Extrema direita sabe capturar insatisfação global com o sistema político, diz professor

David Magalhães discute a ascensão da extrema direita nas eleições europeias em entrevista à Agência Pública

Andrea Dip, Clarissa Levy, Ricardo Terto, Stela Diogo

O crescimento da extrema direita no Parlamento Europeu após as eleições deste ano, com partidos extremistas como o espanhol Vox, o alemão AfD e o português Chega!, indica uma insatisfação dos europeus com a política, analisa o professor David Magalhães. Doutor em relações internacionais, Magalhães tem concentrado suas pesquisas no tema da transnacionalização da direita radical e na política externa de governos ultradireitistas.

Em entrevista ao podcast Pauta Pública, Magalhães discute a capacidade da direita de conseguir capturar o sentimento de insatisfação com o sistema, não só na Europa, mas também no Brasil e nos Estados Unidos. Para ele, apesar das diferenças nas plataformas eleitorais em cada país, as eleições europeias “impactam e dão uma certa revitalidade aos grupos de extrema direita brasileira que comemoraram a vitória dos europeus no Parlamento”.

Na discussão, Magalhães ressalta que, do ponto de vista das “direitas”, a Europa é historicamente muito distante do Brasil. Por isso, desde a redemocratização, o movimento brasileiro tem se espelhado na direita norte-americana. Atualmente, essa tendência continua, com o alinhamento a Donald Trump e ao movimento nacional populista, buscando replicar a sua forma e conteúdo.

Leia os principais pontos da entrevista e ouça o podcast completo abaixo.

[Andrea Dip] Aqui, na Alemanha, percebemos nitidamente como a questão migratória tem sido significativa para o avanço da extrema direita. Ao menos desde 2014, essa xenofobia foi intensificada e deu mais poder para a extrema direita. Nas minhas investigações, eu tenho percebido como esses discursos xenófobos têm se tornado cada vez mais violentos. Como, por exemplo, os discursos do primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán. Como esse aumento do discurso violento e anti-imigração interfere nessas eleições?

No caso da Alemanha, a AfD foi fundada em 2013 por ex-membros do partido da ex-primeira-ministra Angela Merkel, a União Democrata Cristã (CDU). Esse momento, segundo o cientista político holandês Cas Mudde, é chamado de “quarta onda”, onde houve uma normalização das ideias e práticas da ultradireita. Tudo aquilo que era visto como marginal foi trazido para o centro, moldando o comportamento dos partidos tradicionais de direita. Já na Espanha, o partido Vox foi fundado por ex-membros do Partido Popular (PP), que é historicamente de centro-direita. Esse partido é conservador, mas tradicional, assim como a CDU alemã.

Em um primeiro momento, o AfD tinha pautas mais econômicas, com um perfil mais tecnocrático, porque seus membros eram economistas de carreira. Esses membros tinham discursos fundamentalmente contra a zona do euro e contra a ajuda que a Alemanha vinha dando para países que foram abalados pela crise econômica financeira, como a Grécia e a Espanha. Com a crise migratória de 2014 e 2015, quando houve um influxo significativo da população vinda do Oriente Médio (especificamente sírios e afegãos), houve um impacto grande na mudança da agenda dessas organizações.

Não digo que a AfD já tinha uma agenda nativista [política de favorecer os habitantes nativos de algum país], xenófoba e anti-imigração, mas o fluxo migratório potencializou e redirecionou a agenda para um aspecto que tornou-se a principal ênfase da AfD de 2014 em diante. A partir disso, surgiu o Der Flügel, ala mais próxima à extrema direita neonazista alemã, que tem muita força na região da Turíngia, na Alemanha Oriental.

A mesma coisa aconteceu na Hungria. A plataforma eleitoral de Viktor Orbán em 2010, ano em que foi eleito, era basicamente o discurso contra o Partido Social Democrático que havia ficado por oito anos no poder. A corrupção do Partido Social Democrático é vinculada à crise econômica de 2009, que foi muito impactante para o país. À época, ainda não havia a questão da imigração no discurso de Orbán.

