Distopia (à) brasileira e a perseguição à professora em Cuiabá
Por José Geraldo de Santana Oliveira*
O substantivo feminino distopia — cunhado pelo filósofo e economista britânico John Stuart Mill, em 1868, em discurso pronunciado no parlamento inglês —, literalmente, significa lugar ruim, de muita dor, sendo a liberdade seu principal alvo e sua maior vítima.
Para Stuart Mill, no referido discurso, “O que é demasiadamente bom para ser tentado é utópico, o demasiado mau é distópico”.
Os dicionários de Língua Portuguesa, para além do significado patológico — localização anômala de um órgão do corpo humano —, conceituam distopia como “lugar ou estado imaginário em que se vive em condições de extrema opressão, desespero ou privação; antiutopia”.
2 O Brasil que emergiu do golpe do impeachment de 2016 e, especialmente, das eleições de 2018 deixou de ser distopia imaginária e/ou temida para tornar-se real, nas dimensões de opressão — marca maior — e desespero, como atestam os 587 mil mortos pela Covid-19 e a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), divulgada em agosto último.
Eis os desoladores dados coletados pela Pnad: 14,4 milhões de desempregados; 7,4 milhões de subocupados; 10,2 milhões de pessoas na força de trabalho potencial, que poderiam trabalhar mas não trabalham, nos quais se incluem 5,6 milhões de desalentados; 30,2 de trabalhadores com carteira de trabalho assinada, o menor número de todos os tempos; 10 milhões de empregados sem carteira assinada no setor privado; 24,8 milhões de trabalhadores por conta própria, sendo que a taxa de informalidade chegou a 40,6% da população ocupada, ou 35,6 milhões de trabalhadores informais.
3 No campo da opressão, há uma pletora de atos e fatos que atentam impiedosamente contra a ordem democrática e, em particular, contra a liberdade de ação e expressão. Caracterizam -se por projetos de leis e leis, nos três entes federados, com destaque para a Lei N. 7800/2016, do estado de Alagoas, julgada inconstitucional na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5537, de autoria da Contee, e para ações do MEC, respaldadas por alguns reitores, com vistas a transformar as universidades públicas em campo de silêncio absoluto, prontamente rechaçada pela Arguição de Descumprimento de Preceitos Fundamentais (ADPF) 548, da qual a Contee participou como amicus curiae. Destaque também para ameaças veladas e ostensivas, como as assacadas contra os ministros do STF Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes.
4 Em que pese a inominada gravidade desses atos e fatos, impensáveis em qualquer sociedade democrática, a toda evidência, a mais teratológica demonstração de menoscabo da liberdade em todas as suas dimensões, que simboliza o cenário de trevas em curso no Brasil, foram as inqualificáveis ações da diretora do histórico e acreditado Colégio Notre Dame (Associação Beneficente Previdência Azul), da cidade de Cuiabá, amplamente divulgada em âmbito nacional, quer por atos volitivos, quer por convenientes omissões e ‘descuidos’.
Primeiro, ao permitir que aula ministrada de forma remota fosse gravada e divulgada sem a devida autorização e muito menos conhecimento da professora vítima de toda a trama. Aula na qual, ao comentar temas constantes da programação pedagógica da instituição, meio ambiente e demarcação de terras indígenas, a docente fez críticas ao presidente Bolsonaro; críticas que, aliás, são correntes em todos os meios e formas de comunicação e constantes da agenda dos milhões que pugnam pela ordem democrática, que ele renega.
Segundo, por punir a professora com pena de suspensão de três dias, ao falso argumento de que ela fazia política partidária em suas aulas, o que é prontamente desautorizado pela realidade, haja vista a contundente oposição a esse desgoverno já, há muito, adquirir caráter nacional e para além de todas as siglas partidárias.
Terceiro, por aparente descuido ao permitir que essa punição ganhasse ampla publicidade, com o vil propósito de dar satisfação àqueles/as que, como a diretora, são avessos às liberdades democráticas em todas as suas dimensões; bem assim para que essa punição, em forma de execração pública, coibisse qualquer comentário que não fosse do agrado dos detratores da democracia, clube do qual a senhora diretora alcança lugar de proa.
Quarto, por submeter a realçada professora ao constrangimento de se desculpar publicamente por crime que ela não praticou, perante a sala de aula em que ela fez a citada crítica e a todos quantos tiveram acesso ao áudio contendo essa sessão de tortura psicológica.
