É um equívoco utilizar unidades de saúde para atender a Educação Infantil?
Permitir que prédios das Unidades Básicas de Saúde (UBSs) e das Unidades de Pronto Atendimento (UPAs), já construídos e sem funcionamento, abriguem creches e escolas. Ou ainda que cumpram duplo atendimento como escolas e postos de saúde.
O Ministério da Saúde afirma que é preciso resolver a situação de 148 UPAS que estão com obras concluídas, mas sem funcionamento e de 979 UBSs. As unidades, conforme afirma o Ministério, foram apresentadas dentro do planejamento de saúde municipal e estadual, mas, devido à crise econômica não foram colocadas em uso.
Em nota, o Ministério afirma que caso não haja solução, o município deverá colocar o equipamento em funcionamento ou devolver os recursos gastos sob a pena de instauração de Tomada de Contas Especial (TCE).
A possibilidade é vista com preocupação pelos especialistas que pleiteiam a Educação Infantil de qualidade. O temor é que os parâmetros mínimos de atendimento da etapa sejam perdidos e as crianças sejam prejudicadas em sua formação.
Uma das críticas é sustentada pela representante da Rede Nacional Primeira Infância, Cisele Ortiz. “Não faz o menor sentido equipamentos inicialmente pensados para a saúde serem realocados para a educação. Esses espaços teriam que, minimamente, passar por reformas para se adequar às necessidades das crianças e uma das justificativas do Ministério é justamente a falta de orçamento dos municípios”, observa a especialista, que acredita que as intervenções podem ser mais custosas do que a operação das unidades.
Ortiz reforça a necessidade dos espaços terem não apenas salas para o atendimento, mas uma estrutura adequada para a alimentação, para a oferta de materiais pedagógicos e recursos, além de um espaço externo de qualidade. “As crianças precisam brincar ao ar livre, ter contato com a natureza. Teremos essa disponibilidade?”, questiona.
Para a especialista, a proposta do Ministério esbarra em uma questão ainda a ser superada no País, “a de que a creche é um direito”. “Quando se fala de crianças qualquer coisa continua servindo. De fato, elas não são prioridade do investimento público e, nesse contexto de cortes que tivemos a nível federal, são as mais prejudicadas, principalmente as pobres, das periferias das grandes cidades”, condena.
Ortiz é especialmente contra o uso compartilhado dos espaços como creches e unidades de saúde. “Como imaginar a coexistência de crianças saudáveis, em pleno desenvolvimento, mas ainda em uma situação de vulnerabilidade no que diz respeito às suas defesas orgânicas, com indivíduos que podem estar doentes?”, problematiza.
Soma ao posicionamento a integrante do Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil (Mieib), Soeli Carneiro, que vê na proposta “um grande equívoco do ponto de vista da gestão das políticas públicas”.
“Se essas unidades foram construídas para o atendimento do direito social à saúde, o que se espera dentro de um regime de colaboração é um esforço para colocá-las em funcionamento. É preciso considerar a demanda que levou à construção desses locais. Nada mais correto e adequado do ponto de vista da otimização do recurso público do que seguir o planejamento inicial das instalações”, pondera.
Para Carneiro, o equívoco cabe não só ao Ministério da Saúde como aos municípios que, por ventura, vierem a aderir à proposta. “O que precisamos é debater o uso do recurso público, pensar a expansão da rede de creches a partir da demanda, do direito das crianças e das famílias trabalhadoras, e não ocupar esses espaços e deixar a população sem atendimento em saúde”, atesta a especialista.
O Mieib publicou uma nota de repúdio à declaração do ministro Gilberto Occhi, por considerar a proposta “um grande retrocesso social diante dos avanços das últimas décadas para efetivação do direito à creche, parte indissociável da educação infantil, garantida legalmente e a ser ofertada em instituições educacionais específicas”.
No texto, o Movimento resgata diversos artigos da Constituição Federal que tratam do direito à educação infantil e da responsabilidade do Estado em promovê-la em instituições educacionais de oferta pública, gratuita, laica, inclusiva e de qualidade social. Também menciona o Plano Nacional de Educação (PNE) que prevê entre suas metas educacionais a expansão das redes públicas de educação infantil segundo padrão nacional de qualidade, bem como a garantia de atendimento a crianças de zero a cinco anos de idade em estabelecimentos alinhados a esses parâmetros.
O mal estar também é compartilhado por movimentos da área da saúde. A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), que representa mais de 39 mil pediatras no País, se posicionou em nota alegando “extrema preocupação” com o anúncio atribuído ao Ministério da Saúde. Para a associação, a exposição de crianças ao mesmo espaço físico em que são prestados atendimentos sanitários pode trazer riscos à saúde e ao bem estar infantil.
O texto fala em “exposição desnecessária” de crianças “em um ambiente no qual há grandes chances de circulação de vírus, bactérias e outros microrganismos que podem ser contagiosos, em especial para jovens com mecanismos de defesa ainda em processo de formação”. Também considera que “manter os alunos das creches tão próximos de pacientes em fase de tratamento ou mesmo em busca de atendimento de urgência, pode contribuir negativamente para seu desenvolvimento emocional e psicológico”.
No informe, a SBP “exige do Governo a elaboração de um projeto específico e coerente que melhore o acesso das crianças e suas famílias às vagas em creches ao invés de apostar em soluções improvisadas que podem gerar outros transtornos, ignorando-se questões sanitárias e epidemiológicas”.
Na mesma direção, reflete a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABrasco) que considera “infeliz” o início da atuação do ministro Occhi frente ao Ministério da Saúde. O presidente da Associação, Gastão Wagner, declarou que o uso múltiplo de prédios públicos como prevê o Ministério é feito em alguns países, diante um planejamento inicial. “O que eles querem, agora, é consertar um processo que foi encaminhado de forma errada”, declarou em nota.
Além dos riscos para as crianças, o especialista ressalta que o simples reaproveitamento dos prédios retarda ainda mais as falhas na assistência à saúde. “No Brasil falta cobertura em unidades básicas. Temos 30%, 40% das pessoas assistidas enquanto o ideal seria 80%”, observou.
“Uma simples ocupação não resolveria nada. Pode colocar a saúde de crianças em risco e adia a resolução de um problema histórico no País, que é a falta de acesso a serviços de atenção básica”.