Escolas cívico-militares: seria uma solução para a educação do Brasil?
Por Maria Clotilde Lemos Petta e Daniela Zanchetta*
A política educacional do governo Bolsonaro tem sido marcada por um ataque sem precedentes à educação, à ciência, à cultura e aos professores. Entre esses ataques coloca-se a proposta de criação e expansão de um modelo de escola,cívico-militar para instituições de educação básica municipal, estadual e distrital. Essa iniciativa, que tem sido propagada pelo atual governo como solução aos problemas educacionais, é alvo de muitos questionamentos pelos/as pesquisadores/as da educação, pelos/as professores/as e pelos/as estudantes. As críticas atingem desde o projeto pedagógico e o viés ideológico até o caráter eleitoreiro tipicamente fascista, que não responde às reais necessidades da educação brasileira.
Entre os educadores, destacamos as manifestações do sociólogo e educador espanhol Miguel Arroyo. Para ele, há perguntas a serem feitas no debate sobre a militarização das escolas. “Por que há violência nas escolas e qual ideal de educação temos?”, questiona. O educador explica o modelo de escolas militarizadas como parte integrante de uma política vigente de “criminalização dos mais pobres”, que questiona as estruturas democráticas, sobretudo as escolas, a partir de um discurso de medo, exceção e ameaça.
No entanto, a narrativa governista consegue a adesão de famílias brasileiras, compreensível em face da precarização das escolas públicas e dos altos índices de violência nas periferias das cidades. É preciso fomentar esse debate para maior esclarecimento. O primeiro desafio que temos é que há, no imaginário das pessoas, a ideia (muitas vezes equivocada) de que escolas militares sejam melhores. E esse argumento está pautado em três pilares: qualidade, valores, segurança. Sabemos que há no imaginário coletivo, que nem sempre tem respaldo na realidade, a concepção de que escola militar, por ter uma disciplina rígida, vai garantir respeito, que esse respeito vai assegurar melhoria da qualidade e que o fato de ser militar garante um tipo de segurança. A necessária desconstrução dessa lógica exige analisar os três pilares referidos.
No que se refere à questão da qualidade, é preciso considerar que estudos sobre os fatores que explicam o bom rendimento dos alunos de escolas públicas de excelência, quer seja militarizadas ou não, demonstram que o êxito escolar ocorre em função tanto das condições especiais de ingresso e escolha dos alunos, como das características estruturais da instituição e condições de trabalho dos professores (carreira e salários) Como evidenciam dados do próprio Ideb, há exemplos de escolas públicas não militares com dados de excelência, a exemplo dos antigos Cefets e atuais Institutos Federais e dos Colégios de Aplicação ligados às universidades federais. Pesquisas sobre escolas militares brasileiras revelam que os 13 colégios militares tidos como excelência de qualidade estão atrás de 400 escolas públicas que têm índices melhores que eles, sendo que o valor gasto com cada aluno, nesses colégios, é três vezes maior do que com quem estuda em escola pública regular. Estima-se que são R$ 19 mil reais por estudante, e professores com salários que ultrapassam R$ 10 mil reais. Enquanto isso, no setor público, o valor investido anualmente é em média apenas R$ 6 mil por estudante, com professores que recebem apenas o valor do piso. Portanto, esse argumento da qualidade não é necessariamente verdadeiro. Além disso, cabe considerar que o número previsto de escolas militarizadas é insignificante em relação às 181,9 mil escolas de educação básica do Brasil (Censo Escolar 2018). A militarização é proposta como um modelo de “escolas de alto nível”, às quais serão garantidas as condições diferenciadas efetivas para o funcionamento, enquanto as demais escolas das redes públicas regulares padecem em precárias condições.
As experiências de militarização de escolas que vêm acontecendo em várias regiões do Brasil estabelecem um modelo de escolarização excludente e seletivo, se caracterizando como uma escola pública elitizada. Entre as situações que contribuem para que esse modelo de escola seja destinado apenas aos estudantes com melhores condições socioeconômicas, podemos citar: grave índice de retenção, reserva de vagas para filhos dos militares, obrigação de uso de uniformes caros e contribuições mensais das famílias.
Nesse modelo escolar, na medida em que é atribuída aos policiais a gestão administrativa e a responsabilidade de disciplina dos alunos, se estabelece uma cultura institucional semelhante às instituições militares, cujo fim principal é formar jovens para a guerra. Fica também implícita a desvalorização da formação pedagógica de profissionais (professores e gestores) e a atribuição da “responsabilização” dos professores pelos problemas atuais das escolas públicas. É uma das medidas adotadas pelo atual governo no sentido da desconstrução de toda a luta por uma educação pública de qualidade desenvolvida no Brasil desde meados do século passado.
