Escolas privadas de São Paulo silenciam quando o assunto são alunos e professores negros
Colégios de elite incluem temas ligados à história afro-brasileira e diversidade em suas grades, mas carecem de programas de inclusão racial dentro da sala de aula
“Tem. Mas são poucos”. É assim que diretores de colégios de elite de São Paulo respondem à pergunta sobre a quantidade de alunos e professores negros na instituição. Enquanto as redes sociais explodem de hashtags contra o racismo, no rastro dos protestos antirracista nos Estados Unidos e também no Brasil das últimas semanas, nas escolas onde estudam os filhos da parcela mais rica do país esse movimento ainda tem pouco eco. “Temos professores negros, mas não é grande o percentual”, admite Luciana Fevorini, diretora do colégio Equipe, na zona oeste de São Paulo, reconhecida por seu perfil progressista. “Isso nunca foi critério de seleção, mas talvez agora tenha que ser”, reconhece. Ela também admite não saber quantos são os alunos negros na escola, cuja mensalidade varia em torno de 2.500 reais, e que não há uma política ampla de concessão de bolsas de estudo.
Essa realidade do colégio Equipe se repete em outras instituições pela cidade. “Não temos muitos alunos negros”, diz Lígia Augusta Mori, diretora-pedagógica do colégio Gracinha (mensalidade custa de 3.500 a 4.000 reais), também na zona oeste. Ela afirma, no entanto, que a diversidade é um valor importante para a escola e que isso se reflete tanto na grade curricular quanto no programa de concessão de bolsas, implementado há cerca de cinco anos e que hoje beneficia 73 dos 814 estudantes matriculados na escola. Além disso, a escola, que faz parte da instituição filantrópica Associação Pela Família, já mantinha um colégio e dois centros educacionais fora da instituição que, juntos, atendem hoje cerca de 465 alunos.
Mas a ação de manter instituições educacionais para alunos de baixa renda em espaços apartados da escola, e normalmente bem longe dela, embora comum entre as escolas particulares que precisam responder à lei da filantropia, é criticada por especialistas. Denise Rampazzo, professora de Culturas Brasileiras e Diversidade Étnicas no Instituto Singularidades, explica que uma instituição que pretende ser mais diversa não pode se limitar somente a incluir atividades sobre o tema na grade curricular. “É preciso problematizar o porquê das crianças estarem em uma escola onde a única pessoa negra que elas veem é a moça da limpeza”, afirma.
Para tentar responder a essa questão, o EL PAÍS tentou contato com 10 colégios privados de São Paulo questionando suas políticas de inclusão racial: Bandeirantes, Vera Cruz, Santa Cruz, Porto Seguro, São Luiz, Dante Alighieri, Rio Branco, Rainha da Paz, Equipe e Gracinha. Desses, somente os quatro últimos responderam e concederam entrevista. “Existe um silenciamento muito grande na iniciativa privada”, constata Macaé Evaristo, assistente social e ex-secretária de Diversidade e Inclusão do Ministério da Educação (2013 a 2014). “A escola acaba construindo assim uma visão sobre o mundo completamente estereotipada e sem qualquer conexão com a realidade”.
Esse silêncio das instituições privadas, no entanto, não parte somente da direção ou coordenação dos colégios. Ele tem, na maior parte das vezes, a anuência de toda a comunidade escolar, especialmente dos pais e mães. Maria Claudia Minozzo Poletto, diretora do Rainha da Paz (onde a mensalidade vai de 2.500 a 3.200 reais), conta que, em 2014, quando o colégio, que também fica na zona oeste, instituiu uma política de concessão de bolsas, teve que enfrentar a resistência e até a desistência de muitas famílias. “Muitos disseram que não concordavam em pagar o que pagavam de mensalidade para que seus filhos estudassem junto com crianças da comunidade”, conta.
Mas o colégio resistiu. Hoje, 20% dos alunos são bolsistas e a diretora comemora o resultado. “Foi com a vinda desse número maciço de alunos que a gente teve diversidade efetiva na escola”, diz. “Antes desse programa, dos mais de mil alunos, nem cinco eram negros. Depois, juntamente com a chegada dos alunos oriundos da filantropia, passamos a receber também mais alunos negros pagantes, cujos pais nos procuram justamente por isso”.
Desde o ano passado, a escola tem um coletivo de alunos negros, o Coletivo Preto, mas a caminhada ainda é longa. Dentre os que declararam cor/raça de um total de 1010 matriculados, 33 se disseram pardos, e cinco negros, afirma a direção. Nem todos responderam. No corpo docente e pedagógico há professores e uma coordenadora negra, mas a diretora admite que, assim como os alunos, os professores negros também ainda são minoria.
Por outro lado, no colégio Vera Cruz, também na zona oeste, pais e professores criaram um grupo para discutir justamente o que eles afirmam que a direção da escola não faz. Organizados, eles perceberam, por exemplo, que muitos funcionários da limpeza não se beneficiavam da bolsa de estudos concedida pelo colégio, justamente pela ausência de alunos e professores negros na escola. “Não ter a presença de professores negros faz com que eles não tenham certeza de que os filhos serão acolhidos”, afirmou uma professora que faz parte do grupo mas preferiu não se identificar.
