Educação domiciliar e os risco da violência intrafamiliar
Senado deve observar que nem todas as crianças estão seguras dentro de casa
Por Luciana Temer, Advogada, professora da Faculdade de Direito da PUC-SP e presidente do Instituto Liberta
Tramita na Comissão de Educação do Senado o projeto de lei 1.338/2022, que se aprovado permitirá que os pais não mandem seus filhos para a escola. Explico. Trata-se da regulamentação da chamada educação domiciliar, cuja proposta tem a simpatia de boa parte dos senadores, provavelmente movida pelo sentimento de que a decisão sobre a vida dos filhos cabe aos pais.
Em que pese esse ser um entendimento prevalente na sociedade, pesquisa realizada pelo Datafolha no ano passado apurou que quase 80% dos brasileiros são contrários à educação domiciliar. Então, com toda essa rejeição, como o PL foi aprovado na Câmara dos Deputados e está em vias de ser aprovado na comissão do Senado sem grande alarde? Respondo. Porque, aos olhos da sociedade, do governo e do Parlamento, essa parece uma questão menos importante. Com tantas urgências, aprovar uma autorização para que os pais decidam a forma de seus filhos estudarem soa como algo menor. Mas não é! E não é por várias razões. Mas vamos focar em apenas uma: a segurança dessas crianças.
Se olharmos para os dados de registros policiais de 2022 referentes a crimes praticados contra crianças e adolescentes no contexto da relação familiar, veremos que houve 22.527 denúncias de maus-tratos e 15.370 de lesão corporal dolosa. Para além da violência física e psicológica, o Brasil bate recordes de violência sexual. Foram 40.659 denúncias de estupro de crianças menores de 13 anos, sendo que em 44,4% dos casos o crime foi praticado por pai ou padrasto dentro de casa (dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023). E esses números assustadores são só a ponta do iceberg, conforme indica pesquisa encomendada pelo Instituto Liberta ao Datafolha: apenas 11% dos adultos entrevistados que sofreram violência sexual antes dos 18 anos denunciaram.
Como se vê, nem todas as crianças estão seguras dentro de casa. Aliás, foi justamente o reconhecimento de que a violência contra crianças é cometida preponderantemente por familiares que moveu o Congresso Nacional a aprovar, no ano passado, a Lei Henry Borel.
Sabemos que o fato de a criança frequentar a escola não resolve a questão inicial da violência, mas gera a possibilidade de ser interrompida, seja por um pedido de socorro ou porque algum adulto (de fora do círculo familiar) percebe e denuncia. Ainda não temos no Brasil dados sobre quantas dessas denúncias chegam pela escola, mas sabemos que são muitas. Essa, inclusive, é uma das conclusões extraídas do estudo realizado por Ministério Público de São Paulo, Unicef e Instituto Sou da Paz, que mostrou que o fechamento das escolas, em razão da pandemia, repercutiu em uma queda significativa de registros de estupro de vulnerável no estado.
Mas será que é mesmo preciso que a criança vá para a escola todo dia para que a denúncia de violência aconteça? Parece que sim. Ao menos é o que sugere a pesquisa realizada em 2021 pela Fundação José Luiz Egydio Setúbal e Instituto Galo da Manhã sobre a percepção social da violência intrafamiliarcontra crianças e adolescentes. Dentre os entrevistados, 64% não fariam nada se vissem uma pessoa na rua dando puxões de orelha ou palmadas em uma criança, porque, afinal, ela pode ter feito algo considerado errado pelos pais. Tudo indica que a máxima “em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”, contra a qual lutamos nos últimos anos, infelizmente continua valendo para a violência praticada pelos pais contra seus filhos. A verdade é que, quando a criança não vai para a escola, a chance de alguém ver e denunciar diminui muito.
Hoje, apesar da prática do homeschooling ser proibida, temos cerca de 35 mil famílias educando em casa. Amanhã, se a lei for aprovada, não sabemos quantas teremos.
Importante ressaltar que não estamos aqui demonizando famílias que educam ou que pretendem educar seus filhos fora da escola —temos certeza de que a maioria delas deve ser ótima e cuidar muito dessas crianças. O que estamos dizendo é que somos todos responsáveis pela integridade de cada criança neste país e, se a aprovação da educação domiciliar coloca uma (nem que seja só uma), em situação de maior risco, ela não pode ser aprovada!