“Dizer que nós mulheres indígenas não enfrentamos violência de gênero é mentira”
Mulheres indígenas de todo o país sairão em marcha pela primeira vez para chamar a atenção para questões de gênero de seus povos. A decisão foi tomada durante o Acampamento Terra Livre, que terminou na última sexta-feira na capital federal. Elas se juntarão à Marcha das Margaridas, manifestação anual que ocorre todo o mês de agosto em Brasília, liderada por trabalhadoras rurais. “Queremos compor com as Margaridas para mostrar aliança”, contou Ro’Otsitsina Xavante, que, na diversidade do movimento de mulheres indígenas, é uma de suas porta vozes.
Durante o acampamento, as “parentas”, como elas chamam umas às outras, realizaram uma plenária para debater suas principais demandas. Organizaram-se separadamente por região do país e levaram, ao final, as pautas que pretendem defender. Temas pertinentes ao movimento indígena em geral, como a luta pela proteção e manutenção dos territórios e do meio ambiente, saúde e educação foram consenso entre as regiões e etnias. Já a questão da violência de gênero é uma bandeira que começou a ser fincada, ainda que de maneira mais tímida. “Nós mulheres não somos parte do povo, nós somos o povo”, afirmou Ro’Otsitsina. “Então, violando uma menina, violando uma mulher, você está violando o povo”. Confira os principais trechos da entrevista feita durante o acampamento:
Pergunta. Essa será a primeira marcha das mulheres indígenas?
Resposta. Aqui no Brasil, que eu saiba, nunca teve uma marcha. Mas existem várias organizações de mulheres indígenas. Aqui tem a Associação das Guerreiras Indígenas de Rondônia, tem a União das Mulheres Indígenas da Amazônia Brasileira, tem o Movimento de Mulheres do Xingu…
P. E quais são as questões pertinentes às mulheres indígenas? O que diferencia o movimento das mulheres do movimento indígena de maneira geral?
R. Algumas organizações de mulheres indígenas, como a Associação das Guerreiras Indígenas de Rondônia, que eu tenho acompanhado, têm como pauta não somente o que já tem no movimento misto, entre homens e mulheres, que é a defesa do território, o direito à saúde e à educação, mas também as especificidades. Por exemplo, a saúde da mulher tem muitas particularidades. Não é só mulher na questão do gênero, mas da mulher desde quando ela é menina, passando pela puberdade. A educação é uma questão em comum com o movimento misto, mas dependendo do povo, pode trazer questões específicas também. Por exemplo, tem povos onde as mulheres casam cedo, com 15, 16 anos. E nem todas permanecem na escola depois que casam. Não que seja proibido estudar, mas porque elas não conseguem conciliar o estudo com a casa e a família. Então como fazer com que essa jovem mulher indígena perceba que ela tem capacidade para fazer tudo? É difícil, mas é o melhor para ela e para a família.
P. Falando sobre casamento de meninas e adolescentes, como conciliar as pautas feministas respeitando os costumes de cada povo?
R. Para nós xavante, por exemplo, o que delimita a idade não é a fase de adolescência como está no Estatuto da Criança e do Adolescente. Se você chegar na minha comunidade e vir uma menina de 14 anos, você pode achar que ela é uma menina, uma adolescente, mas para nós ela já é uma jovem. A gente se divide por grupos etários, que mudam a cada cinco anos. Ninguém vai perguntar quantos anos você tem, mas sim qual o seu grupo etário. Os meninos, por exemplo, quando são crianças eles não têm a orelha furada, depois eles ficam em uma casa de reclusão e é quando tem a perfuração da orelha. Depois disso, não são mais meninos, tampouco adolescentes. São homens. Então ao menos no meu povo, não temos essa classificação de adolescentes.
P. A violência de gênero é uma pauta para as mulheres indígenas?
R. Sim. Dizer que nós mulheres indígenas não enfrentamos violência é mentira. Sim, existe, só que às vezes é uma violência velada. Às vezes camuflada pela própria mulher, às vezes pela família, ou pela liderança. Alguns povos ou algumas organizações de mulheres indígenas conseguem debater com mais consciência. Mas tem povos onde esse assunto é visto como tabu. Uma vez eu escutei uma fala de Elisa Pankararu, uma parente de Pernambuco, e ela falou “violência não foi deixada pelos meus ancestrais. Violência não é uma herança. Isso não pode ser visto como algo normal”. Se isso acontece, a mulher precisa reagir, a família precisa reagir e aquela comunidade também precisa reagir. Elisa, com essa fala, traz à tona a questão da responsabilidade. Nós mulheres não somos parte do povo, nós somos o povo. Então, violando uma menina, violando uma mulher, você está violando o povo. Ou seja, qualquer pessoa que faça mal a mim, que machuque fisicamente ou verbalmente a mim, ou a qualquer mulher, ele está fazendo algo contra o meu povo e a minha cultura.
