Faculdade não é fábrica de diploma’, diz Manuella Mirella, presidenta da UNE
No BdF Entrevista, a pernambucana fala sobre a batalha por melhorias no orçamento da educação pública brasileira
Neste ano, o Dia do Estudante celebrado em 11 de agosto será de luta contra o congelamento de R$ 15 bilhões em gastos públicos e por mais investimentos na educação, é o que disse Manuella Mirella, presidenta da União Nacional dos Estudantes (UNE). Ela avalia que “a educação não pode estar dentro de qualquer bloqueio econômico”. O contingenciamento de gastos foi oficializado na noite de terça-feira (30/7) no Diário Oficial e a ideia é manter a meta de déficit zero este ano, como prevê o arcabouço fiscal.
O Ministério da Educação está entre os mais afetados, com R$ 1,2 bilhão contingenciado, os ministérios da Saúde, das Cidades e dos Transportes estão na frente com R$ 4,4 bilhões, R$ 2,1 bilhões e R$ 1,5 bilhão congelados respectivamente. Impacto grande também teve o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). São R$ 4,5 bilhões, entre valores bloqueados e contingenciados, que representam cortes temporários de gastos. No programa estavam previstos investimentos em universidades e hospitais universitários, por exemplo.
“Se a gente bloqueia da educação, a gente impede o crescimento do Brasil. E se existe um projeto tão grande de estruturação do povo brasileiro, do Brasil como um todo, de soberania nacional, ele tem que estar acompanhado de orçamento. Então, é por isso que a gente vai para a rua com mais investimentos na educação, com menos juros, com projetos e pautas estruturantes para o nosso país”, destacou Mirella, que já sentiu na pele as consequências do desmonte de políticas educacionais e hoje é a primeira mulher negra e nordestina eleita à presidência da UNE em julho de 2023 pela chapa ‘Coragem e unidade: nas ruas para reconstruir o Brasil’ que obteve 74,27% dos votos.
Manuella conta que chegou a passar fome quando o Restaurante Universitário da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRP) estava fechado e também se deparou com colegas deixando o sonho da conclusão de um curso universitário por não conseguirem seguir os estudos. É por isso que sua principal bandeira enquanto presidenta da UNE é aprimorar os programas de assistência estudantil nas universidades brasileiras.
“Eu carrego comigo a bandeira da assistência estudantil com muita força, desde que fui eleita na UNE, porque eu sei que cada prato de comida do restaurante universitário salvou a minha vida. E que cada final de semana que a gente não tinha um RU aberto, os moradores da Casa do Estudante sabiam que a gente tinha que se juntar pra fazer um macarrão, todo mundo junto, ou dormir pra esquecer a fome. Sabemos que nenhum estudante precisa passar por isso e se eu tava passando por aquilo tendo assistência estudantil, imagina outras pessoas que não têm”.
Segundo Manuella, as dificuldades vividas nas primeiras etapas da vida universitária, a qual ingressou por cotas sociais, diminuíram quando conseguiu uma bolsa de assistência estudantil e moradia na Casa do Estudante. “Eu ingressei com a lei de cotas de escola pública, de baixa renda e de raça, eu também queria lutar e por isso que me engajei nesse projeto de permanência, porque só entrar não é o bastante, a gente quer permanecer, concluir os nossos cursos. A universidade salvou a minha vida”.
Criada no bairro de Maranguape I, uma das áreas mais pobres da região metropolitana do Recife, Manuella Mirella estudou a vida toda em escola pública e formou-se no curso de Química pela Universidade Federal Rural de Pernambuco. Atualmente estuda Engenharia Ambiental na FMU.
Manuella é a convidada desta semana do BdF Entrevista. Ela denuncia o que chama de “farra dos tubarões do ensino privado”. Com isso, lutar por regulamentações para as faculdades particulares está em seu rol de prioridades enquanto presidenta da UNE. “É uma farra dos grandes grupos educacionais. A educação não é mercadoria e o grupo educacional, que se enquadre dentro dos aspectos necessários colocados pelo Brasil sobre o que queremos de educação superior e o que vemos é totalmente o inverso disso”.
