Há juízes na Justiça do Trabalho?
Por José Geraldo de Santana Oliveira*
Em contundente discurso proferido em sessão do Senado Federal aos 15 de dezembro de 1914, o então senador Rui Barbosa bradou: “De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto…”.
Pois bem! Passados 106 anos desse brado, sua atualidade parece manter-se incólume, como que a dar razão a Tancredi — personagem da obra de Giuseppe de Lampedusa, “O Leopardo”, lançado postumamente em 1958 —, para quem era preciso que tudo se mudasse, para que continuasse como estava.
Para corroborar essa assertiva, basta que se mirem nas figuras de proa dos poderes executivos e legislativos federais e nas decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), do Tribunal Superior do Trabalho (TST) e da maioria dos tribunais regionais do trabalho (TRTs).
Fazem reverberar o destacado brado de Rui Barbosa duas recentes decisões da Justiça do Trabalho, sendo, a primeira, do TRT da 17ª Região (Espírito Santo), proferida no Processo 0001007-68.2018.5; e, a segunda, da 4ª Turma do TST, que conta, em sua composição, com o ministro Ives Gandra Martins Filho, contumaz algoz dos trabalhadores e de seus direitos.
2 A primeira decisão, proferida pelo juízo da 11ª Vara do Trabalho de Vitória/ES, foi assim resumida pelo Portal Jurídico Conjur, em notícia assinada por Tiago Ângelo, publicada ao dia 22 de setembro corrente: “Para resolver impasse entre um beneficiário da justiça gratuita que perdeu ação trabalhista e os advogados da empresa que saiu vencedora, o Tribunal Regional do Trabalho da 17ª Região, no Espírito Santo, homologou um acordo inesperado: o reclamante, que não tem condições de pagar os honorários, irá quitar sua dívida prestando serviço comunitário. O acordo foi revelado pela ConJur em reportagem publicada semana passada”.
Como sobressai dessa notícia, que é confirmada pela citada decisão, abaixo transcrita, o citado juízo, a pretexto de homologar livre manifestação de vontade das partes litigantes, aceitou converter a sucumbência do reclamante, decretada por sentença no nominado processo, em ilícito penal, previsto no Art. 46, do Código Penal (Decreto-lei N. 2848/1940), que assim dispõe:
“Art. 46. A prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas é aplicável às condenações superiores a seis meses de privação da liberdade. (Redação dada pela Lei nº 9.714, de 1998)
§ 1o A prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas consiste na atribuição de tarefas gratuitas ao condenado. (Incluído pela Lei nº 9.714, de 1998)
§ 2o A prestação de serviço à comunidade dar-se-á em entidades assistenciais, hospitais, escolas, orfanatos e outros estabelecimentos congêneres, em programas comunitários ou estatais. (Incluído pela Lei nº 9.714, de 1998)
§ 3o As tarefas a que se refere o § 1o serão atribuídas conforme as aptidões do condenado, devendo ser cumpridas à razão de uma hora de tarefa por dia de condenação, fixadas de modo a não prejudicar a jornada normal de trabalho. (Incluído pela Lei nº 9.714, de 1998)
§ 4o Se a pena substituída for superior a um ano, é facultado ao condenado cumprir a pena substitutiva em menor tempo (art. 55), nunca inferior à metade da pena privativa de liberdade fixada. (Incluído pela Lei nº 9.714, de 1998)”.
Essa teratológica decisão, que converte em crime o direito fundamental social quanto a crédito trabalhista, assegurado no Art. 7º, XXIX, da CF, acha-se assim exarada:
“Vistos, etc.
Sendo as partes capazes e devidamente assistidas, o objeto lícito e determinado e não vislumbrando a existência de nenhum vício no negócio jurídico, homologo a transação instrumentalizada na petição de ID 0a8d0c0, para que surta seus jurídicos efeitos.
Considerando-se a natureza jurídica das parcelas objeto da transação não há incidência de tributos.
Intimem-se as partes.
Ultimadas as diligências, arquive-se o feito, com baixa.
VITÓRIA/ES, 06 de julho de 2020.
NEY ALVARES PIMENTA FILHO
Juiz(íza) do Trabalho Titular”.
O juiz que a proferiu, cego pela forma, ainda assim por demais duvidosa no caso concreto, não conseguiu ou não quis enxergar o conteúdo da famigerada transação que a ensejou; não viu ou não quis ver que aos advogados da empresa reclamada somente interessava a humilhação do trabalhador — extensiva a todos os trabalhadores —, dos direitos trabalhistas e do direito de ação.
Parafraseando Quincas Borbas, no belíssimo romance de Machado de Assis, ao vencido, compaixão ou ódio; no caso concreto, os advogados da reclamada fizeram emergir, de forma cristalina, o seu ódio ao trabalhador e ao direito de ação.
Do mesmo modo, o juiz prolator da repudiada decisão não viu ou não quis ver que tal macabra transação não representava ato de vontade do trabalhador, mas, tão somente, o único meio que tinha às mãos para não ficar preso à condenação a honorários de sucumbência, tendo sua vida vigiada e revirada pelos advogados da empresa reclamada.
Com todo respeito ao juiz que homologou essa monstruosidade, só ele viu licitude nela e ato de vontade do reclamante.
Se a moda pega, em breve se transformará no fio condutor da Justiça do Trabalho a maligna metáfora de Washington Luís (último presidente da República Velha), segundo a qual a questão social é caso de polícia.
