Criar agência reguladora é chancelar cartel na educação
Por Gilson Reis*
República. Do latim, res publica. Traduzido como “coisa pública”, é, portanto, aquilo que diz respeito ao interesse público de todos os cidadãos e cidadãs. Contudo, a república cuja proclamação o Brasil celebrou no último 15 de novembro já teve seu significado deturpado, esvaziado, ameaçado várias vezes. Uma delas, nos anos 1990, com a onda de privatizações promovidas pelo governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB), que relegou serviços públicos e direitos sociais a outro rés: o do chão.
Na esteira das privatizações, surgiram, a partir de 1997, as agências reguladoras. A primeira delas foi a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), criada pela Lei 9.472 daquele ano. Hoje há outras dez: Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel); Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP); Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa); Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS); Agência Nacional de Águas (ANA); Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq); Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT); Agência Nacional do Cinema (Ancine); Agência Nacional de Aviação Civil (Anac); e Agência Nacional de Mineração (ANM).
Note-se, pelos significados das siglas, que elas se debruçam sobre dois pontos fundamentais. Numa mão, riquezas naturais: recursos hídricos; energia elétrica (em grande parte produzida a partir desses recursos); combustíveis fósseis e biocombustíveis; minério. Na outra, direitos sociais fundamentais: saúde, transporte, lazer. E, a julgar pela assombrosa declaração do ministro da Educação, Camilo Santana, no último dia 31 de outubro, está ameaçado de fazer parte do rol outro direito social fundamental, o primeiro deles, aliás: a educação.
Supostamente, quando as agências reguladoras surgiram, a partir da gradativa transferência da prestação de serviços de responsabilidade do Estado para a iniciativa privada, a “boa” intenção (lembrando que o ditado popular diz bem o lugar mítico que está repleto delas) era de que à administração pública coubesse o papel de regulador econômico desse mercado de interesse público, editando normas e realizando a fiscalização da prestação dos serviços, a fim de manter tanto continuidade quanto qualidade. No entanto, a “autonomia” administrativa das agências, adotada para, pretensamente, “livrá-las” de interferência política, não as livra, porém, de interferência econômica.
Muito pelo contrário. Especialistas apontam o forte risco de captura desses órgãos pelos interesses das empresas (que deveriam ser) reguladas, inclusive por causa de baixas qualificação e remuneração nos quadros técnicos. Mais do que isso. As agências reguladoras brasileiras ajudaram a criar cartéis. Os defensores da privatização sempre usaram como pseudo-argumento a defesa da quebra do “monopólio” estatal, pretensamente, para melhorar a qualidade. Na prática, porém, as agências reguladoras são a evidência de que serviços — e direitos! — passaram a ser dominados por outro monopólio (ou oligopólio), controlado pelos privatistas. E, haja vista as atrocidades praticadas pelas as empresas de telefonia, de aviação, de energia elétrica, de abastecimento de água etc., qualidade passa longe.
A educação brasileira, sobretudo no ensino superior, já enfrenta a nefasta atuação de cartéis, que agem em conluio até mesmo nas mesas de negociação, recusando-se a conceder direitos básicos de remuneração ou de condições de trabalho aos professores e técnicos administrativos que atuam nessas empresas. Tampouco há respeito a padrões mínimos de qualidade no ensino que ofertam. A educação a distância (EaD) avança como um trator desgovernado; docentes são obrigados a ministrar aulas a centenas, por vezes milhares, de estudantes ao mesmo tempo, recebendo menos por isso; estudantes veem sua formação rebaixada. O primeiro dos direitos sociais fundamentais é transformado em mercadoria de forma escancarada, com a chancela do Ministério da Educação. E uma proposta estapafúrdia como essa, de criar uma agência reguladora para o ensino superior, nada mais faz do que oficializar essa cartelização que já toma conta do setor no país.
A Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino — Contee lançou, em agosto deste ano, uma campanha nacional pela regulamentação da educação privada. A criação de uma agência reguladora, no entanto, não é regulamentação, mas autorregulação. Ou seja, é o Estado, por meio do MEC, abrir mão de seu dever constitucional e deixar as empresas de educação, sobretudo de capital aberto, livres para defender única e exclusivamente seus próprios interesses.
A proposta anunciada pelo ministro da Educação é uma afronta: à luta histórica da Contee pela regulamentação da educação privada; à Conferência Nacional Extraordinária de Educação (Conae 2024) que se avizinha e que deve ser o espaço propício para a discussão de políticas públicas; à obrigação, que já deveria ter sido cumprida, de instituir um Sistema Nacional de Educação (SNE), juntamente com um Sistema Nacional de Avaliação, que inclua o setor privado de ensino; à Constituição.
*Gilson Reis é coordenador-geral da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino — Contee