média, alunos de 6 a 15 anos das classes A e B tiveram, na prática, mais de 50% de tempo a mais de aulas online em comparação com os alunos da classe E durante a pandemia.

Esses alunos pobres também tiveram menos acesso a atividades escolares e, quando as receberam, dedicaram menos tempo a elas.

Particularmente na faixa etária das crianças em fase de alfabetização, o risco é o Brasil “regredir duas décadas no acesso e meninos e meninas à educação”, na visão do Unicef.

“Crianças de 6 a 10 anos sem acesso à educação eram exceção no Brasil, antes da pandemia. Essa mudança observada em 2020 pode ter impactos em toda uma geração”, afirmou, em abril, Florence Bauer, representante do Unicef no Brasil.

“É essencial agir agora para reverter a exclusão, indo atrás de cada criança e cada adolescente que está com seu direito à educação negado, e tomando todas as medidas para que possam estar na escola, aprendendo.”

BBC

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