3 A segunda decisão da Justiça do Trabalho trazida à baila nesses breves comentários, como já dito, emana-se da 4ª Turma do TST, e, igualmente, trata de honorários de sucumbência, dando ao Art. 791-A alcance que ele não tem e que, com certeza, não foi sequer cogitado pelos respectivos relatores do projeto de lei convertido na Lei N. 13.467/2017 — respectivamente, Rogério Marinho, na Câmara Federal, e Ricardo Ferraço, no Senado —, não obstante a ira que demonstraram contra a CF, a CLT de então e a jurisprudência do TST.
Por essa decisão, em todos os pedidos formulados perante a Justiça do Trabalho e julgados improcedentes ou parcialmente procedentes, haverá condenação do trabalhador reclamante; no primeiro caso, sobre o montante do pedido; no segundo, sobre a diferença entre o valor pedido e o que foi efetivamente concedido.
A título de ilustração, se o pedido for de R$ 100,00 e a decisão proferida for por sua total improcedência, a condenação em honorários de sucumbência será sobre o total, variando de 5% a 15%; se o valor concedido for de R$ 10,00, a condenação incidirá sobre a diferença de R$ 90,00; e assim sucessivamente.
A ementa do acórdão proferido nesse processo acha-se exarada nos seguintes termos:
“PROCESSO Nº TST-RR-425-24.2018.5.12.0006
A C Ó R D Ã O 4ª Turma GMALR
RECURSO DE REVISTA. ACÓRDÃO REGIONAL PUBLICADO NA VIGÊNCIA DA LEI Nº 13.467/2017. 1. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. SUCUMBÊNCIA RECÍPROCA. APLICAÇÃO DO ARTIGO 791-A §3º DA CLT. TRANSCENDÊNCIA JURÍDICA RECONHECIDA. CONHECIMENTO E PROVIMENTO. I. A Corte Regional descreveu tratar-se de ‘acolhimento parcial do pedido’ e negou provimento ao recurso ordinário interposto pela Reclamada, afastando a condenação do Reclamante ao pagamento de honorárias sucumbências, por entender ‘não se tratar o caso de sucumbência recíproca’. II. Pelo prisma da transcendência, trata-se de questão jurídica nova, uma vez que se refere à interpretação da legislação trabalhista (art. 791-A, § 3º, da CLT) sob enfoque em relação ao qual ainda não há jurisprudência pacificada no âmbito do Tribunal Superior do Trabalho ou em decisão de efeito vinculante no Supremo Tribunal Federal. Logo, reconheço a transcendência jurídica da causa (art. 896-A, § 1º, IV, da CLT). III. Sob esse enfoque, fixa-se o seguinte entendimento: tratando-se de reclamação trabalhista ajuizada após a vigência da Lei nº 13.467/2017, como no presente caso, deve ser aplicado o disposto no art. 791-A, e parágrafos, da CLT, sujeitando-se a parte reclamante à condenação em honorários de sucumbência, mesmo sendo beneficiária da gratuidade de justiça. Nos termos do art. 791-A, § 3º, da CLT, quando houver procedência parcial da causa deverá o juiz definir honorários de sucumbência recíproca. IV. Recurso de revista de que se conhece e a que se dá provimento.”
A conclusão do voto, aprovado à unanimidade, foi assim exarada:
“HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. SUCUMBÊNCIA RECÍPROCA. APLICAÇÃO DO ARTIGO 791-A, §3º, DA CLT. TRANSCENDÊNCIA JURÍDICA RECONHECIDA. CONHECIMENTO E PROVIMENTO. Em face do conhecimento do recurso de revista, por contrariedade ao artigo 791-A,§3º da CLT, seu provimento é medida que se impõe para condenar o Reclamante ao pagamento de honorários advocatícios, correspondente a 15% do valor relativo à parte em que ficou vencido, conforme for apurado em liquidação de sentença. Sendo o reclamante beneficiário da justiça gratuita, deverá ser observado o disposto no § 4º, do art. 791-A, da CLT. ISTO POSTO ACORDAM os Ministros da Quarta Turma Tribunal Superior do Trabalho, à unanimidade: (a) reconhecer a transcendência jurídica da causa; (b) conhecer do recurso de revista interposto pela Reclamada quanto ao tema ‘HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. SUCUMBÊNCIA RECÍPROCA. APLICAÇÃO DO ARTIGO 791-A, §3º, DA CLT’, por contrariedade ao artigo 791-A, §3º, da CLT, e, no mérito, dar-lhe provimento para condenar o Reclamante ao pagamento de honorários advocatícios, correspondente a 15% do valor relativo à parte em que ficou vencido, conforme for apurado em liquidação de sentença. Sendo o reclamante beneficiário da justiça gratuita, deverá ser observado o disposto no § 4º, do art. 791-A, da CLT. Custas processuais inalteradas.
Brasília, 16 de setembro de 2020. Firmado por assinatura digital (MP 2.200-2/2001) ALEXANDRE LUIZ RAMOS Ministro Relator”.
Por contas de decisões desse jaez, os trabalhadores brasileiros, parafraseando, de modo interrogativo, o personagem da obra “O moleiro de Sans-Souci”, de François Andrieux, hão de perguntar ao vento que passa: há juízes na Justiça do Trabalho?
*José Geraldo de Santana Oliveira é consultor jurídico da Contee