Em nova fala sobre coronavírus, Bolsonaro calibra tom, mas segue sem defender isolamento social

Mandatário se viu isolado politicamente e afastado até do aliado Trump na luta contra doença. Presidente distorceu fala de diretor-geral da OMS. Panelaços soaram em várias cidades brasileiras

Uma semana depois de fazer um pronunciamento na TV negando a gravidade do novo coronavírus, o presidente Jair Bolsonaro voltou às telas brasileiras nesta terça-feira com um tom algo mais moderado sobre a pandemia. Saíram as menções à “gripezinha”, como ele havia se referido à doença, os ataques à imprensa e as ironias a prefeitos e governadores que haviam determinado medidas de isolamento social para conter a velocidade de contágios. O que apareceu desta vez foi um presidente que tentou se por à frente do combate da doença, citando especialmente que empregará as Força Armadas na tarefa, que chamou de “desafio da geração”. Ele também mencionou as perdas de vidas que serão ocasionadas pela Covid-19. Como costuma fazer, no entanto, seguiu acenando à sua base radical: não mencionou nem uma vez a importância de reduzir a circulação social para conter o avanço da doença, como martelam as autoridades do Ministério da Saúde e da OMS (Organização Mundial da Saúde): “Temos uma missão, salvar vidas, sem deixar para trás, os empregos”, equiparou. Como se tornou praxe há duas semanas, o pronunciamento foi acompanhando por panelaços em várias cidades brasileiras.

Nos últimos dias, Bolsonaro tem registrado seguidas perdas de apoio político, inclusive internamente no Governo. Ao contrário de vários líderes mundiais, ele segue insistindo que só deveriam ficar isolados os idosos e as pessoas que apresentem alguma doença grave. Até mesmo o americano Donald Trump, em quem ele se inspira, mudou de ideia e tem defendido ações drásticas de isolamento até o final de abril. Uma das estratégias da cúpula bolsonarista e do próprio presidente tem sido estimular circulação de notícias falsas e desinformação a respeito do novo coronavírus. Nesta terça-feira pela manhã, Bolsonaro decidiu selecionar um trecho de uma declaração do diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom, para dar a entender que o executivo da organização defende o fim do isolamento social em nome da proteção de emprego e renda. O próprio Adhanom veio a público para responder ao brasileiro, reafirmando a defesa das medidas restritivas ao lado do desenho de políticas para proteger os mais vulneráveis. No entanto, mesmo assim, Bolsonaro usou apenas o trecho que lhe interessava na TV.

Numa fala que também foi dirigida à população mais pobre, o presidente citou a sua preocupação com os empregos de diversas categorias, “como vendedores ambulantes, camelôs, vendedores de churrasquinho, diarista, ajudante de pedreiro, caminhoneiro e outros autônomos”. Bolsonaro, no entanto, ainda não sancionou um projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional que destina até 1.200 reais por família que ficar desassistida em decorrência da pandemia da Covid-19. Por ser dia 31 de março, dia do golpe militar, havia a expectativa de que o presidente falasse sobre a tomada de poder pelos militares em 1964, mas ele não o fez. Decidiu fazer uma sinalização aos militares e elogiar as ações das Forças Armadas no combate ao coronavírus. Politicamente, ele tem se sustentado cada vez mais em seu núcleo militar, ainda que haja fissuras fora do grupo que ele acolheu no Planalto. Uma eventual saída dele da presidência, ainda sem prazo definido, tem sido discutida internamente pela cúpula militar, que já informou ao vice-presidente Hamilton Mourão (PRTB) que o apoiaria, em caso de assunção à chefia do Executivo.

Maior salto em um único dia

Enquanto analistas discutem quanto a conduta errática do presidente atrapalha o país no combate à Covid-19, os números da pandemia escalam. O pronunciamento do presidente foi ao ar horas depois de uma entrevista coletiva dada pelo ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, na qual ele anunciou o maior aumento diário no número absoluto de casos confirmados de coronavírus no país em um dia. Foram 1.138 novas infecções confirmadas nesta terça-feira, 20% do total acumulado desde o dia 25 de fevereiro, quando foi identificado o primeiro caso da doença no país.

Com base nos dados mais recentes do Ministério da Saúde, o Brasil soma agora 5.717 confirmados e 201 mortes pela Covid-19. O aumento representativo desta terça-feira pode estar relacionado à fila para processamento de testes nos laboratórios. Há relatos de demora de até 10 dias para a obtenção dos resultados, o que impacta as estatísticas. Mandetta também voltou a defender o isolamento social como importante ferramenta para frear a disseminação do vírus, outro ponto de divergência entre ele e Bolsonaro, que alardeia o isolamento vertical -que carece de estudos atestando sua eficácia. “No momento vamos fazer o máximo de isolamento social e incentivo ao homeworking possível”, afirmou. Ele não descarta, no entanto, mudanças nesta política, “quando chegar o momento de falar ‘estamos mais preparados’, vamos liberando e controlando pela epidemiologia. Vai ser um trabalho de muita precisão”.

Em São Paulo, epicentro da doença no país, a situação também preocupa. O Estado registrou de segunda para terça-feira 23 novas mortes, quase uma por hora, totalizando 136 óbitos relacionados ao Covid-19, de acordo com a Secretaria de Saúde. Trata-se do maior aumento em números absolutos já registrado. Para Mandetta, a situação de São Paulo tem algumas especificidades: “Mais de 80 dos 136 mortos registrados no Estado ocorreram em um mesmo hospital, que é ligado a um plano de saúde que só atende idosos”.

El País

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