Descaso em pente-fino pode tirar beneficiários legais do Bolsa Família
De acordo com informações divulgadas pela Folha de S.Paulo nesta semana, o governo retirou o benefício do Bolsa Família de 5,2 milhões de brasileiros após verificar pagamentos irregulares entre o segundo semestre 2016 e maio deste ano. Também foram cancelados 478 mil de auxílios-doença e aposentadoria por invalidez, totalizando 5,7 milhões de benefícios cancelados. A apuração destes gastos irregulares ficou a cargo do Cmap (Comitê de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas) que informou uma redução de R$ 10 bilhões nesses programas após os cortes.
Em conversa com o Portal Vermelho, o professor de economia da PUC-SP, Marcel Guedes Leite, disse que essas checagens de irregularidades devem ser feitas frequentemente e são mais intensas no Bolsa Família por ser mais o programa simples na hora da apuração, já que no caso do auxílio-doença e aposentadoria por invalidez é necessária a realização de uma perícia médica para retirada do benefício.
“O Bolsa Família tem controle mais forte, mas o pente-fino acontece devido à falta de controle do governo. Do jeito que é colocado, parece que as pessoas estavam fazendo algo errado, contra o sistema, mas o sistema é que não estava sendo bem desenvolvido”, explicou o professor.
O benefício mais afetado por esse corte, o Bolsa Família, é reconhecido internacionalmente por seus impactos positivos. Criado em 2004, o programa foi responsável por retirar o Brasil do Mapa da Fome da ONU em 2014 e por reduzir a desigualdade social: entre 2001 e 2008, 13% da queda na desigualdade de renda.
Mas, nessa última leva de cancelamentos, as 5,2 milhões famílias retiradas do programa – apenas no período analisado – superam a população do Uruguai (3,5 milhões), por exemplo.
Apesar de especialistas apontarem essas revisões como necessárias, há uma nuance que precisa ser considerada diante do atual contexto econômico e social do Brasil: a forma como o governo vêm realizando esse pente-fino no Bolsa Família.
O critério adotado pode ser rigoroso demais a ponto de excluir beneficiários que ainda estariam enquadrados nas regras do benefício social. O que preocupa economistas diante do cenário brasileiro: aumento de 11,2% da pobreza extrema entre 2016 e 2017, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad Contínua) do IBGE; da volta da mortalidade infantil após 26 anos de queda (crescimento de 11% entre 2015 e 2016) e a possibilidade do Brasil voltar ao Mapa da Fome.
“Eu acho bastante surpreendente que tenham sido cortados mais de 5 milhões de pessoas do Bolsa Família por conta de irregularidades na recepção do benefício, pois o Bolsa Família é o programa mais bem focalizado e administrado com comprovação de estudos do Banco Mundial e das Nações Unidas para o Desenvolvimento”, disse Paulo Jannuzzi, professor da Escola Nacional de Ciências Estatísticas do IBGE e ex-Secretário de Avaliação do Ministério de Desenvolvimento Social (MDS).
Para Jannuzzi, boa parte dos benefícios podem ter sido cancelados de forma equivocada. Na mesma linha, o professor de economia da Unicamp, Guiherme Mello, afirmou ao Portal Vermelho que essa “é uma escolha política que o governo tentará travestir com o lema da moralidade”.
“A revisão dos benefícios sociais deve ser feita de tempos em tempos, mas essa questão é bastante difícil e complexa. Porque esse número [de cancelamentos] dá a entender que há um excesso de rigor por parte do governo exatamente para não aumentar o investimento no Bolsa Família. Com isso, ele justifica essa ação com um argumento moralista sobre a pessoa que não merece receber quando, na verdade, o aumento da pobreza e da miséria mostram que há cada vez mais pessoas que precisam desse benefício”, explicou o professor da Unicamp.
Questionado sobre os possíveis equívocos que não consideram a sazonalidade dos trabalhos informais (o pente-fino analisa a renda do momento da apuração dos dados), Marcel Guedes afirmou que uma das formas de se reverter essa situação seria fazer uma média dos rendimentos anuais.
“O pente-fino do Bolsa Família deveria considerar uma renda média auferida no período de um ou dois anos para evitar justamente a sazonalidade. Eu posso conseguir um trabalho remunerado agora, mas que depois irei ficar meses sem receber. Com isso, o rendimento médio nesse período teria sido inferior ao exigido pelos critérios do programa, permitindo que receba o benefício”, disse Guedes.
Analisando o contexto social e econômico, Guilherme Mello afirmou que o governo segue na contramão do que seria necessário para mudar o cenário do país. Para ele, nesse momento, programas como o Bolsa Família deveriam ser ampliados.
Hoje, o valor do benefício do Bolsa Família é de R$ 48,00 por mês e cada família pode acumular até dois benefícios, ou seja, R$ 96,00. Enquanto isso, a cesta básica mais barata no país é a de Salvador que custa R$ 333,00.
“Precisamos ter claro o momento que o país vive. A única forma de sair disso é aumentar a renda das pessoas e o Bolsa Família tem comprovadamente um impacto não só sobre a renda e o emprego, mas em particular nas pequenas cidades do Brasil”, falou Guilherme Mello.
Além do Bolsa Família manter 21% dos brasileiros fora da extrema pobreza, ele também movimenta a economia local, conforme relatou Mello. O benefício do Bolsa Família significa renda e, portanto, dinheiro e circulando. Embora o valor seja pequeno, ele tem impacto na dinâmica cotidiana e na vida das pessoas porque é com esse valor que as famílias fazem suas compras após o pagamento e permite que os comércios familiares em pequenas cidades se mantenham abertos, mantendo também a empregabilidade local.
Ou seja, o Bolsa Família injeta dinheiro e garante a movimentação da economia local e isso acontece principalmente nas cidades do norte e nordeste do Brasil, onde mais de 1/3 da população vivem dos benefícios do programa nos 11 estados dessas regiões.
“Quantos benefícios fiscais concedidos a grandes empresas não são eficazes e não se justificam sob nenhum critério e mesmo assim, são mantidos? O que precisamos entender é que em um país como o brasil onde está voltando a pobreza, está voltando a fome, e está voltando a miséria, o ideal é você conseguir ampliar a cobertura. Se você adotar uma política totalmente rigorosa em relação ao acesso aos benefícios, você pode estar ampliando esses dados trágicos no Brasil no longo e até no curto prazo. O ideal seria você aumentara cobertura social e não reduzir os benefícios nesse momento de grave crise social”, finalizou o professor da Unicamp.