Cotas na UFRGS: estudantes cotistas relatam apreensão sobre perda de vaga na Universidade Federal do Rio Grande do Sul
“Eu sou uma jovem mulher negra, quilombola da zona rural de Triunfo (comunidade quilombola Morada da Paz). Eu tenho um sonho de cursar a faculdade, fazer minha graduação, me formar. Para realizar esse objetivo, no ano de 2022, estudei o ano inteiro em cursinho popular, o Emancipa. Vim para a Capital consegui trabalho porque tinha que me sustentar, morava de aluguel. Eu prestei vestibular para a Ufrgs e passei em Nutrição. A partir do momento que eu descobri que eu passei fiquei muito feliz. Mas eu mal tive tempo de comemorar as minhas conquistas porque eu me inscrevi como cota L2 (candidatos que cursaram todo o ensino médio em escolas públicas, com renda familiar bruta per capita igual ou inferior a 1,5 salário mínimo, autodeclarados negros pretos, negros pardos ou indígenas) e ela foi indeferida.”
O relato é da aluna cotista de Nutrição da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), Shanti Rocha Teixeira, uma entre os 160 alunos que tiveram problemas com sua matrícula na instituição.
Em junho deste ano, a Comissão de Educação da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul (ALRS) se reuniu com um grupo de estudantes ingressantes por cotas na Ufrgs que tiveram suas matrículas desligadas no fim de maio. Os estudantes estavam com a matrícula provisória, quando permanecem com a documentação em análise. À comissão, os representantes dos 160 alunos afetados relataram prazos curtos, dificuldade na entrega de documentações exigidas, falta de instruções e impossibilidade de recorrer das decisões da universidade.
Essa não é a primeira vez que há relatos sobre a questão das cotas na universidade. Em 2021, aproximadamente 200 estudantes que haviam ingressado na instituição através da política de cotas foram desligados da instituição.
Shanti conta que ao descobrir que havia passado em uma das federais mais aclamadas do país, veio a “dor de cabeça” com a documentação a ser enviada.
“Descubro que tenho pouco tempo para enviar a documentação de todas as contas bancárias dos meus familiares, e todas as documentações. Sendo assim, na segunda eu descubro que passei, na terça e na quarta eu tomo ciência de toda a quantidade de documentação que eu preciso enviar. E eu não estava sozinha nessa situação.”
Rede de Apoio
A estudante conta que o cursinho popular que a preparou o ano inteiro auxiliou na documentação, assim como a todos os estudantes que passaram. Também contou com o auxílio do seu núcleo familiar e da comunidade. “Não adianta só passar. Se tu não consegue efetivar a documentação a ser enviada, tu perde a tua vaga.”
Após o envio da documentação, a espera foi longa. “Saem as primeiras bancas, saem as segundas bancas, saem as terceiras e tu nunca acha o teu nome e dizem datas que é para as informações saírem e as informações se postergam. Se tu perde a banca de verificação, por mais que ela seja um procedimento simples, implicará a perda da tua vaga, sem talvez processo de recurso.”
Nessa espera, a estudante passou em quase todos os quesitos, tendo sido reprovada na questão socioeconômica. “Quando fui ver o que faltava, uma era contas da minha mãe que ela havia bloqueado em 2009. Outra, como eu faço parte de uma comunidade de quilombola, existe o CNPJ da instituição, e isso está vinculado ao nome do meu pai, que é o representante fiscal no estatuto da comunidade. Só que essas contas acabaram ficando vinculadas no CPF dele, e foi uma das coisas que a Universidade implicou”.
Ela e a família foram atrás da documentação e com o auxílio do cursinho entraram com recurso junto a Ufrgs. “Eu me encontro com uma das professoras do cursinho e ela me orienta como eu deveria montar as coisas. Muito burocrático, difícil. Eu tive crises de ansiedade, eu pensei em desistir. E mesmo assim eu tive apoio. E quem não tem? Quem não tem uma rede? Um cursinho que possa contar? Núcleo familiar que possa pedir auxílio? Como ficam essas pessoas, a cabeça dessas pessoas, os estudos dessas pessoas”, questiona.