Fazer parte de uma minoria é uma realidade presente em colégios de norte a sul da cidade. As irmãs Thaís, 8, e Sophie Bourguignon, 9, estudantes da escola Johann Gauss, na zona sul (cerca de 2.000 reais a mensalidade) são duas das raras crianças pardas da escola. “Minhas filhas são pardas, uma com o cabelo ondulado e outra com o cabelo bem encaracolado, e, na escola com essas mesmas características eu acho que existem mais duas ou três crianças, no máximo”, diz a mãe das garotas, a designer de moda Lauriana Geralda Bourguignon, 49. “Mas como mãe, eu sou a única negra da escola”, pondera.
Negligência
Em 2003, a Lei 9.394 passou a obrigar que toda a rede pública e privada de ensino Fundamental e Médio incluíssem em seus currículos “estudos de história e cultura afro-brasielira”. De lá para cá, as instituições se mexeram. Muitas incluíram a leitura de livros escritos por autores negros e se aprofundaram no ensino da história africana. Todas as instituições com quem a reportagem conversou mostraram que têm em seus currículos o ensino de temas ligados à história e à cultura afro-brasileira. Esther Carvalho, diretora-pedagógica do colégio Rio Branco (mensalidade por entre 2.500 a 3.200 mais ou menos), afirma que todas as séries, do Fundamental ao Médio, desenvolvem anualmente trabalhos que tratam do preconceito e da cultura africana. “Além disso, existe uma atuação intensa e profunda quanto ao respeito incondicional”, ela diz. “Para nós, o respeito é inegociável”.
Macaé Evaristo reconhece que a força da lei causou um avanço importante no cenário. “Quando a lei foi aprovada, existiam cinco centros estudos afro-brasileiro. Hoje temos vários, espalhados pelo país inteiro. Temos uma associação de pesquisadores negros e o volume de produção acadêmica nessa área é algo impressionante, há livrarias especializadas nesses temas”, enumera ela. Mas, ao mesmo tempo, ela lembra que incluir esses temas nos currículos precisa estar necessariamente aliado a uma política de inclusão dos alunos negros nas salas de aula também. “Não dá para criar políticas antirracistas sem incorporar a população negra”, diz Macaé Evaristo. “Como criar instituições antirracistas com um professor negro? Ou com um estudante indígena? Em que medida a gente está verdadeiramente criando escolas plurais?”.
A estudante carioca Fatou Ndiaye, 15, sentiu na pele essa omissão. No final do mês passado, ela soube que colegas da escola Liceu Franco-Brasileiro (a mensalidade vai de 2.500 a 3.000 reais), no Rio de Janeiro, trocavam mensagens racistas sobre ela em um aplicativo de celular. “1 negro vale 1 jujuba” e “1 negro vale um pedaço de papelão” estavam entre o conteúdo trocado. A família registrou um Boletim de Ocorrência e o caso está na Justiça.
Por telefone, ela contou que esse não foi o primeiro episódio de racismo que ela sofreu no âmbito da escola, onde estava matriculada há 10 anos. “Por ser uma colégio onde a maioria é branca, é uma coisa recorrente”, diz, sobre as agressões sofridas. Macaé Evaristo define bem o que Fatou viveu: “O racismo é um sistema de humilhação permanente”, diz a especialista. “A pessoa negra todo dia toma um copo de racismo, o que muda é a dose. Às vezes é um gole, às vezes é uma garrafa cheia”.
Hoje, Fatou está em processo de transferência para outro colégio, também particular, que prefere não revelar o nome. “Escolhi essa nova escola porque tem um amplo programa de bolsas e cotas e por isso é mais inclusivo”, diz. “As escolas estão tentando se isentar de combater o racismo todos os dias dentro do seu ambiente, mas elas têm um grande papel de combate ao racismo”. Ela defende a especificação dos crimes de racismo no regimento escolar, além do próprio fortalecimento da comunidade negra de alunos. “Se a pessoa escolhe ser racista, precisamos dar todas as ferramentas para que a população negra combata esse racismo”.
A escola, por sua vez, criou um “Comitê para a Diversidade” para tratar do assunto e prevê a criação de um canal de denúncia. “Percebemos que tudo o que já tínhamos trabalhado em torno desse tema foi insuficiente para dar conta do ocorrido”, afirmou Diomário Junior, professor de Geografia e coordenador do comitê, ao EL PAÍS. A escola, no entando, ressalta que tem um programa de bolsas desde 2004 para alunos de baixa renda oriundos da rede municipal, para 50 alunos por ano.
Fatou afirma que a escola entrou em contato com sua família apenas duas vezes: “Na primeira vez ligaram para os meus pais e pediram para que a gente esquecesse o caso. Na segunda, foi por questões judiciais, já que registramos a ocorrência”. Ela afirma não ter recebido nenhum acompanhamento psicológico nem apoio da escola. “Eu esperava uma atitude diferente, mas eles foram negligentes”.