Como um governo militarizado corrói a democracia brasileira

Protagonismo de militares na gestão Bolsonaro compromete políticas públicas e cria ambiente de ameaça golpista no país

O dia que marca o aniversário de 57 anos de uma página infeliz da história brasileira, o golpe de abril de 1964 – instalando uma ditadura militar que durou mais de duas décadas -, o país amarga uma nova tragédia histórica: a pandemia de covid-19, que já matou mais de 317,6 mil pessoas.

A pandemia revelou ainda o quão nefasta tem sido a atuação de um governo completamente militarizado, que entregou grande parte da gestão pública para quadros egressos das Forças Armadas, sob um discurso de eficiência de gestão, mas que, na prática, não passou de uma miragem.

“Essa visão do Bolsonaro (sem partido) de que a eficácia militar basta para tudo quanto é lugar é uma bobagem”, afirma o professor Francisco Carlos Teixeira, do Departamento de História Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professor emérito da Escola de Comando do Estado Maior do Exército.

Para a professora e pesquisadora Ana Penido, que investiga políticas de Defesa e atuação das Forças Armadas no país, além da incapacidade dos militares para coordenar políticas públicas que deveriam estar a cargo de civis especializados, existe um problema de corrosão da própria democracia, por causa da incompatibilidade entre o funcionamento da caserna e o ambiente democrático republicano.

“Militar, em teoria, é uma questão antagônica à democracia. É hierarquia, disciplina, ordem, segredo. Tudo isso faz parte da cultura militar e não faz parte da democracia. Na democracia, os grupos políticos de organizam para disputar ideias, políticas, recursos. A maior preocupação que a gente deve ter, sem dúvida, é com a democracia”, afirma.

Governo militarizado

De 1998 até 2018, Teixeira trabalhou no Ministério da Defesa, servindo a diferentes governos, e conhece em profundidade o funcionamento das Forças Armadas. “O militar brasileiro trabalha bem enquanto militar, enquanto tem tarefas militares. Isso não quer dizer que ele será um bom ministro da Saúde, um bom ministro da Educação, da Cultura, etc.”, acrescenta.

Ainda no ano passado, um levantamento do Tribunal de Contas da União (TCU) identificou 6.157 militares da ativa e da reserva em cargos civis no governo Bolsonaro, mais do que o dobro do que havia no final do governo de Michel Temer e um número sem paralelo até mesmo na comparação com governos militares durante a ditadura.

“Quando se fala que os militares estão aparelhados e preparados em logística e tática para processos emergenciais, é para que eles recebam uma missão e cumpram uma missão, não para que eles tenham a decisão política sobre essa missão. Não é este o caso. Aqui houve uma inversão de papeis”, argumenta Teixeira, ao lembrar da participação de generais do Exército no primeiro escalão do governo, como o emblemático caso do agora ex-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello.

Para o professor da UFRJ, a imagem das Forças Armadas, ao final deste governo, pode estar muito mais manchada do que períodos históricos anteriores, como o próprio regime militar.

“É desastroso [o resultado]. E eu tenho a impressão de que vai ser muito mais difícil de justificar, de manter uma imagem limpa agora do que na intervenção de 1964. Em 1964, havia um projeto e os militares deixaram um país industrializado e com uma posição internacional forte. Agora, Bolsonaro vai deixar um país pária, desindustrializado e na miséria”, observa.

Corrosão democrática

Segundo Penido, que também atua no Instituto Tricontinental, mais do que a ocupação massiva de cargos, a presença militar no mundo civil modifica o funcionamento das instituições da República.

“Militarização não é encher de militar num lugar. Militarização é a transferência de como as forças armadas funcionam, do ponto de vista de como eles pensam, se organizam, seus valores, para outros ambientes, que são civis”, explica Penido.

“Quando a gente vê o Pazuello escondendo os dados da pandemia, é exatamente isso, ele está transferindo uma coisa que é comum no mundo militar, que é esconder as informações do inimigo, aí ele transfere esse comportamento do mundo militar para o mundo civil”, argumenta, em referência ao general que ocupou o cargo de ministro da Saúde até duas semanas atrás.

Nesse processo de militarização, argumenta a pesquisadora, a ideologia militar também se infiltra na estruturas sociais, desarticulando a própria cidadania.

“As pessoas começam a achar que ter uma arma em casa é uma forma de resolver conflitos ou mesmo crimes que elas venham sofrer. A militarização não é só do Estado, muito menos só do Executivo, e ela acaba penetrando na sociedade. As pessoas vão dando resposta mais violentas para as coisas, achando mesmo que dá pra resolver através da força problemas que não são resolvidos através da força. Isso impacta na violência contra a mulher, contra LGBTs em geral”.

Patriotismo retórico

Outra característica marcante dessa ideologia militar que se espraia no governo, e no comportamento cotidiano do presidente, é a ideia de um patriotismo puramente retórico, discursivo. Segundo Francisco Teixeira, expressa uma visão superficial de nacionalismo.

“Esse nacionalismo ou patriotismo declaratório, à lá Olavo Bilac, é um patriotismo de mapa, de estampa, um patriotismo de power point. É um patriotismo sem povo. Não há povo, só há um mapa, normalmente com uma onça e uma arara”, ironiza.

