Governo eleito busca blindagem jurídica com PEC da Transição para elevar gasto em 2023
Plano B com crédito extraordinário dispensa negociação com Congresso, mas esbarra em travas técnicas
A aprovação da chamada PEC (proposta de emenda à Constituição) da transição é considerada por técnicos e uma ala de parlamentares a via mais segura do ponto de vista jurídico para autorizar a ampliação de gastos almejada pela equipe do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em 2023.
A possibilidade de um plano B passou a ser citada por aliados do petista após integrantes do TCU (Tribunal de Contas da União) sugerirem dispensar a PEC e ampliar as despesas via edição de créditos extraordinários —verbas que ficam fora do teto de gastos e, nesse caso, seriam liberadas por uma MP (medida provisória) assinada por Lula após sua posse em 1º de janeiro.
A corte de contas vê precedentes para permitir a elevação dos gastos por esse caminho, o que livraria o governo recém-eleito de empenhar seu capital político em uma negociação delicada para a aprovar uma mudança constitucional, que requer apoio de 308 dos 513 deputados e 49 dos 81 senadores.
O vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin, e o senador Marcelo Castro, relator-geral do Orçamento, em reunião para discutir PEC da Transição – Gabriela Biló – 03.nov.2022/Folhapress
No entanto, pessoas que participam da discussão das medidas, ouvidas pela Folha sob condição de anonimato, afirmam que o uso dos créditos extraordinários não resolve todas as barreiras que existem hoje.
Além disso, a adoção desse caminho carrega consigo um complicador político: a equipe de Lula precisaria aceitar aprovar o Orçamento de 2023 do jeito que está, “no osso”, com inúmeros cortes em áreas sociais e sem verba suficiente para bancar o Bolsa Família de R$ 600 por família —promessa de campanha do petista. O crédito extraordinário só poderia ser assinado no início do ano que vem, com o novo governo já empossado.
O crédito extraordinário fica fora do teto de gastos, regra que limita o avanço das despesas à inflação, mas segue sendo contabilizado na meta fiscal e na chamada regra de ouro do Orçamento —que impede a emissão de dívidas para bancar despesas correntes, como é o caso dos benefícios sociais.
A meta hoje permite um déficit de até R$ 65,9 bilhões, rombo que ficará muito maior com a ampliação de despesas pretendida pelo novo governo. Seria necessário o envio, pelo Poder Executivo, de um projeto de lei pedindo a alteração da meta fiscal. O texto precisaria ser aprovado pela CMO (Comissão Mista de Orçamento) e depois pelo Congresso.
A regra de ouro também poderia ficar em situação de desequilíbrio. Para descumpri-la, a Constituição exige a aprovação de um crédito suplementar ou especial por maioria absoluta do Congresso. Esse tipo de crédito fica dentro do teto de gastos —não fora, como precisaria o novo governo.
Na avaliação de técnicos, a sobreposição de regras fiscais acaba colocando a equipe de transição em uma encruzilhada: ou descumpre o teto, ou descumpre a regra de ouro. As duas estão previstas na Constituição. Por isso, a leitura desse grupo é que a PEC é a saída mais factível para dar segurança jurídica à resolução do Orçamento.
Nesta sexta-feira (4), o ex-governador do Piauí e senador eleito Wellington Dias admitiu que a opção de consulta ao TCU sobre o crédito extraordinário está sendo avaliada, mas afirmou que a PEC é a via mais segura.
“Nós temos essa alternativa da PEC. O Tribunal de Contas da União tem também essa alternativa do crédito extraordinário. Porém, nós estamos fixados aqui para termos muita segurança para esse projeto de emenda, e a partir daí a redação desse projeto de emenda constitucional”, disse.
Segundo interlocutores ouvidos pela reportagem, a ideia é atacar nas duas frentes ao mesmo tempo, com apresentação da PEC e envio de consulta ao TCU sobre a possibilidade do crédito extraordinário, para manter o maior número de opções. Nos bastidores, porém, técnicos manifestam preferência pela PEC para “dar absoluta segurança jurídica ao presidente Lula”.
A negociação da PEC da Transição foi acertada pela equipe de Lula com o relator do Orçamento de 2023, senador Marcelo Castro (MDB-PI), em reunião nesta quinta-feira (3).
A PEC é tida como necessária para evitar um apagão social no ano que vem, já que a proposta de Orçamento enviada em agosto pelo governo Jair Bolsonaro (PL) assegura apenas um valor médio de R$ 405,21 no Auxílio Brasil, além de impor cortes severos em programas habitacionais e também no Farmácia Popular.
