Entidades da educação manifestam preocupação com proposta do Auxílio Criança Cidadã

Apontando recomendações ao Projeto de Lei de Conversão nº 26/2021 (MP 1.061/21), RNPI, Mieib, Undime, Uncme e Campanha Nacional pelo Direito à Educação assinam a nota conjunta

Leia abaixo a nota conjunta de RNPI (Rede Nacional Primeira Infância), Mieib (Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil), Undime (União dos Dirigentes Municipais de Educação), Uncme (União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação) e Campanha Nacional pelo Direito à Educação sobre o Auxílio Criança Cidadã – em defesa da creche como instituição educacional. O documento aponta preocupações quanto ao Projeto de Lei de Conversão nº 26/2021 (MP 1.061/21, editada pelo Governo Bolsonaro) e faz recomendações à proposta. A nota pode ser lida em PDF aqui.

Nota conjunta RNPI/MIEIB/UNDIME/UNCME/CAMPANHA NACIONAL PELO DIREITO À EDUCAÇÃO sobre o Auxílio Criança Cidadã – em defesa da creche como instituição educacional

As organizações signatárias desta Nota Conjunta, que sustentam princípios estruturantes para uma sociedade justa e igualitária, vem reafirmar o compromisso com a educação pública, gratuita, laica, inclusiva, com qualidade social, manifestar preocupação e fazer recomendações sobre a proposta do Auxílio Criança Cidadã.

O Auxílio Criança Cidadã, inserido no conjunto de ações do Programa Auxílio Brasil, constante do Projeto de Lei de Conversão nº 26/2021 (MP 1.061/21) objetiva possibilitar o acesso da criança com idade de até 48 meses a creches regulamentadas ou autorizadas, em tempo integral ou parcial, que não obtenha vaga na rede pública ou conveniada de educação próxima de sua residência ou do trabalho de seus pais ou responsáveis (art. 8º).

O Projeto de Lei de Conversão estabelece várias determinações sobre a operacionalização do Auxílio Criança Cidadã, e encaminha ao regulamento a definição de outras normas operacionais. Visando a que esse regulamento seja elaborado em consonância com as disposições constitucionais e legais relativas à educação, pontuamos as seguintes premissas e proposições:

1. A creche é uma instituição educacional, como asseveram a Constituição Federal, que a insere formal e explicitamente no capítulo da Educação (arts. 205 e 208, IV) e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB, Lei 9.394/96 (arts. 29 e 30). Por isso, deslocar decisões sobre creche para o âmbito das competências da Assistência Social configura retrocesso à época em que a creche era uma instituição de amparo e de custódia. Além de inconstitucional e ilegal, seria um prejuízo incalculável para a educação da criança na fase da vida mais decisiva para a formação das estruturas psicoafetivas, sociais e cognitivas.

2. A educação infantil, realizada na creche e na pré-escola, é a primeira etapa da educação básica (LDB, arts. 21, I e 30, I) e é nesse conjunto indissociável que ela adquire a plena significação educacional.

3. Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, a creche passou a ser da competência dos sistemas de ensino (CF art. 211), e como tal foi reafirmada pela LDB (arts. 8º e ss). Estes são responsáveis pela formulação e implementação da política educacional e pela gestão administrativa, técnica e financeira dos recursos destinados ao cumprimento do direito à educação e o correspondente dever do Estado em garanti-la a todas as crianças. Os sistemas municipais de ensino compreendem, entre outras, as instituições de educação infantil públicas e privadas (LDB art. 18). O Auxílio Criança Cidadã (arts. 8ª a 14 do Projeto de Lei de Conversão 26/2021) visa ao acesso à creche em estabelecimento que ofereça educação infantil e “será pago diretamente pelo ente federado subnacional responsável pelo convênio para a instituição educacional conveniada em que a criança estiver matriculada” (art. 8º, caput). O ente subnacional, na esfera municipal, responsável pela educação é a Secretaria de Educação. Portanto, para não infringir em inconstitucionalidade e ilegalidade, os recursos do Auxílio Criança Cidadã deverão ser transferidos às Secretarias Municipais de Educação e, por estas, à instituição educacional na qual a criança estiver matriculada, observando para isso a Lei 13.019, de 2014 – Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil – MROSC.

4. De igual modo, as instituições de educação infantil conveniadas com as Secretarias Municipais de Educação devem atender aos requisitos de qualidade estabelecidos pelo Ministério da Educação no documento Critérios para um Atendimento em Creches que Respeite os Direitos Fundamentais das Crianças (2009). Ademais, tanto instituições públicas quanto aquelas que são conveniadas com o poder público devem apresentar padrões mínimos de qualidade no atendimento de bebês e crianças pequenas.