“Tem portas que só se abrem pelo lado de dentro”
Shanti relata que o edital é extenso, gerando um processo muito burocrático e etilista. “O que adianta eu incluir tais grupos periféricos, se na hora de colocar tais documentações eu os excluo, porque a quantidade de detalhes mínimos não é para uma pessoa leiga entender”, desabafa.
Ainda não há retorno da Ufrgs sobre o processo. A perspectiva da estudante é de entrar como matricula provisória, apesar de que no início do semestre de 2023, houveram 160 desligamentos de cotistas que tinham matrícula provisória. E segundo Shanti, sem nenhum esclarecimento.
Os alunos desligados estiveram presentes em alguns movimentos na frente da Reitoria que aconteceram neste ano. “O que adianta ter uma política de cotas se ela não inclui, se não tem um processo de acolhimento a esses estudantes, um processo mais humano. Se essa burocracia é tanta que faz com que pessoas desistam de conseguir. Só nesse processo de documentação muitos caem. É um grito de indignação que parece que não chegou aos ouvidos da Ufrgs.”
Shanti tem sonho de ser professora universitária e conseguir movimentar as coisas de dentro para fora. “Tem portas que só se abrem pelo lado de dentro. Eu nem comecei a cursar um ensino superior, mas eu já me deparo com as travas, com as barreiras que querem me impedir de continuar. E o que eles mais querem é que eu desista, sabe, mas eu não vou desistir.”
No meio desse processo, Shanti se inscreveu no SISU para a Universidade Federal de Pelotas onde também passou. “Agora eu me encontro atrás de uma bolsa, para conseguir me manter.”
“Importante também pensar na nossa permanência nesses espaços”
Caso similar ao de Shanti, o estudante Akin Sueht Andrade Kremer, que ingressou no curso de Ciências Sociais em 2019, também sofreu com a ansiedade por conta da documentação. Conforme expôs o estudante, por ser uma uma vaga socioeconômica, ela demanda muitas documentações, muitas das quais ele nunca havia tido contato antes.
“Isso me despertou muita ansiedade, muito desespero por ver que era um período tão curto de tempo. Eu entreguei todas as documentações, já ciente de que eu ia ter que entrar com recurso, porque naquele momento a minha mãe estava fazendo uma transição de um trabalho para o outro e eu não tinha acesso à carteira de trabalho dela.”
O estudante entrou com o recurso em 2019 e só obteve resposta em 2021. No final daquele ano, segundo explica, a instituição pediu outras documentações que não tinham sido solicitadas na primeira vez. “Surgiu uma lista de documentos e eu enviei todos. Na sequencia vieram outros. E aí nessa época a gente ainda estava vivendo várias questões da covid. Minha família inteira pegou o vírus, eu também. Estava fazendo esses cuidados com a minha mãe, com a minha irmã, e eu acabei perdendo o prazo”, relatou.
Ele enviou por e-mail laudos médicos, pedindo que reabrissem o prazo, o que foi acatado, assim como uma entrevista. E de novo mais uma série de documentos, entre eles uma carta a punho escrita pela mãe, afirmando que a família nunca recebeu pensão do pai.
“Acabou que abriram o prazo novamente e me pediram outros documentos, como sobre o apartamento onde a minha mãe mora que foi cedido pela minha avó. Enviei novamente a documentação e depois abriram de novo para que eu enviasse a identidade da minha avó e aí nesse momento eu perdi o prazo. E fiquei indeferido até 2023. Meu processo de análise de documentação levou quatro anos para ser concluído e para ser indefinido. Agora eu estou com uma medida judicial para que o juiz reconheça que eu sou sujeito de direito dessa vaga e que a Ufrgs analise o restante das minhas documentações, porque nessa análise vai comprovar que eu, de fato, sou sujeito de direito.”