Além do acréscimo ao piso nacional, a proposta também vai autorizar gastos extras para assegurar a continuidade do benefício mínimo de R$ 600 do Auxílio Brasil, pagar o benefício adicional de R$ 150 por criança com até seis anos, reduzir as filas do SUS (Sistema Único de Saúde), ampliar as ações de saúde indígena e merenda escolar, além de destravar recursos para investimentos.
Críticos da alternativa dos créditos extraordinários apontam nos bastidores outros obstáculos. A Constituição diz que os instrumentos são reservados às despesas “imprevisíveis e urgentes, como as decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública”.
Embora a recomposição dos gastos sociais seja considerada urgente pela maioria dos técnicos e atores políticos, paira uma dúvida sobre a possibilidade de enquadrar despesas como aumento do salário mínimo e recomposição do programa Farmácia Popular como imprevisíveis.
Técnicos que atuam na área das contas públicas ironizam que as despesas são “tão imprevisíveis” que o novo governo e o Congresso já as conhecem com dois meses de antecedência de 2023. Há a avaliação de que, se o TCU der aval a esse tipo de medida, significará uma fragilização adicional das regras fiscais.
Mesmo o precedente citado dentro do TCU guarda algumas diferenças. Em 2016, a corte de contas permitiu a abertura de um crédito extraordinário para bancar despesas da Justiça do Trabalho, que sofria com a falta de recursos. Naquele caso, porém, o governo Michel Temer (MDB) tomou posse em maio, com o Orçamento já aprovado e em execução.
No contexto atual, as despesas em questão estão em discussão no Congresso e com a proposta orçamentária ainda em aberto —o que põe em xeque a noção de imprevisibilidade, necessária para driblar o Orçamento tradicional.
Defensores da via do crédito extraordinário sem PEC, porém, argumentam que o governo eleito ainda não assumiu e não pode, portanto, ser responsabilizado pelo Orçamento que for aprovado este ano. Essa visão abriria caminho para o TCU avalizar um crédito extraordinário para bancar despesas não previstas.
Pessoas que participam das discussões alertam que dificilmente os técnicos do Executivo, que produzem os documentos que subsidiam as decisões de qualquer ministro e presidente da República, assinarão uma nota que dê sinal verde a um crédito extraordinário nessas circunstâncias.
Essa visão é corroborada por técnicos experientes que já integraram diferentes gestões do governo federal. A assinatura dos atos ficaria a cargo do novo ministro da Fazenda, que ainda não foi indicado por Lula.
Até mesmo os créditos extraordinários liberados em meio à pandemia da Covid-19, como os que bancaram o auxílio emergencial, foram editados somente após a aprovação de PECs, justamente para dar maior segurança a quem assinava as medidas.
A busca por uma alternativa à PEC tem um pano de fundo político. Como mostrou a Folha, a articulação da proposta dá ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), um poder de barganha valioso diante da urgência da aprovação do texto.
A votação até meados de dezembro é considerada fundamental para o primeiro ano da gestão Lula, e Lira tem forte influência sobre o ritmo de análise da proposta. O fortalecimento do presidente da Câmara incomodou aliados históricos de Lula, como o senador Renan Calheiros (MDB-AL), que disputa com Lira influência sobre seu reduto eleitoral, Alagoas.
Renan disse à coluna Painel, da Folha, que a PEC é uma “barbeiragem”. Segundo ele, não era necessário “se entregar dessa forma” ao centrão.
Outro risco apontado nos bastidores é que a PEC seja usada para constitucionalizar as chamadas emendas de relator, usadas como moeda de troca nas negociações políticas e que são controladas pela cúpula do Congresso Nacional.
As emendas de relator são previstas hoje apenas na LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias) e são renovadas ano a ano. A inclusão delas na Constituição as tornaria permanentes, e o Executivo seria obrigado a executá-las. O centrão tem interesse por uma medida nessa direção.
O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), afirmou nesta sexta ao canal Globonews que não mexer na Constituição seria melhor, mas que é possível uma PEC caso os técnicos vejam necessidade de maior segurança jurídica.
“Haverá, por parte do Congresso Nacional, toda a boa vontade para apreciar a PEC da Transição e, com o diagnóstico técnico e sem extravagâncias, colocar em prática o que foi prometido na campanha do governo eleito”, afirmou em rede social.
Colaborou Julia Chaib