Diferentes documentos nacionais, entre os quais destacam-se: a “Política Nacional de Educação Infantil: pelo direito das crianças de zero a seis anos à educação” (BRASIL, 2005); “Parâmetros Nacionais de Qualidade para a educação infantil” (BRASIL, 2006a), “Parâmetros Básicos de infraestrutura para instituições de educação infantil” (BRASIL, 2006b) e Parâmetros Nacionais de Qualidade da Educação Infantil (BRASIL, 2018) consideram que a qualidade no atendimento educacional em creches e pré-escolas compreende, entre outros fatores, profissionais habilitados (com formação docente), espaços adequados e que permitem a realização, com inteireza, de práticas de cuidado e educação; materiais e mobiliários que favoreçam o desenvolvimento das crianças; propostas pedagógicas condizentes com as concepções de criança, currículo e função sociopolítica da educação infantil.

5. As Secretarias Municipais de Assistência Social e de Educação deverão estabelecer cooperação técnica para a operacionalização do Auxílio Criança Cidadã, assegurando-se que a Secretaria de Educação, como gestora dos recursos, os empregue em perfeita coerência com a política nacional de educação infantil no âmbito da municipalidade, nos termos da legislação educacional vigente (LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional; Lei 13.257/2016 – Marco Legal da Primeira Infância; Resolução CNE/CEB nº 5/2009 – Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil; Lei nº 13.005/2014 – Plano Nacional de Educação 2014-2024; Resolução CNE/CP nº 2/2017 – Base Nacional Comum Curricular, e, por fim, o recém aprovado Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação – Fundeb. Esta última normativa incluiu o CAQ – custo aluno-qualidade – como referência quando da construção, adequação, reforma e elaboração da proposta educacional.

6. Esta é uma ocasião oportuna para avançar na intersetorialidade da política pela primeira infância, tal como determina o Marco Legal da Primeira Infância (art. 4º) e o próprio Projeto de Lei de Conversão sobre o Auxílio à Criança Cidadã. Na abordagem intersetorial, os diversos setores participam com as suas respectivas especialidades, atuando articuladamente de maneira a realizarem um atendimento integral e integrado às crianças.

7. Faz-se necessário que as organizações signatárias dessa Nota Conjunta se mobilizem, com presença atuante e cooperante, junto às Secretarias Municipais de Educação e de Assistência Social, com o objetivo de orientar o repasse dos recursos para as Secretarias de Educação, já que estas são as responsáveis pela regulamentação e oferta pública de educação infantil.

8. Na regulamentação do Auxílio Criança Cidadã e na sua implementação, que haja o cuidado necessário no sentido de respeitar e manter os avanços na política educacional, quais sejam: a promoção da melhoria da qualidade da educação, da integralidade do processo educativo (desde o nascimento até o final do ensino médio) e da equidade nas condições de aprendizagem e desenvolvimento infantil. O papel da educação na promoção integral da pessoa e na redução das desigualdades sociais só pode ser cumprido se se garantir às crianças que vivem em situações de vulnerabilidade as mais férteis oportunidades de experiências educativas.

9. Alertamos aos gestores das políticas públicas, às organizações não governamentais e aos especialistas que atuam na área da Primeira Infância sobre o risco de ruptura da unidade da política educacional relativa à creche caso as condições acima descritas não forem seguidas, e instamos para que contribuam efetivamente de modo a evitar que:

• se crie uma linha de atendimento educacional às crianças na faixa etária de 0 a 48 meses paralela aos sistemas de ensino;
• a educação básica seja fragmentada por um atendimento que seja alheio à política de educação infantil gerida pela Secretaria Municipal de Educação;
• o atendimento educacional oferecido pela instituição privada às crianças beneficiadas pelo Auxílio Criança Cidadã seja de qualidade inferior ao da rede pública ou já conveniada;
• o valor do Auxílio Criança Cidadã, menor do que o do Fundeb para a creche em tempo parcial e em tempo integral, seja motivo para ofertar educação de baixa qualidade para as crianças das famílias do Auxílio Brasil, o que agravaria, ainda mais, as desigualdades educacionais e seria fator de maior injustiça social para com as famílias mais vulneráveis.

Diante do exposto, reiteramos nossa preocupação com os efeitos do Projeto de de Lei de Conversão nº 26/2021 e seus desdobramentos sobre a oferta pública de vagas na educação infantil. Manifestamo-nos contrários a qualquer ação, intenção ou programa que esteja na contramão dos direitos das crianças à educação pública, gratuita, laica, inclusiva, com qualidade social. Por fim, colocamo-nos, como sempre estivemos, à disposição dos governos municipais, em diálogo e cooperação, para encontrar a maneira mais eficiente e eficaz de garantir a oferta de vagas em creches com padrões de qualidade para todas as crianças residentes no território nacional.

Brasília, 13 de dezembro de 2021

Assinam

RNPI (Rede Nacional Primeira Infância)
Mieib (Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil)
Undime (União dos Dirigentes Municipais de Educação)
Uncme (União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação)
Campanha Nacional pelo Direito à Educação

Campanha

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