Apesar desse transtorno, Akin afirma que vê a política de cotas como um paliativo pra tentar reduzir as desigualdades que estão postas no nosso país. “Pensando que elas são estruturais e estruturantes também. Então quando se traz esse debate sobre cotas nos espaços de ensino, tomada de decisão, ou mercado de trabalho, se faz necessário debater o por que dessa necessidade, o que corpos racializados, periféricos, dissidentes de gênero, com deficiência, tem pra agregar. E os obstáculos que dificultam sua presença nos espaços. Acho importante também pensar na nossa permanência nesses espaços, pois esse debate não pode andar descolado do ingresso”, conclui.
Na espera de resposta
“Eu estava com a matrícula provisória e tive a minha documentação indeferida com alegação de que não tinha enviado uma declaração de inatividade bancária do meu irmão que na verdade eu enviei. Fizeram alguns cálculos contabilizando as horas extras e o auxílio estudantil da minha mãe. Eles chegaram a me pedir para explicar uma transferência de 5 reais na conta bancária do meu pai”, relata o bacharel em Teatro, Northon Lara.
Atualmente Northon está indeferido, mas continua indo para aula enquanto está providenciando ação judicial. “Ainda não fui totalmente desligado do sistema, estou aguardando. Entrei com minha liminar e o mandado de segurança saiu semana retrasada, agora estou esperando a resposta da Ufrgs.”
O que diz a Ufrgs
Em relação à questão sobre cancelamento de matrículas provisórias, a Ufrgs esclarece que a pró-reitoria de graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em atenção ao cancelamento de matrículas provisórias, apresenta os seguintes esclarecimentos, com base no Edital do Concurso Vestibular 2022, disponível em: https://www.ufrgs.br/
De acordo com nota enviada pela entidade, em maio de 2023, a universidade encaminhou o cancelamento de matrícula provisória de 159 candidatos que não cumpriram os requisitos previstos no edital dos respectivos processos seletivos e/ou não comprovaram a sua condição exigida na modalidade a qual estavam inscritos, não comprovando assim fazer jus à vaga por eles pleiteada.
“Reiteramos, portanto, que o conhecimento das normas do processo seletivo aos quais os candidatos se inscreveram é fundamental para o cumprimento de todas as etapas do processo de forma adequada. E que, uma vez estabelecidas as regras para um determinado processo seletivo e esclarecidas estas em um edital, estas devem ser estritamente seguidas por todos e para todos, a fim de preservar a isonomia do processo seletivo”, destaca.
Referente ao aproveitamento das vagas abertas em função do cancelamento da matrícula provisória, a universidade informa que elas poderão ser ocupadas em outros processos seletivos de ingresso para ocupação de vagas ociosas nos cursos de graduação da Ufrgs.
Comissão de Direitos Humanos do Senado aprova PL que renova política de Cotas
A Comissão de Direitos Humanos do Senado Federal aprovou na última quarta-feira (30), o projeto de lei 5384/2020, que propõe a permanência e o aperfeiçoamento da lei de cotas no ensino federal. O projeto foi relatado pelo presidente da comissão, senador Paulo Paim (PT-RS).
As principais alterações realizadas na Câmara pela relatora, deputada federal Dandara Tonantzin (PT-MG), foram mantidas pelo relator. Destacam-se a avaliação do programa a cada 10 anos, a redução da renda familiar per capita para 1 salário mínimo e a inclusão de quilombolas entre os beneficiários.
A lei original já reserva metade das vagas das universidades e instituições federais para alunos de escolas públicas. A partir dessa reserva inicial, subcotas são criadas para estudantes de baixa renda, pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência e, agora, quilombolas.
A autoria do projeto de lei é das deputadas federais Maria do Rosário (PT-RS) e Benedita da Silva (PT-RJ), e também do deputado Damião Feliciano (União-PB). A parlamentar gaúcha esteve presente durante a aprovação e lembrou a importância da legislação como uma reparação histórica e, também, das perspectivas de futuro para o Brasil. “Com esta lei, nós estamos tentando oferecer caminhos de esperança, para que todo mundo tenha oportunidades. Nós vamos fazer esse Brasil ser melhor pra todo mundo”, afirmou.
Edição: Katia Marko