Por José Geraldo de Santana Oliveira*
Foram exatos 1.461 longos e com a sensação de intermináveis dias o tempo que durou o catastrófico e teratológico governo Bolsonaro — se bem que ele, covardemente, como é de seu feitio, fugiu no penúltimo dia, deixando o País à deriva, como, aliás, já se encontrava desde a proclamação do resultado do segundo turno das eleições presidenciais, ao dia 30 de outubro próximo passado. Foram nada menos que 460 dias a mais do que se prolongou o pesadelo de Sherazade, personagem da belíssima lenda árabe “As mil e uma noites”, que ao longo desse período esteve sob ameaça de ter a cabeça decepada pelo cruel sultão Shariar (por certo, guru espiritual de Bolsonaro), pelo simples crime de ser mulher.
Segundo multimilenar lenda judaica, um dia feliz equivale a um ano. Ainda que se faça paridade de tempo equivalente entre um dia feliz e um infeliz, com base nessa lenda, o tempo pelo qual Bolsonaro infelicitou o Brasil e seu povo produz a sensação de que foi equivalente a 1.461 anos. Tempo demais para a paciência de quem não é seu comparsa — que, tendo por base apenas o resultado do segundo turno das eleições presidenciais, são impactantes 60,3 milhões.
Para o bem da ordem democrática, esses inapagáveis anos de calvário sob Bolsonaro desceram às catacumbas, com a posse do governo de reconstrução nacional, tendo Lula-Alckmin como timoneiros. Espera-se que o Estado Democrático de Direito esteja protegido de tempos de trevas, como o que ele representa, ao menos com a mesma segurança em que se acham lacrados os rejeitos do césio 137, de tristíssima memória para os goianos, projetada para impedir sua radiação por 300 anos iniciais. Com a diferença essencial de que, enquanto esses são lacrados com estrutura metálicas e concretos, aquele só pode ser protegido com a abundância democrática, que não se satisfaz com meras declarações formais, exigindo, para tanto, a efetividade dos fundamentos da República Federativa do Brasil, indelevelmente inscritos no Art. 1º da Constituição Federal, e que são: soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho e da livre inciativa e pluralismo político, todos impiedosamente rasgados pelo governo Bolsonaro.
Pois bem! Removido Bolsonaro pela via que ele renega com veemência, que é a da prevalência da vontade soberana das urnas, inicia-se a árdua etapa de reconstrução das bases democráticas. Bases deitadas abaixo por seu devastador governo em meio aos escombros que ele deixou e ao bolsonarismo, que segue vivo e cheio de veneno. Em meio também às contradições que marcam as forças políticas componentes da coalizão política — sem a qual esse novo tempo não seria possível — em muitos pontos cruciais inconciliáveis, notadamente quanto aos direitos trabalhistas, sindicais e previdenciários, e que, de pronto, vão se aflorar e se aguçar. Porém, com a essencial diferença de que, agora, se dão dentro das regras democráticas, impiedosamente rechaçadas pelos governos Temer e Bolsonaro.
Como o foram os anteriores governos Lula e Dilma, o governo que ora se inicia será de disputa sem trégua, palmo a palmo, com a agravante de que, neste contexto, com muito maior complexidade e empecilhos.
Isso, de plano, impõe aos/às trabalhadores/as e às suas entidades sindicais o imperioso dever de manter incólumes suas principais bandeiras reivindicatórias, com destaque para a revogação do teto de gasto imposto pela famigerada Emenda Constitucional 95/2016, das reformas trabalhista e previdenciárias, da reconstrução da saúde e da educação, nos estritos parâmetros constitucionais.
Sob pena de a eleição da chapa Lula-Alckmin se transformar em vitória de Pirro, essas bandeiras não devem e, muito menos, não podem ser sobrestadas e/ou ser arriadas. Ao contrário, têm de ser elevadas ao topo do mastro, ou seja, ao cotidiano das prioridades do disputado governo que se instalou ao dia 1º de janeiro de 2023.
Assim como a Física explica o movimento como modo de existência da matéria, isto é, que não há matéria sem movimento nem vice-versa, não houve e nunca haverá conquista social democrática, mesmo no governo Lula-Alckmin, sem luta intensa, sem mobilização permanente, sem vigília diuturna. Como já bradava Voltaire, no século XVIII, só há esperança no clamor popular.
A permanente e intensa mobilização popular na defesa intransigente das bandeiras necessárias à concretização da cidadania, da dignidade da pessoa humana, da valorização do trabalho humano e do primado do trabalho, como essenciais para o bem-estar e a justiça sociais, longe de enfraquecer ou sequer arranhar o governo Lula, o que não está nem poderá estar na agenda, irá fortalecê-lo, para que possa cumprir suas promessas de campanha e que convergem com as bandeiras sob destaque. Afinal, é assim que se constrói, fortalece e dignifica a democracia.
À luta, sem trégua!
A hora é agora; ao depois, poderá ser muito tarde!
*José Geraldo de Santana Oliveira é consultor jurídico da Contee