“Entre Sombras e Memória”: Manoel Rangel discute ditadura, cinema e democracia no Contee Conta

Na última segunda-feira (7), o Programa Contee Conta promoveu uma das conversas mais significativas do ano ao reunir arte, política e memória em um só palco. Sob o tema “Entre Sombras e Memória: A Batalha da Rua Maria Antônia e os Ecos da Ditadura na Atualidade”, o episódio trouxe como convidado o renomado produtor de cinema Manoel Rangel, em uma reflexão potente sobre os efeitos duradouros da ditadura militar na sociedade brasileira e o papel do cinema como ferramenta de resistência.

O debate, conduzido por Gilson Reis, coordenador-geral da Contee, e pela jornalista Romênia Mariani, abordou temas centrais como a preservação da memória histórica, os desafios contemporâneos à democracia e a potência do cinema como meio de transformação social.

A arte como trincheira democrática

Logo na abertura, Gilson Reis destacou o valor simbólico e político da cultura e do cinema em momentos de instabilidade democrática. Ele relembrou o sucesso internacional do filme “Ainda Estou Aqui”, que escancarou as feridas da ditadura para o Brasil e o mundo.

“Não poderia deixar de iniciar esse nosso bate-papo sem remeter a ‘Ainda Estou Aqui’, esse filme que ganhou repercussão mundial, um filme que trouxe para a sociedade brasileira e internacional o tema da ditadura militar. Estamos em um momento em que, no Brasil, a cultura e o cinema têm um papel fundamental em combater as ameaças à democracia, especialmente após a tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023”, afirmou Gilson.

A fala abriu caminho para que Manoel Rangel, ex-presidente da Ancine e uma das vozes mais respeitadas do audiovisual brasileiro, destacasse a importância do engajamento político e educacional dos profissionais da cultura:

“Ter a oportunidade de conversar com trabalhadores em educação é muito especial, pelo que representa essa luta em defesa da democracia no Brasil. Conheço a atuação da Contee e reconheço sua importância nesse processo”, declarou.

Ele também celebrou o sucesso do cinema nacional, destacando o impacto de Ainda Estou Aqui, que atraiu mais de 6 milhões de espectadores. Para Rangel, o Brasil vive o maior período democrático de sua história, apesar dos retrocessos e ameaças, como o impeachment da presidenta Dilma Rousseff e os ataques ao processo eleitoral em 2022.

O cinema como guardião da memória

Durante o debate, Rangel enalteceu a importância de filmes que dialogam com a memória coletiva brasileira, como “Ainda Estou Aqui” e “A Batalha da Rua Maria Antônia”, que resgatam capítulos muitas vezes apagados da história recente do país.

“Esses filmes são fundamentais para manter viva a memória sobre o que representaram os 21 anos de ditadura militar, que interromperam a vida democrática e atravancaram o desenvolvimento político, econômico e social do Brasil”, defendeu.

Ao detalhar os bastidores da produção do filme sobre a Batalha da Rua Maria Antônia, episódio histórico de 1968 que opôs estudantes da USP e militantes do Comando de Caça aos Comunistas, Rangel evidenciou como o contexto político brasileiro influenciou diretamente na retomada do projeto.

“O filme foi construído durante um longo período. A ideia da Vera, que é a diretora, Vera Egito, de muito talento, foi concebida pela primeira vez em 2010. Foi nesse ano que ela começou a escrever o roteiro e estruturar o projeto do filme. A construção passou por vários altos e baixos até que, em 2018, eu entrei no projeto, já após ter deixado a presidência da Agência Nacional do Cinema”.

Ele ressaltou que o ano de 2018 marcou uma virada na relevância do projeto: “Em 2018, o filme ganhou mais importância do que em 2010, porque o cenário político do Brasil, com as ameaças à democracia, estava mais evidente. E isso só fortaleceu a necessidade de contar essa história”.

Estética e linguagem cinematográfica como instrumentos de imersão

O produtor explicou ainda as decisões artísticas que aproximaram o espectador dos fatos históricos de maneira visceral. A opção por filmar em 16mm e utilizar 21 planos-sequência foi estratégica:

“Essa opção de planos-sequências fez com que a narrativa fosse mais imersiva, como se o espectador estivesse vivendo aqueles eventos junto com os personagens. O filme acompanha a intensidade de um único dia e noite, durante a batalha, e isso foi crucial para a construção da atmosfera do filme”, explicou.