Isso muda de maneira substancial após seu segundo mandato, quando a Hungria vira um dos corredores de imigração porque alguns refugiados acabaram ficando (ainda que de maneira provisória) quando passaram pela fronteira com a Sérvia. O país tinha menos de 1% de população imigrante, ou seja, boa parte da população do país não sabia exatamente o que era imigração.

Orbán começou a mudar a sua agenda do ponto de vista do nativismo e xenofobia, da política de imigração. Ele aprofundou essas conexões entre a ideia de uma identidade húngara tradicionalista e católica, ameaçada pelos imigrantes. Ele passa a culpar as forças internacionais por apoiar o processo migratório. A figura do filantropo George Soros, um judeu húngaro, aparece justamente como “bode expiatório” da destruição da identidade húngara. A partir disso, houve uma campanha muito forte contra as ONGs que protegem refugiados.

No Brasil, a direita radical não tem agenda nativista e xenofóbica porque a imigração não é uma questão de relevância. No país também temos taxas de imigração abaixo de 1%, em termos de refugiados e imigrantes. Temos muito mais a agenda xenofóbica inter-regional, que seria o preconceito contra pessoas de origem nordestina. O preconceito no Brasil com imigrantes já aconteceu na região Norte do país com refugiados venezuelanos. Mas aqui o nativismo e xenofobia não fazem parte da pauta porque realmente a imigração não é um tema da conjuntura brasileira.

Sabemos que existem diferenças entre a extrema direita na Europa e no Brasil, como, por exemplo, a agenda da xenofobia posto por você. Mas também existem as semelhanças. Quais conexões você vê entre a extrema direita europeia e a brasileira?

Primeiro, eu queria tentar distinguir o que é a extrema direita europeia, porque podemos compreender nessa extrema direita qual parte mais se aproxima da brasileira. Por exemplo, eu vejo uma diferença muito grande ao comparar Holanda e França, porque são dois países que têm uma cultura secular, laica, com tradição liberal iluminista muito forte. De maneira que o discurso de um nacionalismo de identidade religiosa pega muito pouco nesses países.

Eu estou acompanhando bastante a campanha do Jordan Bardella, estrela da direita radical francesa, que pode se tornar o primeiro-ministro francês durante as Olimpíadas. O candidato francês praticamente não comenta questões como ideologia de gênero, destruição da família tradicional etc. Não há discurso anti-LGBTQIA+ e antiaborto (aprovado como direito constitucional na França). O mesmo acontece na Holanda. Geert Wilders, do Partido da Liberdade (PVV), que agora está formando o governo, em momento algum usa discurso religioso ou cristão.

Mas, se pegarmos países que têm um contexto histórico religioso e cristão, como o caso da Hungria, Polônia, Espanha e Itália, conseguimos encontrar alguns traços muito parecidos com a direita radical brasileira. A direita do nosso país fez algo no contexto do bolsonarismo, falar de cristianismo e não falar de catolicismo nem de protestantismo. Ou seja, foi uma aliança de conveniência que aconteceu às vésperas da ascensão do Bolsonaro como força política.

Antes de Bolsonaro surgir como candidato à unificação dos dois grupos, o Olavo de Carvalho vivia atacando o Edir Macedo e os grupos neopentecostais e os pentecostais no Brasil, houve uma aliança para viabilizar essa candidatura religiosa cristã brasileira. Esse é um traço muito comum que possibilita a interlocução global desses grupos.

Eduardo Bolsonaro tornou-se, de certa forma, o elemento de internacionalização da direita brasileira. Foi ele quem se aproximou do Steve Bannon junto com Filipe Martins, que está preso agora, mas foi assessor de relações internacionais da Presidência. As duas figuras transnacionalizaram as relações do bolsonarismo com grupos e organizações de ultradireita. Eduardo Bolsonaro se aproximou do partido português Chega!, de André Aventura, e também do partido espanhol Vox, de Santiago Abascal.