Quinto, por, de forma intimidatória e cunho integralmente fascista, solicitar que avião da polícia militar pairasse sobre o pátio da escola, para dizer a professores/as e alunos/as que, no seu interior, não há lugar para liberdade de ensinar e aprender e pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, que são princípios constitucionais sobre os quais se assenta o ensino, conforme o Art. 206, II e III, da CF.
5 A gravidade da conduta da diretora sob realce — insista-se, avessa à liberdade, em todas as suas dimensões — acha-se circunstanciadamente demonstrada na “APRECIAÇÃO PRÉVIA” do procurador do Trabalho da Procuradoria Regional do Trabalho da 23ª Região — MT, Állysson Feitosa Torquato Scorsafava, na notícia de fato (NF) 000485.2021.23.000/0, convertido em inquérito civil, datado de 6 de setembro corrente, da qual se extraem os excertos abaixo transcritos:
“[…] A educação, mesmo quando ministrada por instituições privadas de ensino e ainda que por organização de tendência, é matéria de interesse público, cujos princípios são estabelecidos na Constituição Federal:
Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: […] II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; III – pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino;
A Constituição Federal concedeu expressamente aos professores uma especial proteção à liberdade de cátedra, destacando-a da liberdade de expressão intelectual, científica e de comunicação (art. 5º, IX) e da liberdade profissional (art. 5º, VIII), já garantidas às pessoas em geral em outros dispositivos. Fê-lo visando ao desenvolvimento dos alunos, cuja educação deve primar pela liberdade e pluralidade de ensino e aprendizado (art. 206, II e III, CF), protegendo o professor, no seu mister, de pressões indevidas tanto do Estado como de particulares, como o empregador, dada a eficácia horizontal dos direitos fundamentais.
A oponibilidade dessa garantia do docente contra o empregador privado é mesmo condição para que seja eficaz contra o Estado, pois ela de nada adiantaria se este, embora não pudesse constrangê-lo diretamente, pudesse fazê-lo mediatamente, pressionando o empregador para puni-lo.
A liberdade de cátedra, assim, é também uma proteção à própria instituição de ensino contra a interferência da sua comunidade ou de autoridades que conflite com o seu mandato constitucional de ministrar uma educação livre, plural e cidadã.
Como regra, críticas ao governo estarão albergadas na liberdade de cátedra, não sendo, em princípio, motivo para sanção disciplinar. Já a publicização, pela noticiada, do nome da trabalhadora e da sanção dada a ela está em desacordo com a vedação à divulgação de informações desabonadoras à conduta do empregado (art. 29, §4º, da Consolidação das Leis do Trabalho — CLT), o que lhe pode ser prejudicial tanto à honra (art. 5º, X, CF) como ao direito ao próprio trabalho (art. 6º da CF), em caso de necessidade de recolocação profissional.
O Ministério Público do Trabalho é instituição responsável, na seara trabalhista, pela ‘defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis’ (artigos 127 e 129 da Constituição da República Federativa do Brasil). O respeito à dignidade da pessoa humana nas relações de trabalho consiste em direito fundamental, devendo o empregador observar, para isso, as normas voltadas a implementar e proteger o trabalho digno, como aquelas que garantem a liberdade de cátedra do professor e resguardam a honra de qualquer trabalhador.
Os fatos denunciados consubstanciam, em tese, violação ao ordenamento jurídico, com ampla repercussão coletiva, o que autoriza a imediata intervenção do Ministério Público do Trabalho, com o escopo de melhor os averiguar e, se confirmada a ilicitude, proceder à responsabilização do seu autor e prevenção à sua repetição […]”.
6 Essa conduta, se não for prontamente enfrentada, com a adoção de medidas contundentes e eficazes compatíveis com os comandos constitucionais, com certeza contribuirá de forma determinante para sua disseminação e para o total esgarçamento do tecido social, sobretudo no âmbito escolar, que tem a sublime e árdua tarefa de preparar as crianças e jovens para o pleno exercício da cidadania (Art. 205 CF).
7 Dentre as possíveis medidas possíveis com vistas à punição dessa conduta — repita-se, nos estritos limites democráticos —desponta-se a declaração da inidoneidade da diretora que a urdiu e patrocinou, para o exercício do cargo, de competência do Conselho Estadual de Educação do Estado de Mato Grosso e do Conselho Municipal de Educação de Cuiabá, que pode ser solicitada pelo sindicato profissional, que é o Sintrae-MT.
8 Para além disso, urge que os sindicatos notifiquem todas escolas que, de forma ostensiva ou velada, adotam condutas semelhantes, sobre a inconstitucionalidade, ilegalidade, imoralidade e atentado à ética que as encerram.
*José Geraldo de Santana Oliveira é consultor jurídico da Contee