O resultado tem emocionado especialmente o público jovem, comprovando que a arte continua sendo uma ponte entre gerações para o resgate da memória e da resistência.

Cinema e educação: um elo ainda por fortalecer

Um dos momentos mais impactantes do debate foi a discussão sobre o potencial pedagógico do cinema brasileiro. Gilson Reis trouxe à tona a necessidade de aproximar ainda mais a cultura do ambiente escolar: “O cinema tem um potencial pedagógico gigantesco que precisa ser mais explorado nas escolas, tanto públicas quanto privadas”, afirmou o coordenador da Contee.

Rangel endossou a proposta com entusiasmo: “É fundamental que os jovens tenham contato com a nossa produção artística, incluindo o cinema, que é uma forma poderosa de educar e estimular a reflexão crítica”.

Interiorização cultural: para além da infraestrutura

O produtor também destacou a urgência de políticas públicas voltadas para a interiorização da cultura, como o programa Cinema Perto de Você, e lembrou que democratizar o acesso vai além de construir salas de exibição:

“O que é preciso é haver uma orientação do governo federal, que ajude esses municípios a caminharem junto com os governos do Estado nas construções dessas ações, de forma que a gente tenha mais brasileiros tendo acesso à produção artística e cultural”.

E fez um alerta sobre o papel das produções locais: “Não é só levar um filme para o interior, é entender o que significa para essas populações ver sua própria história, sua própria cultura refletida no cinema e nas artes. A valorização das culturas locais é fundamental para que todo o país se reconheça como parte de um todo”.

Formação cultural como estratégia nacional

Rangel foi categórico ao afirmar que a formação de artistas e educadores culturais deve ser tratada como prioridade estratégica para o desenvolvimento do país: “Investir na formação de artistas e de educadores culturais não é um luxo, é uma necessidade estratégica para o desenvolvimento do Brasil. A educação cultural é um elemento vital para que as futuras gerações possam desenvolver uma relação crítica com o que consomem, mas também para que eles se sintam pertencentes a essa cultura”.

A necessidade de justiça e o futuro da cultura brasileira

Ao abordar os crimes da ditadura e os ataques recentes à democracia, Rangel foi direto: “É preciso punir aqueles que financiaram os golpes e atentaram contra a democracia”. E finalizou com uma convocação: “O que é preciso é haver uma aliança férrea, uma ampla unidade de todos aqueles que acreditam na democracia, que acreditam na liberdade, que desejam a igualdade – mais até do que desejar a igualdade, que desejam a superação da profunda desigualdade brasileira. Educação, cultura e produção artística são indispensáveis ao desenvolvimento dos nossos jovens. É a matéria-prima de que se constrói o futuro, de que se constrói o Brasil”.

Perspectivas otimistas e novas produções

Com um olhar otimista, Rangel destacou o prestígio internacional que o Brasil vem reconquistando: “Eu acredito, o Brasil é um país de grandes dimensões, com um povo incrível, nós temos uma história incrível. O Brasil é amado por toda parte, reconquistou em grande medida o seu prestígio internacional. Há muita curiosidade sobre o Brasil no mundo e, portanto, acredito que temos grandes oportunidades pela frente”.

E reforçou a importância da arte nesse processo: “A cultura, o cinema, terá sua contribuição nesse processo. Nossos filmes continuarão viajando, vão ter bons resultados em festivais internacionais, bons resultados de audiência, e a gente vai, então, seguindo essa batalha de afirmação do nosso país, de afirmação da nossa democracia, de afirmação da nossa cultura”.

Produções recentes e recomendações culturais

Rangel também compartilhou novidades, como a minissérie “Maria e o Cangaço”, que retrata a força das mulheres no cangaço, especialmente Maria Bonita. E recomendou as séries “Grande Sertão” (Disney+) e “DNA do Crime” (Netflix), que reafirmam o compromisso do audiovisual brasileiro com a cultura nacional.

Encerrando o encontro, ele reforçou a missão coletiva: “A arte é a chave para a transformação. Nosso compromisso é com a educação, com a cultura e com a construção de um futuro melhor para o Brasil”.

Por Romênia Mariani

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