Por trás dessa agitação proselitista de patriotismo e soberania nacional, como no debate sobre o desmatamento na Amazônia, as forças militares camuflam sua predileção por uma agenda econômica ultraliberal, de caráter privatista.

“Os militares são liberais na economia. Sua presença não impediu as privatizações e o enxugamento de gastos. Uma postura desenvolvimentista deles na Petrobras é ilusão. Para eles, impera o Estado máximo apenas para as forças de segurança e suas empresas correlatas. Nas demais áreas, é Estado mínimo”, afirmou Ana Penido em um recente coluna publicada no Brasil de Fato, sobre os principais mitos envolvendo as Forças Armadas.

Como explica Teixeira, esse “convencimento ultraliberal” que predomina nas Forças Armadas brasileiras é resultado de um longo processo de formação de oficiais militares em cursos promovidos e estimulados pela elite econômica do país em algumas das principais instituições privadas de ensino, como a Fundação Getúlio Vargas (FGV). Uma geração inteira de oficiais militares foram doutrinados nessa cartilha.

“Isso é ensinado aos militares por constantes cursos de MBA dados pela Fundação Getúlio Vargas, todos os anos, para os jovens oficiais, dentro das escolas. Isso parte da elite da sociedade brasileira, através de cursos pagos pelo Comando das Forças Armadas brasileiras, que vão lá na FGV e, em vez de pedir bons cursos de história no CEPDOC [Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil], que é excelente, vão pedir cursos de matemática financeira para formar cabeças ultraliberais que pregam a exclusão, o desemprego e políticas restritivas dos direitos sociais”, diz o estudioso.

Ameaça golpista

O principal risco dessa corrosão das instituições é sua possível escalada para uma ruptura da ordem democrática. As demissões, na última segunda (29) e terça-feira (30), do general Fernando Azevedo, do Ministério da Defesa, e dos comandantes da Marinha, Exército e Arenoáutica acendeu mais um sinal de alerta.

Os segmentos bolsonaristas mais radicais, dentro e fora do governo, sempre lembram do artigo 142 da Constituição Federal, em uma leitura distorcida, para defender uma intervenção militar que acabe com regime democrático.

Na opinião do professor Francisco Teixeira, no entanto, o risco maior não está no Alto Comando das Forças Armadas, mas sim nas milícias e nas polícias militares brasileiras, que poderiam dar sustentação a Bolsonaro nesse intento.

Seria, na verdade, um processo semelhante ao que ocorreu na Bolívia, em 2019, quando o então presidente Evo Morales foi tirado do cargo após uma série de atos violentos organizados por forças policiais, com a total complacência das Forças Armadas, que permitiram que o golpe se consumasse.

“Ele [Bolsonaro] já avisou várias vezes que só não ganha as eleições [de 2022] se houver fraude. Ele está preparando o eleitorado e as milícias dele para a possibilidade de um golpe, denunciando as urnas eletrônicas e anunciando a possibilidade, para ele real, dele ser roubado”, afirma o docente da UFRJ.

“Ele não vai usar as Forças Armadas, porque as Forças Armadas não vão participar dessa aventura. Mas vai mobilizar esses 470 mil homens armados nas polícias militares ao longo do Brasil”, pontua.

Essa opinião também é compartilhada pela pesquisadora Ana Penido, para quem uma situação de ruptura institucional a partir das Forças Armadas é improvável, dada a falta de apoio internacional, de grande parte da mídia e também da elite econômica.

“As Forças Armadas não serão protagonistas de um autogolpe no Brasil, o que não quer dizer que elas sejam mais democráticas que Bolsonaro. Um cenário mais provável de golpe é, caso seja necessário e em outro momento, algo como a via boliviana, com as PMs fazendo o trabalho sujo público e depois as Forças Armadas vindo salvar a nação e arrumar a casa”, analisa.

Precedentes

Uma amostra do que pode ser esse caldo de cultura golpista já pôde ser vista no país recentemente. A morte do soldado da Polícia Militar da Bahia Wesley Góes, abatido no último domingo (28) por agentes do Bope após sofrer um aparente surto psicótico e disparar seu fuzil no Farol da Barra, em Salvador, acabou mobilizando bolsonaristas nas redes sociais contra o governador do estado, Rui Costa, do Partido dos Trabalhadores (PT).

A narrativa bolsonarista buscou associar o surto do policial à uma revolta contra as medidas de combate ao novo coronavírus determinadas pelo governador, para conter a expansão das infecções. Alguns parlamentares, como Bia Kicis (PSL-DF) e José Medeiros (Podemos-MT), usaram as redes sociais para instar os PMs baianos a realizarem motins contra o próprio governo estadual.

No início de 2020, um motim de PMs no Ceará durou 13 dias e abriu uma crise de segurança pública no estado, também governado por um petista: Camilo Santana.

Os dois episódios sinalizam uma fissura institucional no interior das forças policiais, que pode fazer com elas deixem de obedecer ao comando dos governadores, a quem são subordinadas, para apoiarem um eventual golpe bolsonarista.

Além disso, o presidente ocupa grande parte da sua agenda prestigiando formaturas de militares as mais diversas, incluindo de polícias militares, uma forma de estreitar ainda mais esses laços.

Brasil de Fato

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