Inclusive, o Brasil faz parte de uma organização conhecida como Fórum de Madri. Essa organização teria sido criada para ser uma oposição ao Foro de São Paulo – suposta organização de esquerda de teor conspiracionista – porém o Fórum de Madri é uma organização de direita conservadora, claramente radical.

A reivindicação de uma identidade mobiliza um senso de cristianismo e tradição de família católica ou protestante. O caso brasileiro oscila de um lado para o outro, mas de certa forma reivindica a mesma tradição cristã. Ou seja, a ideia de identidade não é nacional secular, como é observado na França ou Holanda, é uma identidade que quer recuperar uma tradição cristã. Como é visto na discussão em torno do aborto no país, esse elemento vem de uma reivindicação identitária cristã muito importante nesses grupos.

David, você trouxe alguns elementos muito importantes. Eu gostaria de saber como as eleições europeias refletem no Brasil?

Eu ouvi alguma militância digital de grupos bolsonaristas celebrando a vitória da direita radical, embora eles não entendam exatamente essas diferenças relatadas. No momento que souberem que o partido de Marine Le Pen, a Rassemblement National, é em massa a favor do aborto, vão começar a chamá-la de esquerdista. A visão que eles têm é de um grupo conservador crescendo. Independente de essa percepção ser verdadeira ou não, ela impacta e dá uma certa revitalidade a esses grupos, como se houvesse uma janela de oportunidades de crescimento.

Não estamos diante de uma direita conservadora normal, mas de grupos verdadeiramente extremistas e hostis à democracia. Eu acredito que existem alguns elementos que fortalecem os movimentos com um discurso geralmente contra o sistema. A direita populista radical na Europa adota uma postura que é, em certa medida, contra o sistema, envolvendo tanto a centro-esquerda quanto a centro-direita. As eleições europeias têm mostrado isso: há um cansaço com o pêndulo centro-esquerda e centro-direita.

Os problemas também advém da democracia liberal, que se mostrou bastante incapaz de resolver problemas fundamentais de origem social, econômica e de desigualdade. Há uma sensação de insatisfação. Houve, por mais de uma década, uma coalizão na Alemanha entre centro-esquerda e centro-direita com o Partido Social-Democrata (SPD) e a União Democrata Cristã (CDU), que governaram juntos desde a época da Alemanha Ocidental.

Na Espanha, com o Partido Socialista Obrero (PSOE), há a mesma alternância entre os dois grupos. Existe uma sensação de desgaste geral em relação ao sistema, o consenso liberal que une centro-direita e centro-esquerda está sendo questionado. A esquerda não conseguiu capturar essa energia. Já a direita consegue capturar esse sentimento na Europa, Estados Unidos e também aqui no Brasil. Esse é um ponto que tende a reforçar o discurso antissistema.

Porém nada se compara com a possibilidade de Donald Trump vencer as eleições norte-americanas. O cenário eleitoral nos Estados Unidos tende a ser muito mais impactante para a direita brasileira do que o cenário europeu. A Europa, do ponto de vista “das direitas” é muito distante historicamente, por isso a direita brasileira tem mimetizado a direita norte-americana. Desde o processo de redemocratização, o principal farol das nossas direitas radicais tem sido os EUA.

Desde o período do neoconservadorismo, com o ex-presidente norte-americano George W. Bush e a Guerra do Iraque, até quando a direita começa a virar uma direita nacional populista com o também ex-presidente Donald Trump. Inclusive, a extrema direita tenta copiar a forma e o conteúdo da alt-right que ascende com o supremacista branco Richard Spencer. Em termos de pacto, temos que prestar muito mais atenção no que vai acontecer nas eleições dos Estados Unidos agora no final do ano do que nas eleições europeias. A Europa é vista como algo muito distante da direita radical brasileira.

(*) Reportagem publicada originalmente na Agência Pública

Do Opera Mundi

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