Dia da Proclamação da República: entre rupturas e promessas
O 15 de novembro costuma ser lembrado como o dia em que o Brasil se tornou República. Mas a narrativa oficial, repetida ao longo de décadas, esconde as contradições desse processo. A imagem romantizada de civismo e participação popular não resiste a uma análise honesta: a República não foi proclamada pelas ruas nem pelo povo, e sim articulada por setores militares e elites econômicas que, diante de crises internas, decidiram romper com a monarquia de forma abrupta, silenciosa e excludente. A população, especialmente os milhões de pessoas recém-libertadas da escravidão, não foi convidada para o futuro que se anunciava, como se fosse possível instituir cidadania sem a presença do próprio povo.
A República nasceu sem projeto de inclusão. Menos de dois anos após a abolição, o país seguia sem políticas públicas capazes de integrar a população negra à cidadania plena. A liberdade formal não significou acesso à terra, ao trabalho, à educação ou a direitos básicos. Assim, a Proclamação preservou estruturas de poder profundamente desiguais, coronelismo, racismo estrutural e concentração de renda, elementos que atravessaram toda a Primeira República e continuam a marcar a sociedade brasileira.
O país que emergiu em 1889 inaugurou uma modernização truncada e elitista. As instituições republicanas se tornaram palco de disputas políticas, mas não instrumentos imediatos de democratização. Apenas com o tempo, e sob forte pressão popular, certos direitos foram conquistados e espaços foram abertos. A história republicana brasileira não é linear. É marcada por ciclos de avanços e retrocessos, entre mobilizações sociais, rupturas autoritárias e lutas de trabalhadoras, trabalhadores, estudantes e educadores.
A conquista do voto feminino ilustra que direitos não são concessões, mas resultado de mobilização. Embora a Constituição de 1891 excluísse as mulheres, brechas legais e debates parlamentares iniciaram o percurso que culminaria no reconhecimento do voto em 1932 e em sua consolidação na Constituição de 1934. O Brasil tornou-se pioneiro ao institucionalizar o sufrágio feminino antes de vários países europeus, mostrando que a modernização republicana também avançou por meio da pressão cívica organizada.
A República, contudo, sempre conviveu com sua face autoritária. Como destaca o historiador Carlos Fico, a presença militar na política não é exceção, mas fio contínuo que atravessa toda a história republicana. Desde 1889, golpes, pronunciamentos e quarteladas alimentaram a ideia de que as Forças Armadas teriam uma missão tutelar sobre a sociedade civil. Essa visão, sustentada por um imaginário de superioridade técnica e moral dos militares, moldou a cultura política brasileira por mais de um século. Fico lembra que nenhum militar golpista foi punido ao longo da história republicana e que apenas recentemente a Justiça começou a responsabilizar agentes envolvidos em tentativas de ruptura institucional.
Os fantasmas republicanos, elitismo, militarismo, racismo estrutural e exclusão social, continuam presentes. A democracia brasileira é jovem e vulnerável, exigindo vigilância permanente. O ataque às sedes dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023 escancarou o quanto a República ainda é ameaçada por forças que cultivam o autoritarismo e o negacionismo histórico.
O 15 de novembro deve ser celebrado com consciência crítica. Não como ritual cívico abstrato, mas como chamado à construção de uma República que ainda não se realizou plenamente. A democracia não nasce pronta; ela se constrói, se disputa e se protege. O caminho republicano no Brasil foi pavimentado pela ação do povo, que ao longo de décadas conquistou direitos e ampliou espaços de participação que jamais lhe foram oferecidos espontaneamente.
Celebrar o 15 de novembro é olhar para trás sem ingenuidade e olhar para frente com compromisso. É reconhecer que a República ainda não chegou a todos e que sua promessa permanece incompleta. É admitir que o país precisa enfrentar seus legados autoritários, corrigir desigualdades históricas, ampliar direitos e fortalecer instituições. É reafirmar que a República não é monumento, é movimento; não é herança, é tarefa; não é mito, é construção coletiva.
Enquanto houver exclusão, violência política, racismo e desigualdades estruturais, a República seguirá sendo projeto. O desafio, como sociedade, é transformá-la em realidade concreta: plural, democrática, inclusiva e verdadeiramente popular, uma República em que todas e todos possam ser sujeitos plenos de sua própria história.
Por Antônia Rangel