Cabe também considerar que vivemos hoje o avanço de uma onda conservadora na sociedade. E é nesse contexto que imaginamos que deve haver, por parte de algum cidadão, a defesa de valores tradicionais, que são defendidos também pelas escolas militares: uma disciplina militar rígida, farda ou vestuário conservador, corte de cabelo curto para os meninos, para as meninas coque ou rabo de cavalo, proibição de brincos, pulseiras etc. No entanto, estudos demonstram que a disciplina rígida baseada no medo não garante que os alunos desenvolvam consciência do certo e errado. Ele acata, mas não significa que assimile; pode inclusive ocorrer o contrário: se sentir tão reprimido e se rebelar! Assim como esses valores não asseguram que isso se reflita em melhor aprendizado, pergunta-se ainda: de qual tipo de aprendizado estamos falando? Daquele que executa ordens? Ou daquele que permite ter ideias, ser criativo, tomar decisões? A escola necessária nos dias atuais deve dar espaço para as atividades criativas e para a formação de crianças e jovens capazes de solucionar problemas com base no diálogo e no respeito às regras democráticas, com valores, princípios e regras de respeito a todos os seres humanos.
Outra questão que temos que considerar é que já vivemos, por diversas razões, um número crescente de doenças mentais, como depressão, e até suicídio entre crianças e jovens. Relatos de crianças que participaram de implantação desse modelo militar revelam grande ansiedade, depressão e medo por conta da rigidez. O que realmente queremos para nossos filhos, para nossas crianças? Que eles desenvolvam medo, que sejam enquadrados em caixinhas? Ou que eles vão para a escola e tenham mais possibilidades de desenvolvimento pleno?
Segurança
Aí entra o terceiro pilar, o da segurança. Há uma preocupação enorme dos pais com relação à segurança dentro das escolas. Realmente é algo com que devemos nos preocupar. Mas será que levando a autoridade, a “polícia” para dentro da escola, estamos garantindo a segurança? Não seria melhor que o espaço da escola assegurasse maior acolhimento e até refúgio a crianças que muitas vezes já estão em situações de risco em suas casas e bairros? Adotar a escola militar é assumir que a educação falhou como transformadora da sociedade; é assumir a falência da escola! E isso seria muito triste e grave.
Pensamos que esses três aspectos formam então os pilares de um pensamento equivocado sobre as mudanças necessárias à educação. E temos o papel de procurar debater e esclarecer sobre esses pontos.
Resistência
Nessa perspectiva, é importante a compreensão de que o projeto de militarização das escolas públicas se insere no projeto neoliberal de privatização da educação, com intenção de tirar a responsabilidade do Estado em subsidiar e garantir educação para todos. O projeto de militarização atende à mesma lógica de outras propostas privatistas, como a de homechooling. Considerando então todos os ataques do governo à educação, percebemos que essa proposta de escola militarizada vem carregada de viés ideológico, de defesa de uma educação limitadora, castradora, autoritária e disciplinadora, que valoriza a cultura da ameaça e do medo, contrária à liberdade, e que acaba prejudicando o processo de ensino-aprendizagem.
A educação que o Brasil precisa é plural, democrática, com escolas públicas que possibilitem o acesso dos estudantes aos conhecimentos historicamente acumulados, mas também estejam abertas à criatividade e à elaboração de experiências dos estudantes. Essa não é uma batalha isolada da luta dos trabalhadores em educação. É importante que nos planos de lutas dessas organizações seja pautada a atuação coletiva contra a militarização da educação, em conjunto com estudantes, pais de alunos e movimentos sociais.
Nesse mês de outubro, em que comemoramos o dia do professor, esta e outras reflexões acerca da educação no país são fundamentais para fomentar o debate, esclarecer a população e envolver a todos na luta pela educação. Um bom começo seria pensarmos na valorização dos professores. Cabendo lembrar os compromissos assumidos internacionalmente pelo governo brasileiro quando assinou a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável (ONU): “Educação é um bem público, um direito humano fundamental e base para garantir a realização de outros direitos. É essencial para a paz, a tolerância, a realização humana e o desenvolvimento sustentável”.
*Maria Clotilde Lemos Petta é coordenadora da Secretaria de Relações Internacionais da Contee, diretora do Sinpro Campinas e Região e vice- presidente da CEA.
*Daniela Zanchetta é vice-presidente do Sinpro Campinas e Região e integrante do Fórum Municipal de Educação Campinas.