Sobre a greve dos trabalhadores dos institutos e universidades federais que durou quase dois meses, a presidenta da UNE celebrou o reajuste salarial conquistado pelos docentes. “Eles conseguiram um reajuste e os técnicos também. Não suficientes, voltaram às aulas porque acreditam que têm também responsabilidade com o futuro do Brasil, com os estudantes”. A greve teve fim depois que os trabalhadores aceitaram um acordo com o governo federal.
Uma reestruturação salarial para as carreiras do magistério, que abrangem o ensino superior, básico, técnico e tecnológico, será implementada em duas fases: janeiro de 2025 e abril de 2026. Os percentuais de reajuste serão diferentes para cada categoria de docentes.
No caso dos técnicos-administrativos, o reajuste salarial também será realizado em duas etapas: 9% em janeiro de 2025 e 5% em abril do ano seguinte.
Além disso, o acordo incluiu a revogação da portaria MEC nº 983, de novembro de 2020, que altera a carga horária e a forma de controle do ponto eletrônico. Na qual os professores eram obrigados a cumprir um mínimo de 14 horas, no caso de tempo integral, ou 10 horas, se for parcial.
Confira alguns trechos da entrevista abaixo. No vídeo acima, você pode conferir a entrevista na íntegra.
Brasil de Fato: A UNE foi fundada no dia 11 de agosto, em 1937. Neste ano a entidade celebra 87 anos. Fala um pouco sobre o simbolismo desta data. Quais serão as principais reivindicações das mobilizações deste ano?
Manuella Mirella: Em 1937 nasceu a UNE, acompanhada da revolta dos estudantes contra o regime militar, contra o autoritarismo, junto da organização estudantil de pautas nacionais e internacionais, ali no fim da segunda guerra. A história da UNE se confunde com a história do nosso país.
Inclusive na semana passada eu estive na UNB, onde o Honestino Guimarães, estudante, geólogo, sumiu da ditadura militar e até hoje não se sabe do seu corpo. Ele foi nosso presidente. Completaram-se 50 anos do seu desaparecimento no ano passado e esse ano ele recebeu o título de geólogo pós mortem. É muito emocionante ver que a gente repara a história de um jovem brilhante que perdeu sua vida para ajudar a vida de outros milhares de jovens, é por Honestino que eu estou aqui hoje. Então, eu tenho muito orgulho de vestir essa camisa. A minha farda, eu visto ela dia sim, dia também, lutando e levando a história e a trajetória da UNE para onde quer que eu vá, entendendo que a importância da mobilização dos estudantes é fundamental. Nada nos foi dado de graça.
Se nós temos hoje políticas públicas efetivas voltadas para a universidade, para a educação brasileira, eu tenho certeza que tem o dedo, o DNA e o corpo inteiro da União Nacional dos Estudantes. Bem como nós não só falamos de educação, mas nós também falamos de um projeto de Brasil forte e soberano. Neste 11 de agosto a gente deve fazer uma atividade mais online no domingo, mas no dia 14 de agosto, já queria convidar todos vocês para ocupar as ruas em todo o Brasil por menos juros e mais investimentos na educação.
Menos juros porque é uma pauta do Banco Central, da nossa luta contra os rentistas, da nossa luta contra essa política fiscal e essas metas irreais e absurdas de déficit zero. Essa meta que vem dentro do próprio arcabouço, de bloquear da educação e de áreas importantes e que para nós a gente entende que lutar para um projeto de educação e de universidade passa por defender investimentos robustos, nenhum país no mundo se desenvolveu sem colocar a educação como pilar fundamental.
