Contagem regressiva: Contee abre série sobre a Copa
Neste dia 1º de junho, faltando poucos dias para a abertura da Copa do Mundo de 2014, a Contee dá início a uma série de textos, matérias e entrevistas sobre o mundial de futebol e as discussões acerca do que ele representa de fato para o Brasil.
O primeiro artigo foi escrito pelo diretor teatral, documentarista e escritor Marcus Faustini para sua coluna no jornal O Globo. Vale a pena conferir e refletir!
Não vai ter culpa*
Por Marcus Faustini
Que o manifestante não seja preso e que o torcedor não seja hostilizado nesse junho que se apresenta
É possível torcer pela seleção de futebol brasileira, não abrir mão de celebrar a realização da copa no Brasil e ter pensamento crítico sobre toda lógica de mercado, com violações e desigualdades disparadas por ela. Por outro lado, é possível apoiar as manifestações por mais direitos e democracia, participar nas redes ou nas ruas, e não fazer coro com a narrativa capciosa que diz que nada mudou neste país e que incentiva por vezes o caos, para estratégias eleitorais conservadoras, distantes do que dizem as ruas. Sei que é a invenção de um lugar que não é fácil, mas necessário.
O professor de geografia da escola pública onde estuda minha filha ainda não conheço pessoalmente, mas, ao participar em casa dos trabalhos inventados por ele, acompanho todo seu esforço de formação crítica e promoção criativa do prazer de aprender. Trouxe para a turma dela, na última semana, um instigante desafio. Pesquisar e apresentar em sala os legados da Copa. Os ruins mas também os bons. Fiquei intrigado e achei interessante o relato de minha filha sobre a ênfase dada por ele na busca e no entendimento de bons legados. Um forte incentivo de pesquisa das contradições, além do que se apresenta de imediato, visto que até agora só havíamos conversado sobre o legado ruim. Animador! E isso não mudou em nada o entendimento desta adolescente com a necessidade, sempre conversada aqui em casa, de se posicionar e agir na superação das desigualdades. Proporcionou, sim, mais densidade na sua fala.
Nessa mesma semana um jovem artista ativista, no relâmpago de seus vinte e poucos anos, comentou que sempre foi ligado ao futebol-encorajador de seu pensamento de alegria compartilhada que hoje embala suas ações urbanas. Porém, estava um pouco amuado com algumas situações, em que seus pares de geração diziam que ver jogo durante a copa é coisa “de coxinha” — a maior das diminuições destes tempos de engajamento dos flyers de timeline.
Apesar de um pouco constrangido com esse lugar de conselho — nunca podemos nos levar tão a sério — mas pensando na estratégia do professor de geografia, que aposta na complexidade, comentei que era possível assistir aos jogos sem culpa, torcer e na sequência estar nas ruas ou nas redes celebrando e se manifestando. Que a política é também essa capacidade de agir recombinando coisas que estão separadas, inventar caminhos novos, outras presenças. Que foi isso que aconteceu em junho passado e nos rolezinhos, ocupas etc. Esse debate precisa ser feito junto com seus amigos, com alegria, sem opressão.
O esporte promove a liberdade do desenvolvimento de potencialidades físicas de um corpo, a sua pedagogia traz aprendizado de pactos através de regras e ludicidade da narrativa que embala vidas, nos une. No século XX, teve importante papel na promoção da paz entre os povos. Sabemos que o mercado capturou esses sentidos, diminuindo seus melhores valores ao consumo do mundo do espetáculo. Entretanto, juntar pessoas para torcer nos jogos é um ato comunitário, também expressão política. Vamos deixar apenas o mundo-mercado significar este momento histórico?
Nesse junho que se apresenta, sua duração será maior que o próprio efeito do solstício que abriga. Intermináveis dias e noites para o neófito militante que bate no peito na defesa do povo e carrega corajosamente a faixa do “Não vai ter copa”, e para o torcedor que deseja gritar hexaaaaaaaa campeãoooooo. Que os dois se misturem sem culpa. Que o manifestante não seja preso, que o torcedor não seja hostilizado por quem se acha “dono da verdade máxima para o bem da Humanidade”.
Vamos deixar a culpa para quem não fez diálogo com os movimentos sociais e culturais que alertaram desde sempre para o legado de desigualdades, que poderia ser evitado. Deixar também para quem criminalizou manifestantes, para quem é contra a cota nas universidades, pra quem é homofóbico, pra quem não gosta deste Brasil com classe média ampliada nos aeroportos. E também, por que não dizer, para quem quer ser esse dono da verdade, com o argumento de ser o supermilitante. Esse gosta de categorizar quem é revolucionário ou não, da mesma maneira que o conservador — que não quer mais mudanças — chama qualquer manifestante de vândalo. Estão juntos, na falta de alegria com as diferenças de modos de agir e de pensamento complexo sobre os acontecimentos.
Não vai ter culpa! Vale torcer pelo Brasil em campo e na política.
*O artigo foi publicado originalmente no jornal O Globo de 27/05/2014 e republicado pelo Portal da Contee com autorização do autor