P. Como é a discussão sobre o papel da mulher na sociedade indígena?
R. Eu acredito que é preciso falar sobre isso. Mas vejo como um processo. A cultura é dinâmica, não é estática. Talvez há 100, 500 anos, quando não existia o trabalho assalariado, o estudo fora da aldeia, falar sobre isso seria estranho até. Mas hoje, nós mulheres precisamos ter oportunidades iguais no processo educacional, no conhecimento. Precisamos ter o direito de escolha. Eu tenho 34 anos, não sou casada e não tenho filhos, mas eu tive escolha. Tem meninas que não tem. Mas eu tive escolha não porque eu tive uma personalidade feminina que me inspirasse ou que falasse sobre os meus direitos. Foi por uma personalidade masculina, meu pai. Quando eu tinha 14 anos eu queria namorar, mas meu pai não deixou. Ele disse que eu deveria estudar, trabalhar, ser independente. Ele disse “não quero que você dependa de um homem ou de qualquer pessoa para se vestir, se alimentar. Eu quero a sua independência, pessoal e profissional”. Na época eu achava um absurdo porque todas as minhas irmãs casaram, namoraram e eu nem podia namorar. Hoje eu percebo que meu pai estava com uma mente muito avançada para a época dele.
P. Por isso vocês convocaram os homens para que participem também da marcha? É preciso trazer os homens para dentro da discussão?
R. Com certeza. Precisa ter o apoio dos homens. Não adianta falar de Lei Maria da Penha só entre mulheres se o homem não está escutando. Porque a mulher vai estar empoderada, mas o homem vai dizer a ela que ela quer confrontá-lo. Acredito sim que há momentos em que a união é necessária, mas há momentos em que a gente precisa ficar em um espaço de confiança só entre mulheres. Até para poder se abrir sobre determinados assuntos.
P. Você disse que não há um movimento de mulheres entre os xavante. Ao mesmo tempo, você está aqui, em cima desse palco, liderando a plenária hoje.
R. Há mulheres que se destacam. Eu não me vejo como uma liderança. Me vejo como uma porta-voz. Porque há contextos culturais internos onde para ser líder é preciso passar por alguns processos.
P. E tem uma questão de hierarquia também?
R. Sim. E querendo ou não, tem a ver com uma questão familiar, de casar e ter filhos. E eu não quero ir para o confronto cultural por conta disso. Pelo contrário, cada um tem seu tempo. Eu vivo em dois mundos, o branco e o tradicional. E a gente que vive esse mundo mais para fora, acaba percebendo algumas coisas mais rápido do que quem está o ano todo diretamente na aldeia. Eu preciso então respeitar o tempo do outro, não posso chegar impondo. Por isso não me vejo como uma liderança de fato. Para mim, uma liderança feminina do meu povo é aquela que detém todo o conhecimento familiar de maneira geral, além do conhecimento político e estratégico. Eu tenho esse lado mais político, mas não tenho esse lado mais interno e familiar. Por isso me considero uma porta-voz para aquelas que não falam português. Quando eu chego na aldeia, elas perguntam o que está acontecendo na cidade. Aí eu digo: vamos comigo na próxima reunião. E elas dizem “ah, eu não quero. Mas quando você chegar, me conta?”. Então eu não posso chegar e obrigar, dizer que tem que ir, tem que participar. Ela quer ter informação, quer saber o que está acontecendo, mas não quer estar participando direto.
P. Uma das principais bandeiras do movimento feminista em todo o mundo é pela descriminalização do aborto. A realidade das mulheres indígenas sobre esse tema é diferente, claro, mas vocês chegam a discutir isso?
R. Pelo que eu tenho acompanhado, não chega a ser uma pauta prioritária.
P. Mas chega a ser debatido?
R. Pelo que eu tenho vivido, deve acontecer, mas não é exposto. Não chega nem a ser uma pauta.
P. Além de saúde, educação e a violência de gênero, o que mais é pauta do movimento feminista indígena?
R. Acredito que a questão territorial. A gente só vai conseguir ter educação e saúde se a gente tiver o nosso território e se tiver a sustentabilidade desse território. Não adianta ter o território demarcado se a gente não tiver segurança para viver nele.
“Dizer que nós mulheres indígenas não enfrentamos violência de gênero é mentira” L. Landau