Então nesse momento de volta, a gente passa seis anos de corte na educação, de ataques aos estudantes. A UNE era atacada nominalmente pelo ex-presidente da república, o Bolsonaro. A gente fez uma campanha de traje de títulos, 2 milhões de títulos foram retirados vencemos para iniciar um novo ciclo democrático e nesse ciclo democrático nós entendemos que existe uma frente ampla e nessa frente ampla se existe aí um cabo de guerra de um lado para o outro nós temos que ter muita força e do nosso lado temos mãos de estudantes de todo Brasil.
Iremos ocupar as ruas no dia 14 na luta por orçamento, por investimentos na educação, pela ampliação das universidades, das vagas de bolsas e qualidade no ensino, bem como a nossa luta central pela regulamentação do ensino superior privado. A situação do ensino superior privado, como está, não dá para ficar. Não dá para a prioridade na educação privada brasileira, ser dos tubarões do ensino, como chamamos, e dos grandes grupos de educacionais, enquanto temos uma massa de estudantes endividados com uma graduação, sem o mínimo de qualidade. Não é essa universidade, não é o ensino superior que nós defendemos.
Você é a primeira mulher negra e nordestina a se tornar presidenta da UNE. O que isso nos mostra a respeito da participação de pessoas negras nos lugares de liderança da entidade?
Ser mulher no Brasil é difícil, ser mulher negra é mais difícil ainda. Por muito tempo, os espaços da universidade, os espaços de decisão e poder de voz foram negados. Basta olhar para o próprio Congresso Nacional, a quantidade de mulheres, a quantidade de mulheres negras é assustadora. Isso se perpetua não só no Congresso, mas na universidade, no mercado de trabalho e a universidade é um reflexo da sociedade.
A universidade não é um ambiente aquém da realidade, em que está tudo certo e as mulheres sim têm espaço, de forma nenhuma. É um espaço que também reproduz o machismo estrutural, que mulheres nas exatas não eram tão boas quanto os homens e homens brancos. Para conseguir bolsas e conseguir credibilidade, a gente tem que ser mais dura, a gente tem que se posicionar mais forte. Então não é simples.
Não é simples, inclusive, ser uma mulher negra no espaço como esse. No movimento estudantil, a gente vem mudando essa realidade, ao longo da história da UNE nós tivemos algumas mulheres, mas se olhar a comparação de mulheres para homens, você vê que a quantidade de homens presidentes ainda assim é superior, mas que fico muito feliz, foi a primeira vez na história da UNE que a condução da presidência passa de uma mulher negra, para outra mulher negra. De uma mulher nortista, para uma mulher nordestina, regiões do Brasil tidas como periféricas.
A gente veio para ocupar todos os espaços sem medo de errar, claro, com uma bagagem histórica nas costas, com uma cobrança duplicada ou triplicada, mas também com muita coragem. Esse espaço é nosso e nós viemos para ficar e ocupar todos eles. Mas eu ainda sinto na pele, eu chego nos espaços e a UNE, que é uma entidade de 86 anos, reconhecida mundialmente. Eu ocupo espaços representando a UNE desde passar na sala de aula para falar com os estudantes, até falar com o presidente da república. São espaços que a gente ocupa e às vezes eu estou nesses espaços de mais destaque, esses espaços mais reservados, com pouca gente e muitas vezes não permitem entrar, não acreditam que eu sou presidente da UNE, me secundarizam, então isso é quase que diariamente.
Então eu vou com o pé na porta e respeito, respeito aos estudantes, bato na mesa, grito se for necessário para que outras meninas do futuro não precisem gritar e passar pelo que eu passo. Então, quando eu falo que estar no espaço de decisão e ocupar os espaços de poder e de voz, a minha luta de hoje é para que o processo de outras não seja tão doloroso e que a gente consiga garantir a equidade, a transformação da nossa sociedade a partir da equidade de gênero e do respeito.
O presidente Lula sancionou a reforma do Novo Ensino Médio vetando apenas as mudanças no Enem. Outros pontos apontados por esses grupos foram mantidos pelo presidente, como o Espanhol não-obrigatório no currículo e a possibilidade do aluno trocar tempo de aula por trabalho remunerado ou voluntário. Qual a visão da UNE a respeito dessa reforma?
