Conceição Evaristo: A escrita que transforma e resiste

“A nossa escrevivência não pode ser lida como história de ninar os da casa-grande, mas sim para incomodá-los em seus sonhos injustos”, diz Conceição Evaristo em seu romance Becos da Memória.

Em um mês dedicado à Consciência Negra, não podemos deixar de reconhecer a força e o impacto da obra desta escritora consagrada, uma das mais importantes e influentes do Brasil contemporâneo. Nascida em Minas Gerais, Evaristo é ficcionista e poeta. Suas obras transbordam profundidade e sensibilidade e já foram traduzidas para diversas línguas, incluindo inglês, francês, espanhol, árabe, italiano e eslovaco.

A literatura de Conceição Evaristo atravessa gerações e fronteiras, sendo um poderoso testemunho de resistência, luta e da beleza única de um povo. Ela transforma a dor histórica em arte, emocionando e impactando os leitores com suas “escrevivências” — narrativas que revelam a grandeza e a complexidade da experiência negra no Brasil.

Em suas páginas, Evaristo não apenas descreve a realidade da mulher negra e periférica, mas também constrói uma teoria de escrevivência, onde o ato de escrever se torna uma prática política e existencial. Para ela, escrever é um caminho para se libertar da invisibilidade, um meio pelo qual as mulheres negras ganham voz e espaço, não só na literatura, mas também na sociedade.

Evaristo propõe uma escrita que se aproxima da oralidade, uma escrita que não apenas documenta o mundo, mas resiste, reivindica e revoluciona. “A gente combinamos de não morrer”, frase emblemática de seu livro Olhos D’Água, torna-se um manifesto contra a opressão e um chamado ao reconhecimento da dívida histórica para com a população negra no Brasil.

A teoria da escrevivência de Evaristo está profundamente enraizada nas suas vivências e nas histórias dos marginalizados. Para ela, escrever é um ato de afirmação e reconstrução identitária. Ao contar as histórias de mulheres negras, ela faz mais do que narrar: ela cria um espaço onde essas vidas existem com dignidade, livres da alienação imposta pelos livros oficiais. A escrevivência de Conceição é um resgate de um passado de lutas, uma ferramenta para o presente e uma semente para um futuro mais igualitário.

Sua escrita também busca humanizar suas personagens, rompendo com os estereótipos de passividade ou subordinação frequentemente atribuídos às mulheres negras. Evaristo nos convida a olhar para essas vidas não apenas com empatia, mas com o compromisso de reescrever a história e preencher os espaços de invisibilidade que a sociedade e a literatura tradicional lhes impuseram. Na visão de Conceição, escrever é um ato de cura, uma maneira de dizer “estamos aqui” e “nossa história importa”.

Obras como Ponciá Vicêncio (2003), Becos da Memória (2006), Poemas de recordação e outros movimentos (2008), Insubmissas lágrimas de mulheres (2011) e Canção para Ninar Menino Grande (2018) abordam o universo das mulheres negras e o este imenso país tropical permeado pela miséria, violência e exclusão. Conceição denuncia a persistente desigualdade social, onde a população negra, marcada pela herança da escravidão, ainda permanece à margem da sociedade. Contudo, em sua escrita, revela a humanidade e a coragem de seus personagens, que, apesar das adversidades, se levantam diante do desespero e da injustiça.

“Quando mulheres do povo como Carolina, como minha mãe, como eu também, nos dispomos a escrever, eu acho que a gente está rompendo com o lugar que normalmente nos é reservado. A mulher negra, ela pode cantar, ela pode dançar, ela pode cozinhar, ela pode se prostituir, mas escrever, não, escrever é alguma coisa… é um exercício que a elite julga que só ela tem esse direito. Escrever e ser reconhecido como um escritor ou como escritora, aí é um privilégio da elite.”

Com sua poética da resistência, Conceição Evaristo nos ensina que, por meio da escrita, podemos reconstruir o que foi perdido, reinterpretar o que foi silenciado e, principalmente, reivindicar o nosso lugar no mundo. Ela nos lembra que, enquanto houver voz para escrever, haverá história a ser contada, e que essas histórias, por mais difíceis que sejam, são sempre necessárias.

Em 2015, Evaristo recebeu o Prêmio Jabuti de Literatura na categoria Contos e Crônicas pelo livro Olhos d’Água, que narra as diversas violências enfrentadas por homens e mulheres negros. Em 2019, foi a homenageada do 61° Prêmio Jabuti como personalidade literária, e, no dia 15 de fevereiro de 2024, a escritora foi eleita membro da Academia Mineira de Letras, ocupando a cadeira nº 40.

Em um país onde tantas vozes ainda são silenciadas, a literatura de Conceição Evaristo é um ato de luta constante. Sua teoria de escrevivência continua a inspirar e a mostrar que, por meio da palavra, podemos transformar o mundo. Como disse certa vez a sábia Evaristo: “O importante não é ser o primeiro ou primeira, o importante é abrir caminhos.”

No auge dos seus 77 anos, Conceição Evaristo segue produzindo intensamente e planeja lançar, nos próximos anos, três livros: um de poesias eróticas, outro com críticas à literatura negra e um terceiro que revelará o diário que sua mãe começou a escrever após ler Carolina Maria de Jesus.

Leiam Conceição Evaristo! Para finalizar, compartilho um belo poema dessa mulher extraordinária, que quebra paradigmas todos os dias e afirma que a mulher negra é intelectual e pode ocupar o lugar que quiser.

A noite não adormece nos olhos das mulheres

A noite não adormece
nos olhos das mulheres
a lua fêmea, semelhante nossa,
em vigília atenta vigia
a nossa memória.

A noite não adormece
nos olhos das mulheres,
há mais olhos que sono
onde lágrimas suspensas
virgulam o lapso
de nossas molhadas lembranças.

A noite não adormece
nos olhos das mulheres
vaginas abertas
retêm e expulsam a vida
donde Ainás, Nzingas, Ngambeles
e outras meninas luas
afastam delas e de nós
os nossos cálices de lágrimas.

A noite não adormecerá
jamais nos olhos das fêmeas
pois do nosso sangue-mulher
de nosso líquido lembradiço
em cada gota que jorra
um fio invisível e tônico
pacientemente cose a rede
de nossa milenar resistência.

Por Romênia Mariani

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