O Novo Ensino Médio é uma pauta de todas as entidades estudantis, encabeçada, prioritariamente, pela União Brasileira dos Estudantes Secundaristas, a UBES, que no início da discussão sobre o Novo Ensino Médio, o pedido da revogação, eles fizeram uma nota técnica que embasou inclusive a luta. A mobilização dos estudantes fez com que o novo ensino médio fosse revisitado. Porque se não fosse, até hoje, estaria no jeito que estava. Com o estudante pobre aprendendo a fazer bolo de pote e estudante rico tendo ciências, francês e outras línguas nas suas escolas particulares.
Então, a luta do Novo Ensino Médio é uma luta de todos nós, principalmente para nós estudantes de licenciatura que sabemos como é difícil chegar na escola. Essa reforma do Novo Ensino Médio é uma reforma que aumentou o abismo da educação pública, diminuiu o número da formação geral básica com disciplinas importantes e fundamentais para os estudantes, adicionou os itinerários formativos, mas sem nenhuma regulamentação, sem nenhum acompanhamento e qualidade, é tudo muito solto. Então, a nossa luta é pela revogação imediata do Novo Ensino Médio.
Os estudantes que estão nesse Novo Ensino Médio agora, que fizeram o Enem, passaram dois, três anos do seu ensino médio com um novo currículo, que no Enem se cobram outras matérias que eles nem tiveram no Novo Ensino Médio. Então, a nossa luta nessa nova formulação eram algumas pautas específicas. Primeiro, aumentar de 1.800 para 2.400 horas da formação geral básica, que é português, matemática… eu acredito que isso modificou esse novo projeto, então, a gente ampliou a formação geral básica para garantir que os estudantes tenham acesso a essa disciplina com qualidade.
Nós não conseguimos colocar o espanhol como segunda disciplina obrigatória. É uma pena porque todos os países vizinhos falam espanhol, menos o Brasil. E tendo o espanhol como disciplina obrigatória no ensino médio também fortalece a integração latino-americana e caribenha, que o Brasil precisa ter. Nós não conseguimos e não conseguimos também retirar o notório saber.
O notório saber é preocupante porque nós temos hoje uma dificuldade, quando se olha para o ensino médio e se nós não colocamos professores, não só qualificados mas que tenha uma formação em práticas pedagógicas, que tenha uma formação específica para formar outras pessoas, quais estudantes estaremos formando né? Não conseguimos, mas esse veto do presidente no Enem também nos ajuda a fortalecer a formação geral básica e essas disciplinas obrigatórias, que a gente sabe que nos formam quanto seres e que a gente consegue aprender português, matemática, história, química, física.
Então, para nós a luta pelo Novo Ensino Médio, ela continua porque ainda não é o bastante. As mudanças que foram feitas nesse projeto estão muito longe de ser um Novo Ensino Médio ideal. Nós seguimos mobilizados junto com a UBES para lutar por um Ensino Médio dos nossos sonhos. Não se chega na universidade, na graduação, nem na pós-graduação sem passar pela escola e a gente não pode criar um abismo de desigualdade no ensino básico, porque isso diz respeito sobre qual é a universidade que vamos ter daqui a cinco, dez anos, qual é a pós-graduação que nós vamos ter. Não podemos dar passos para trás.
A gente avançou tanto e agora a gente quer muito mais. A gente quer que os nossos meninos e meninas consigam estar na estar na escola. Graças ao Pé de Meia, agora nós teremos uma massa de estudantes que não vai desistir do ensino médio, mas nós também queremos reformular o ensino médio para saber que escola é essa que esses estudantes estão ficando, qual é a escola que o Brasil precisa. Então teremos muita batalha pela frente ainda, e os estudantes brasileiros podem contar tanto com a UNE, quanto com as outras entidades estudantis na luta pelo ensino médio que a gente tanto deseja.
Edição: Nathallia Fonseca